Amigos do Fingidor

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Estante do tempo

Poetas malditos
Maranhão Sobrinho (1879-1915)


Quando, pelo clamor dos meus pecados, tive
de, à Treva Inferior, descer, à voz do Eterno,
ralando-me do Mal no aspérrimo declive,
como um deus rebelado e tonto de falerno,
sobre os antros mais nus, como Alighieri, estive
suspenso, a contemplar o delírio eviterno
das pompas sensuais de Gomorra e Ninive,
situadas ao pé de Stromboli do Inferno...

Gritos e imprecações, que as chamas retalhavam,
como gládios de bronze, em bárbaras campanhas,
de entre as lavas de sangue e sulfo se elevavam,
enquanto, aos olhos meus, nos infernais retiros,
o fogo, devorando o ventre das montanhas,
dava uns tons de grangrena às asas dos vampiros...

Com as unhas lacerando a púrpura sangrenta,
que, dos ombros de auroque, em pregas, lhe caía
vi Nero, inda exibindo a mesma fronte odienta
que, no incêndio de Roma, às chamas exibia...

Raivava como um cão, mostrando a saburrenta
língua e, a espaços, também, às escancaras, ria
epiléptico, ao ver as almas em tormenta
atravessando o horror da satânica orgia
de fogo, no solar do Príncipe Demônio,
para, empós, como os cães corridos, lazarentos,
encolher-se, entrevendo o vulto de Petrônio,
que, arrepanhando a toga e erguendo a ebúrnea fronte,
ia e vinha, a cantar, nos antros pestilentos
do Inferno, uma canção de amor de Anacreonte...

Entre uma legião de cetros e tonsuras,
Voltaire, viu-me e sorriu, com um sorriso endiabrado
de caveira, a expelir das órbitas escuras
ironias, de um tom de bronze avermelhado...

Blasfemava, estalando as hirtas ossaturas
do esqueleto e mostrando o braço descarnado,
num gesto de rebelde às lívidas alturas
e a enterrar-se ainda mais no Inferno, brado a brado...

Erguia, empós, o olhar da treva aos coruchéus
e escarrava, dizendo, em nojo, que o fazia
no orgulho de Lusbel, sobre a fronte de Deus!
E, quando assim falavam os seus lábios, à míngua
de fé, de gota em gota, entre assombrado, eu via
como um visgo de fogo a escorrer-lhe da língua...

Também lá te encontrei, Tristan Corbière, nas grutas
do Demônio, cantando umas canções remotas
como o oceano, que morde as praias de ouro, enxutas,
no virente esplendor das vivas bergamotas...

Tremia-te entre as mãos, em púrpuras volutas
de sons, a harpa do Mal, fazendo, sob as cotas
dos hoplitas do Inferno, o amor ao sangue e às lutas
triunfar transluminoso, em túmidos Eurotas...
Os teus olhos cruéis, em damas de palhetas
de ouro jalde, varando as vastidões aflitas
silenciavam do fogo as púrpuras trombetas
de bronze, que, a planger, nas místicas oblatas
sangrentas do Demônio, em helicinas malditas,
acordavam do Inferno as furnas escarlatas...

Desbordes e Mallarmé oscularam-me a fronte
e passaram, por uma azul chama impelidos;
chamei-os e o rumor das lavas do Aqueronte
triste abafou-me a voz, cerceando-me os sentidos...
Quando acordei me vi perto da negra fonte,
entre um vivo clamor de pragas e gemidos,
diante do inquieto olhar de um cérbero bifronte
com os olhos como dois santelmos acendidos...

Vi, momento depois, em palidez exangue,
Rimbaud e Villiers de L'Isle Adam, chorando,
e o seu pranto infernal era de lodo e sangue...

E, quando recuei de agro pavor, Lilian
surgiu-me e, empós, se foi pelas trevas clamando:
Satã! Satã! Satã! Satã! Satã! Satã!