O raio que não cessa
Miguel Hernández (1910-1942)
Um carnívoro punhal
De suave asa homicida
Mantém seu voo e seu brilho
Em redor de minha vida.
RaIo de metal crispado,
Faiscantemente caído,
Esporeia meu costado
Onde faz seu triste ninho.
Minha têmporas, janelas
Floridas da mocidade,
Estão negras e, com elas,
As cãs de meu coração.
Tão malvada é a natureza
Do raio que me esporeia
Que vejo meus verdes anos
Como a lua vê a aldeia.
Recolho nestas pestanas
O sol da alma e do olho,
Flores de teia de aranha
De minhas tristezas colho.
Aonde irei que não vá
A perdição me buscar?
Teu fado é de praia e minha
Vocação é a do mar.
Descansar desta labuta
De tufão, de amor, de inferno
É impossível, e a dor
Fará meu pesar eterno.
Mas no fim te vencerei,
Ave, raio secular,
Coração, porque da morte
Ninguém me faz duvidar.
Anda, pois, anda, punhal
Voa, fere, que algum dia
Montarás, tempo amarelo,
Em minha fotografia.
(Trad. Mário Faustino)