Amigos do Fingidor

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sexta-feira, 9 de julho de 2010

Visão de São Paulo à noite – Poema Antropófago sob Narcótico

Roberto Piva (1937-2010)


Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
          acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
          chupando-se como raízes

Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
          feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
          definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apoia em nada
eu não me apoio em nada

sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos

beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
         enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola

eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
         partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
         vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
         abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
         colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta

chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
         correrias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
         entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
         e o Estrondo

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Soneto 241 – Ensaístico

Glauco Mattoso

Chamemo-la de fase iconoclasta,
à minha poesia antes de cego.
Pintei, bordei. Porém não a renego.
Forçou-me a invalidez a dar um basta.

A nova não é casta, nem contrasta
com velhas anarquias. Só me entrego
ao pé, onde em soneto a língua esfrego.
Chamemo-la de fase podorasta.

Mas nem por isso é menos transgressiva.
Impõe-se um paradoxo na medida
da forma e da temática obsessiva:

na universalidade presumida,
igualo-me a Bocage, Botto e Piva.
Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Os anjos de Sodoma

Roberto Piva

Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder o ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando a
loucura e o arrependimento de Deus