O amor transido
Anacreonte (Século VI a.C.)
A noite passada,
à hora em que a Ursa
mais perto discursa
da mão do Boieiro;
e o sono profundo
no grêmio fagueiro
por todo esse mundo
restaura os mortais,
em meio era a noite;
o exemplo dos mais
no leito eu seguia;
sereno dormia . . .
À porta imprevisto
Cupido me bate!
À pressa me visto;
redobra o rebate;
acudo a correr.
“Sou eu, – diz de fora, –
não tens que temer;
sou um pequenino
que vaga, a tal hora,
molhado e sem tino,
perdido no escuro,
pois lua não há.”
Ouvi-lo gemendo
de mágoa me corta;
a lâmpada acendo,
franqueio-lhe a porta. . .
em casa me está!
Descubro (em verdade
mentido não tinha)
gentil criancinha
com arco e carcás.
Remexo nas brasas
da minha lareira;
restauro a fogueira;
as mãos, que são gelo,
lhe aqueço nas minhas,
lhe espremo o cabelo,
lhe enxugo as asinhas;
já frio não faz.
“Vejamos se a chuva
(dizia e sorria)
a corda do arco
me não danaria!”
Levanta-o do chão;
recurva-o, dispara
no meu coração.
A frecha que o vara
parece um tavão.
Eu, dores danadas,
e o doido às risadas,
de gosto a pular!
“– Meu caro hospedeiro,
(me diz prazenteiro)
agora é folgar.
Permite me ausente;
meu arco está são...
Quem fica doente
é teu coração!”
(Trad. Antônio Feliciano de Castilho)