Amigos do Fingidor

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

o século

Zemaria Pinto




no espelho partido eu vi minha face torta
vi meu olho derramado
em órbitas desesperadas
meu olho tentando sobreviver
eu vi o mar nos meus olhos
e senti o gosto, o gosto horrível do sal
queimar minha língua impura
eu vi uma cortina de sangue sobre minha cabeça
ouvi o ranger dos dentes
o abrir e fechar das portas
– como é difícil, pai!
o espelho refletia a miséria dos meus olhos
a miséria que eu via embaçada
a insegurança de ser
cada vez mais forte dentro de mim
tudo o mais natural
tudo trêmulo, trânsito
– tão difícil de entender

no espelho partido vi minha face torta
uma mulher morta vestida com um punhal
patético como uma vida
natural como uma vida
– estético para planos dramáticos –
quem furou o olho do rei?
quem matou o filho do deus?
– como é difícil explicar um espelho!
a sala escura fechou-me para o mundo
foi o espelho partido a última visão
a face torta, a frase morta
a frase oca, a face louca
o espelho mentindo através dos séculos
– mentem mais os espelhos partidos

no espelho partido vi uma face torta
vi um olho derramado
vi o mar
e bebi o sal, o maravilhoso sal
que me abriu a boca às impurezas do mundo
e vi sangue, vi dentes
vi portas exangues
vi também uma mulher vestida de preto
com um punhal na mão
o rei o deus a sala eu vi
– eu vi o século refletido em um espelho justo!


                                                             (1974)