Amigos do Fingidor

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Na frente de casa

Davi Soledade


Ela saia às sete.
Sempre com seus lisos cabelos pretos impecavelmente penteados.
Sua face alva como a neve parecia-me demais inerrônea.
Tudo esteticamente perfeito… feições divinas.

Ela cursava letras.
Em suas mãos pálidas cortadas por esverdeadas veias
Havia sempre um livro diferente a cada semana.
Hemingway, Bukowski, Dostoiévski, Carlos Drummond, Thiago de Mello.
Eram seus preferidos; como ela gostava de ler!

No canto superior de seus lábios convidativos ao beijo
Havia uma sutil cicatriz.
Uma particularidade que me fazia almejá-la ainda mais.

Eu nunca soube a história daquela cicatriz.
E nem a de sua dona.

Ela voltava da faculdade à tarde, lenta.
Da janela de casa eu a observava.
Era sempre a mesma rotina.
E eu assistia aquela epopeia morna com um apreço latente.

Quando ela saia à rua, raríssimas vezes,
Eu passava ao seu lado, em sentido contrário.
E contemplava sua beleza, discretamente.
E ela contemplava aquela face embasbacada tentando conter-se.

Ela passava por mim quase muda.
Comunicava do seu íntimo uma sutil antipatia por mim.
Por que aquele desprezo?
Só porque eu era decassilabamente incorreto?

Da janela de casa eu não a tinha visto chegar.
Naquele dia só ouvi o choro de seus pais.
Eu não estava bem.
E meus lábios nunca tocariam aquela cicatriz.

Eu nunca desconfiei que aquela epopeia morna teria fim.
Ela nunca desconfiou que um dia não fosse voltar.
Ela nunca desconfiou que não terminaria de ler Crime e Castigo.
E ela nunca desconfiou que na frente de sua casa morava um poeta.