Zemaria Pinto
quando a manhã se avizinha
polifônica, difusa
marcada na voz dos pássaros
e na luz que aos poucos abre
seu manto branco cobrindo
o corpo nu da cidade
revejo no espelho baço
meu rosto esculpido em sombras
as rugas, a calva
os olhos sem viço
o nariz inchado
os últimos dentes
a pele oleosa
poros dilatados
lábios engelhados
herpes recorrente
(o que foi feito de mim?
os sonhos despedaçados
são cicatrizes forjadas
sobre a pele macerada:
a incompletude do amor
a falência da família
a inoperância de Deus
o desconsolo da lida)
a lâmina deixa rastros
ao rastejar por meu rosto:
são caminhos improváveis
pelos quais nunca passei
aventuras passageiras
projetos que não vingaram
– o espelho reflete apenas
as ruínas semeadas
no espelho o rosto
recebe o sol
que o dia jorra
pela janela:
do queixo o sangue
flui numa gota
de desencanto
de desalento
(quem é esse que me fita
do lado de lá do espelho
os olhos embaciados
prenhes de noite e tristeza?
é o fantasma de mim mesmo
espectro do que não fui?
ou sou eu mesmo o fantasma
a me assombrar diariamente?)