Amigos do Fingidor

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Estante do tempo

Oráculo
L. Ruas (1931-2000)


Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Daquele que é amado por mim.
Tenho muita pena.

Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Porque aquele que eu amar
Jamais
Terá um só momento de paz.

Aquele que eu mais amar
Jamais terá dias tranquilos
Nem mesmo aos domingos
Ele poderá se divertir.
Por exemplo, não terá
Aquela paz necessária que é preciso ter
Para passar um dia inteiro, de calção,
Num balneário. E se sentir feliz.
E, à noite, não frequentará buates
Nem “dancings”, nem “night clubs”,
Porque já não terá mais em si
A tranquilidade inócua dos felizes.

Não digo que ele não vá. Isso não.
Ele vai, mas, não como os outros vão.
Porque o que ele busca nessas coisas
Não é mais felicidade. Nem prazer.
O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.
Porque eu o amo de tal modo
Que ele quer me encontrar em toda parte.
Aquele que eu amo, disse-me o meu Deus,
Fica besta que nem poeta enamorado:
Me julga ver em toda parte e em todo mundo.
E não se cansa nunca de me procurar.
Por ele, nunca mais me largaria
Nunca mais estaria longe de mim.
E este desejo de estar perto de mim,
Sempre,
É que o fere e o maltrata.
Um dos que eu mais amei, foi Paulo,
Aquele judeu nascido em Tarso.
Outro que também muito amei foi Francisco.
Aquele nascido em Assis, na Úmbria – Itália.
E vocês bem sabem as tolices que fizeram.
Se a causa de tudo aquilo não fosse meu amor
Eu vos digo que não aprovaria o que fizeram:
Não aprovaria ter Francisco brigado com seu pai
Nem Paulo ter apelado, tolamente, para César.
Isso não são coisas que um homem de bem deva fazer...
Mas, enfim, o culpado fui eu que muito amei.

É por isso, disse-me o meu Deus,
Que eu não amo todos os homens igualmente.
Porque eu não sei amar de outro modo
Só sei amar assim, desmedidamente.
Não sei amar como amam os homens “comportados”:
Com elegância , com medida, com “finesse”.
Porque eles são feitos com medida e com limites.
Mas eu sou o “sem limites”e o “sem medidas”.
Por isso não amo todos igualmente:
Escolho entre muitos os que podem
Suportar as minhas exigências. Os mais fortes.
Porque depois de algum tempo ficam fracos
E consumidos pelo meu amor que os devora.
Eu sei, disse-me o meu Deus, que muitos gostariam
Que eu os amasse como amei Francisco e Paulo.
Mas eles não sabem muito bem o que desejam.
Eu sei que eles não resistiriam ao muito amor
Porque são limitados e muito fracos.
Por isso não amarei todos igualmente
Porque mesmo os mais fortes quase não resistem.
Ainda hoje acho graça dos doutores, disse Deus,
Que querem explicar as cantigas de João da Cruz
E as visões da minha Tereza D’Avila
Como um simples caso de psicopatologia.

E, depois, disse Deus, eu mesmo quis que houvesse
Entre os homens e, mesmo, em minha Igreja,
Um certo clima de paz e de sossego
Para que as coisas fossem feitas devagar
Como convém que se faça entre os humanos.
Porque só eu sei fazer, com rapidez,
Coisas bem feitas, bem perfeitas.
Mas os homens não sabem e é preciso,
Por isso, dar-lhes tempo e alguma paz.
Mas, aqueles que eu amo perdem a paz
E querem fazer tudo logo de uma vez.
E não deixam mais ninguém ficar em paz.
Atrapalham mesmo os meus Pontífices
No governo da Igreja se eu não chego
A tempo de impedir que assim o façam.
Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.
E eu os quero assim. Mas, nem sempre
Meus Pontífices são meus amados também.

Tenho muita pena, disse Deus,
Daquele que é amado por mim.
Porque é muito triste ver um homem
Pequeno, limitado, circunscrito,
Querendo satisfazer o meu amor
Ilimitado.

Tenho muita pena, disse Deus,
E, muitas vezes, também choro
Quando, a sós, ele chora,
Me suplica e implora
Para que me afaste dele.
Tenho muita pena, mas, não posso
Fazer nada por ele senão mesmo
Mais amá-lo, mesmo que não queira.