Amigos do Fingidor

domingo, 31 de janeiro de 2010

Tintoretto (1518-1594)

Women Playing Music.

Minha pátria é minha língua

Vou morrendo devagar

Domingos Caldas Barbosa (1738-1800)


Eu sei, cruel, que tu gostas,
Sim gostas de me matar;
Morro, e por dar-te mais gosto,
Vou morrendo devagar:

Eu gosto morrer por ti;
Tu gostas ver-me expirar;
Como isto é morte de gosto,
Vou morrendo devagar:

Amor nos uniu em vida,
Na morte nos quer juntar;
Eu, para ver como morres,
Vou morrendo devagar:

Perder a vida é perder-te;
Não tenho que me apressar;
Como te perco morrendo,
Vou morrendo devagar:

O veneno do ciúme
Já principia a lavrar;
Entre pungentes suspeitas
Vou morrendo devagar:

Já me vai calando as veias
Teu veneno de agradar;
E gostando eu de morrer,
Vou morrendo devagar:

Quando não vejo os teus olhos,
Sinto-me então expirar;
Sustentado d’esperanças,
Vou morrendo devagar:

Os Ciúmes e as Saudades
Cruel morte me vêm dar;
Eu vou morrendo aos pedaços,
Vou morrendo devagar:

É feliz entre as desgraças,
Quem logo pode acabar;
Eu, por ser mais desgraçado,
Vou morrendo devagar:

A morte, enfim, vem prender-me,
Já lhe não posso escapar;
Mas abrigado a teu Nome,
Vou morrendo devagar.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901)

Baile no Moulin Rouge.

Poesia em tradução

Perdoa se te vou assim buscando

Pedro Salinas (1892-1951)


Perdoa se te vou assim buscando
tão torpemente, dentro
de ti.
Perdoa se te dôo, alguma vez.
Mas quero arrancar de ti
teu melhor tu.
Este que não te veste e que desvendo,
nadador por teu fundo, preciosíssimo.
E apanhá-lo
para o erguer bem alto como faz
a árvore com a luz última
que arrebatou do sol.
E em busca desse tu
ao alto então virias.
Para chegar ali
subindo sobre ti, como te quero,
tocando agora o teu passado apenas
com as rosadas pontas de teus pés,
o corpo todo tenso, já ascendendo
de ti para ti mesma.

E ao meu amor então responda
a nova criatura que tu eras.


(Trad. Ivo Barroso)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Lorenzo Lippi (1606-1665)

Allégorie de la musique.

Vida bandida

Bernardo Vilhena


Chutou a cara do cara caído
traiu o melhor amigo
corrente soco-inglês e canivete
o jornal não poupou elogios
sangue & porrada na madrugada
É preciso viver malandro
não dá pra se segurar
a cana tá brava a vida tá dura
mas um tiro só não dá pra derrubar
correr com lágrimas nos olhos
não é pra qualquer um
mas o riso corre fácil
quando a grana corre solta
precisa ver os olhos da mina
na subida da barra
aí é só de brincadeira
ainda não inventaram dinheiro
que eu não pudesse ganhar

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Esta é a postagem 1.001!

Leonardo da Vinci (1452-1519)
.
Leda.

Ninguém

Cláudio Fonseca


Um dia ele chegou à beira deste lago.
E aqui seu coração tombou, feito em destroços.
Veio a solidão da pedra e da serpente
e um leve refluir de rostos sobrepostos.

Ninguém lhe viu cair, da face, o brilho quente.
Nem seu mergulhar nas águas transparentes.

Ninguém viu sua dor correr pela cidade,
bater em cada esquina e porta, como um dardo.
Ninguém viu transpirar das árvores um grito.
E nem dali voar o pássaro assustado....

Nem a dor voltar em busca de um ausente.
Nem seu mergulhar nas águas transparentes.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Willem Drost (1633-1659)

Bathsheba.

Dabacuri - amazônica 9

Zemaria Pinto


peixe moqueado,
pimenta e farinha d’água
– manjar amazônico



à beira do lago,
alegria domingueira
– almoço em família

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Jose Royo

Rosa y nacar.

Flechas

Romyne Novoa



Calçadas e paralelepípedos seguem pelo passeio
de portos que se abrem ao despojo de amigos.
Espectros falam e dançam.
Já não há mais festa no cabaré, mas ainda se sente
o cheiro de dinheiro queimando enquanto
descortina-se o cenário do funeral de Manaus...

Os sinos dobram na igreja do santo revolucionário
que agoniza as dores das flechas,
numa expressão cansada de luta e de revolta,
sendo ele então o primeiro a assistir ao último filme
de um diretor falido...

E o féretro prossegue timidamente pela praça.
Somente os pombos o acompanham.
O vento apagou as velas levantando a poeira
que se esconde sutil por entre trilhos asfaltados.
Como se o público do teatro deixasse os camarotes para,
chorando, participar do adeus a um ente querido...

Agora, a cúpula esconde a noite em meio ao contraste do caos.
O cheira-cola, o travesti e a prostituta choram como quem ri.
E tudo segue sua dialética, mesmo tendo
que comer do outro, vivo, as vísceras...

Sinos dobram dolorosamente.
Poucas mãos carregam a madeira mórbida.
E as lágrimas que escorrem são somente as das velas que,
apiedadas, voltaram a acender.
Mas até que o soldado apareça com a revolução,
inspirado naquele que olha da igreja,
ainda haverá quem escarre na lápide contra a ressurreição,
mesmo que se troque a dieta das vísceras pela das flores...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Lovis Corinth (1858-1925)

Birth of Venus.

Estante do tempo

Às dez horas de uma noite triste
Mady Benzecry (1933-2003)


NÃO TE DEMORES MEU BEM!...
Minhas mãos ainda estão trêmulas
das carícias que te deram...
Ainda se estendem quentes, delirantes,
ainda se crispam dos anseios que tiveram
ao maltratar-te a pele...
Chamam-te ainda nervosas, implorantes
mas, já não estás comigo,
lembro triste,
faz apenas meia hora que partiste...

NÃO TE DEMORES, MEU BEM!...
Meus lábios permanecem entreabertos,
como se ainda esmagados contra os teus,
bebessem teu sangue nos desertos.
Ainda estão úmidos e sentem o jogo intenso
que tua boca transportada de desejo,
derramou na avidez de um infindo beijo...
Mas já não estás comigo,
lembro triste,
faz apenas meia hora que partiste...

NÃO TE DEMORES MEU BEM!...
Meu corpo ainda está como o deixaste,
morno... todo marcado da volúpia
com que o amaste...
No entanto, ainda deseja como um louco
languidamente entregar-se, e pouco a pouco,
matar a sede deste amor que não mataste!
Mas, já não estás comigo,
lembro triste,
faz apenas meia hora que partiste!...

domingo, 24 de janeiro de 2010

Amedeo Modigliani (1884-1920)

Autoritratto.

Minha pátria é minha língua

Nascemos um para o outro, dessa argila
Raul de Leoni (1895-1926)


Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço de longe o oráculo de Eleusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Jacob Jordaens (1593-1678)

Allegory of Fertility.

Poesia em tradução

Vogal (em duas versões)
Arthur Rimbaud (1854-1891)





A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
Ainda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas e areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas, vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos;
– O! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!


(Trad. Augusto de Campos)



A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais,
Um dia hei de dizer vossas fontes latentes:
A, negro e veludoso enxame de esplendentes
Moscas a varejar em torno aos chavascais,

Golfos de sombra; E, alvor de tendas tumescentes,
Lanças de gelo altivo, arfar de umbelas reais;
I, púrpuras, cuspir de sangue, arcos labiais
Sorrindo em fúria ou nos transportes penitentes;

U, ciclos, vibrações dos mares verdes, montes
Semeados de animais pastando, paz das frontes
Rugosas de buscar alquímicos refolhos;

O, supremo Clarim de estridores profundos,
Silêncios a esperar pelos Anjos e os Mundos:
– O, o Ômega, clarão violáceo de Seus Olhos!


(Trad. Ivo Barroso)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875)

Diana and Actaeon (detail).

Excesso

Sílvia Teixeira


Não optarei por qual das metades.
Eu quero o copo cheio!
Não quero parcimônia
cerimônia, indício de razão sensata.
Quero o leite com a nata!
Quero o repente, gesto impensado, ato impulsivo.
A palavra trocada que provoca o riso.
Quero a dose inteira, exata.
Quero amor de medicina alopata (com efeitos colaterais).
Quero conversas banais,
voz rouca
som alto
corpo inteiro.
Viver com amor e com dinheiro.
Quero respostas simples, muitas perguntas complexas.
Quero cores, flores, serestas...
Quero o excesso.
Não me venha com a prudência do meio.
Eu quero o copo cheio!

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Francesco Ballesio (1860-1923)

Odalisque.

Dois poemas do Carajo

Simão Pessoa


I


Um dia junto os cacos
E corto os pulsos
Um dia queimo os sonhos
Nego tudo
Um dia mato um rico
Muito puto
Um dia deixo de lado
Esses escrúpulos...



II


Ó primavera insubmissa
que pernoitas no deserto
decerto que não percebes
a mágoa que nos aflige:
esse verão miserável
circunscrito em seu casulo
de nódoa sujou o nicho
reduplicando a carência
agora resseca os campos
o gado a gente as primícias
vem logo ao nosso encontro
ó primavera sem vísceras!

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Vincent Van Gogh (1853-1890)

Self-portrait, dedicated to Gauguin.

retrato

Zemaria Pinto


Meu velho espelho noturno
meu companheiro de insônia
inda vês a mesma face
de outros tantos anos findos
nesta que se te apresenta
com as estrelas da manhã?

– Não mais há luz, posso ver
na noite que se derrama
dos girassóis de teus olhos
e a revolta cabeleira
ressonha revoluções
nos arredores da calva.

– No canto esquerdo da boca
uma rubra flor de herpes
afina inda mais teus lábios.
Dentes a menos há muitos
em tua boca emoldurada
por essa pífia papada.

O silêncio da parede
reflete apenas a ausência
daquele que eu nunca fui.
Na madrugada vazia
ouço rasgar meu soluço
ressonando a solidão.

Em qual Cecília, meu rosto,
ficou meu espelho perdido?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

John Collier (1850-1934)

The Land Baby.

Dia & Rio

Grace Cordeiro

o dia refaz a rotina da sina
bela e naufragante rotina
o dia acende o osso
(Dylan Thomas)

o dia rói o osso
o dia queima o osso
o dia come o osso
porque o osso dói no dia

o pão nosso que nos redime
e nos oprime
marcha lentamente pelas vitrines

o dia consola a amante, diamante
o dia sorri solenemente, diariamente
o dia cospe na grama, diagrama

diadorim, diabrura
diarréia, diabetes
o dia brilha nos olhos
a noite morre nos olhos
fossas, olhos, ossos – o rio leva

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Mustapha Merchaoui

The Birth of Venus.

Estante do tempo

Os rebanhos da fuga
Guimarães de Paula (1932-1996)




Pelos campos da vida

meus sonhos sombras de mim mesmo

tais como rebanhos

sem água e sem pasto

fogem à procura de Deus.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Edouard Manet (1832-1883)

Baudelaire's Mistress, Reclining.

Túmulo de Baudelaire

Eduardo Guimaraens (1892-1928)


Um anjo, que possui uma espada de chama,
hirto e pálido, à fronte um halo virginal,
guarda o Túmulo, junto ao mármore imortal,
a que o Poeta desceu, cego de luz e lama.

Outro, que às mãos desfralda o ardor de uma auriflama,
olha, cismando, o azul profundo como o mal;
e Lúcifer, enfim, magnífico e fatal,
tem à boca a revolta em que a blasfêmia clama.

Entre a aridez da terra e a solidão noturna,
fundo abismo, do espaço ao lúgubre esplendor,
fendem-se do Desejo as largas fauces de urna.

E as Danaides, de aspecto envelhecido e eterno,
tentam encher em vão esse tonel de horror!
Ora, lá dentro, o Céu! Uiva, lá dentro, o Inferno!

sábado, 16 de janeiro de 2010

Maerten van Heemskerck (1498-1574)

Venus and Cupid.

Poesia em tradução

O corvo e a raposa
La Fontaine (1621-1695)

É fama que estava o corvo
Sobre uma árvore pousado,
E que no sôfrego bico
Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro àquele sítio
Veio a raposa matreira,
A qual, pouco mais ou menos,
Lhe falou desta maneira:

“Bons dias, meu lindo corvo;
És glória desta espessura;
És outra fénix, se acaso
Tens a voz como a figura!”

A tais palavras o corvo
Com louca estranha afouteza,
Por mostrar que é bom solfista
Abre o bico, e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho,
E diz: “Meu amigo, aprende
Como vive o lisonjeiro
À custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo,
Tem destas para teu uso.”
Rosna então consigo o corvo,
Envergonhado e confuso:

“Velhaca! Deixou-me em branco,
Fui tolo em fiar-me dela;
Mas este logro me livra
De cair noutra esparrela.”


(Trad. Bocage)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Salomon de Bray (1597-1664)

Jeune femme.

Cena doméstica

Nilto Maciel


Havia um porco no quintal da casa
e estava morto sobre o chão e só.
Voavam pelos ares muitas moscas,
como a querer comê-lo, devorá-lo.
Havia ainda abelhas a voar,
e aranhas lentas nas paredes sujas.
Havia nas pessoas velhas, toscas,
canina fome, como a dos insetos.
Havia dor em toda parte, e banha,
assim como torresmo e alguma sanha.
Havia em mim uma vontade enorme
de não ser gente como aqueles vermes,
de não ser mosca e muito menos porco.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Giovanni Boldini (1842-1931)

Alla Toeletta.

Amazona

Jacob Ohana


Teu viço é o mito, o arco, a guerra, a flecha,
que entre as pedras do rio te regenera
no cheiro do cardume ao teu encontro.

Lenda de fósseis por tragado encanto,
que o fruto, a folha e a flor ocultam
na pele ao mel
que o âmbar hostiliza.

Seiva de luas cheias, as veias
tecem terços de raízes
na crina dada ao vento e à selva
que habita a virgindade do teu pólen.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Jean-Baptiste Greuze (1725-1805)

Le Chapeau blanc.

exercício nº 17

Zemaria Pinto


de cinco mil sementes repartidas
em outras cinco mil repetições
transforma-se a parede num festim
de gritos e sussurros sem sentido

miríades de sonhos e de sons
de um outro inferno ainda refletidas
são fugas recorrentes de mim mesmo
na sordidez do tempo aprisionadas

da câmara sombria um som se eleva
em timbres modulados na memória
buscando a quintessência do silêncio
na velha luta vã contra as palavras

pois o poema é nada mais que isso
música para surdos – nada mais

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Umberto Boccioni (1882-1916)

Volumi orizzontali.

A flor do pântano

Michele Pacheco


A noite finda
na alvorada sei que está lá
envolta pela névoa fina e gélida
nasceu, cresceu na lama negra
dentre árvores
cujas raízes formam esculturas
num palácio de troncos retorcidos
gótico, exótico, torpe
passou pelas quatro estações
as tempestades de verão
o inverno rigoroso
viu tudo em volta ser destruído.

Quem a vê
deixa-se levar pela cor rosa cintilada
pelas pétalas aveludadas
pelo seu doce perfume
sua beleza delicada sussurra:
– Venha mim... Venha a mim...
homens, cobiçando possuí-lá
não percebem
a flor do pântano criou espinhos
para defender-se de vermes rastejantes
e o perfume que exala é venenoso
e o matará lentamente.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Karen Aghamyan

The birth of Venus.

Estante do tempo

Mensagem do amanhã
Farias de Carvalho (1930-1997)



Essa aurora que vem será dos puros,
dos bem-aventurados loucos de hoje;
dos que trocaram o paletó de carne
pela túnica azul dos infinitos.

Essa aurora que vem será dos poetas,
esses feitores mágicos de mundos,
– galopadores das palavras vivas
que serão a estrutura do amanhã.

Essa aurora que vem, cairá das mãos
desses pálidos anjos que andam, à noite,
tatuando mensagens nos espaços...

Essa aurora que vem, magicamente
pulará da cartola de Carlitos
com a chave de amor do mundo novo!

domingo, 10 de janeiro de 2010

Hans Holbein, the Younger (1497-1543)

Thomas Morus.

Minha pátria é minha língua

Versos íntimos
Augusto dos Anjos (1884-1914)


Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

sábado, 9 de janeiro de 2010

Cornelis Van Haarlem (1562-1638)

Bathsheba.

Poesia em tradução

Ao Sonho
Pietro Bembo (1470-1547)


Sonho, que docemente me hás furtado
à morte, e do meu mal me deste olvido,
de que porta de céu, nobre e polido,
desceste a consolar um desgraçado?

Qual anjo há sobre mim o olhar pousado,
que à minha causa foste assim movido
e trouxeste evasão ao meu estado,
que sem ti não na houvera conseguido?

Bendito, pois bendito me fizeste:
que as asas não te levem tão depressa
a não me tolher logo o que me deste.

Volta ao menos por onde agora vais:
dá-me provar ventura igual a essa
que já fora de ti não sinto mais.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Jean-François de Troy (1679–1752)

Diana And Her Nymphs Bathing.

Psicografia

Ana Cristina César (1952-1983)



Também eu saio à revelia

e procuro uma síntese nas demoras

cato obsessões com fria têmpera e digo

do coração: não soube e digo

da palavra: não digo (não posso ainda acreditar

na vida) e demito o verso como quem acena

e vivo como quem despede a raiva de ter visto

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Leon Bazile Perrault (1832-1908)

Vanitas.

O espelho e o tempo

Maria Luiza Damasceno
Para Zemaria Pinto


O tempo teria me enrijecido
se não me tornasse vulnerável.
Ainda assim, mesmo diante do espelho,
não caio na armadilha
que o tempo me pregou.
Olho e vejo a espada
(poderia ser lança, poderia...)

No lugar de teus cabelos brancos,
uma expressão de loucura.
Nas marcas de expressão,
tortura.

Sim, eu me gosto agora.
Antes, consumida.
Hoje assumida/mente,
ainda procuro inventar
um mundo melhor,
presente.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Edgar Degas (1834-1917)

Ballet School.

Bailarina

Zemaria Pinto
Para Carol Figueiredo


um dia eu sonhei que voava
e fiz uma canção
que dediquei a você
e nessa canção eu cantava
a leveza do corpo
bailando nas nuvens
da imaginação

veja você como o tempo destrói
as lembranças
mas os sonhos resistem
e eu vou lhe fazer
uma nova canção
bailarina

ah, bailarina bailarina
hoje quem voa é você

o palco é pequeno pro salto
e o abraço no ar é o poema
que eu nunca escrevi

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Tamara de Lempicka (1898-1980)

Adam and Eve.

Eu te amo

Cândida Alves



Colando o meu rosto
no pelo macio do teu peito
não posso encontrar
um defeito na vida

Meu corpo estreito
        sem jeito
te cobre com força
e te beijo

Teu beijo
me escorre na cara
escancaras na boca
um bocejo

e dormes...

Respiro com calma
             com tara
me sento em teu colo
                    te olho
não fico com medo

Procuro teus dedos
que toco
e enrosco nos meus
pensando em voz alta
meu Deus eu amo esse cara
                            esse homem

então sinto fome...

Vou à geladeira
encontro uma pera
e como
sentada na pia

Um gato que mia lá fora
me lembra na hora
meu gato sozinho na cama

Eu corro e te encontro
com os olhos fechados,
suando
sonhando comigo talvez

e sigo te olhando, babando,
pensando

meu Deus como eu amo
e proclamo:
sou tua, sou tua
enquanto adormeço ao teu lado
tranquila
e completamente nua

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Pam & Stewart Phillippo

Birth of Venus.

Estante do tempo

A vela que passou
Violeta Branca (1915-2000)



Singrando o mar,
uma vela
passou na noite triste...
Alguém, dentro dela,
ia cantando sob o luar
a mesma canção que cantei
quando partiste.
Quem cantava, não sei...
A vela passou na noite quieta...
Serias tu, marinheiro-poeta,
que ias cantando assim,
acordando a tristeza dentro de mim?

Pelo mar agitado a vela passou...
Tenho os olhos molhados
de quem chorou...

domingo, 3 de janeiro de 2010

Eugene Benson (1839-1908)

Spring.

Minha pátria é minha língua

Se apartada do corpo a doce vida
Sóror Violante do Céu (1602-1693)


Se apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Se ausente d’alma estou, que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte,
Já que se foi Silvano, venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.

Ah, suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga a querer vir dar-me vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?

Mas se n’alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Théodore Chassériau (1819-1856)

The Tepidarium.

Poesia em tradução

Se quereis conhecer o meu senhor
Gaspara Stampa (1523-1554)



Se quereis conhecer o meu senhor,
Suponde alguém de vago e doce aspecto,
Jovem na idade e velho no intelecto,
A imagem do triunfo e do valor;

Claro o cabelo e a tez de viva cor,
De boa altura e de garboso peito,
Em tudo quanto faz um ser perfeito,
Só que um pouco (ai de mim!) cruel no amor.

E se quiserdes conhecer meu porte,
Vede alguém que nos gestos e semblante
É a imagem dos martírios e da morte;

Fortaleza da fé, pura e constante,
Alguém que embora sofra, arda e suporte,
Não faz piedoso ao seu cruel amante.


(Trad. Ivo Barroso)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)

Female Nude.

Movimento

Etiane Ruas




quero ser mais que um punhal

– uma lança atravessando na contramão –

arrebentando as resistências
interpelando as reticências

            no mais, ter trajetória livre
            com direito a rosto ao vento