Amigos do Fingidor
quinta-feira, 30 de abril de 2009
Aldebarã
Heloisa Cardoso
Lá em Aldebarã
o banho é de igarapé,
Iara vem me pentear
e o Boto me contar estórias...
Lá o que não tem é balança;
Glicose e Colesterol
são nomes dos cachorrinhos
que brincam pelo quintal.
O peixe cheira na grelha
e a pimenta no prato
a rede é uma nuvem branca
no céu de Aldebarã.
Lá eu leio a Odisséia
e faço crochê tão bonito
como fazia minha mãe.
Lá, sofrer do coração,
só com lágrimas de amor
quando navego o Poeta.
Por isso humildemente
peço licença ao Manuel
e digo aos meus amigos:
me levem pra Aldebarã!
Lá em Aldebarã
o banho é de igarapé,
Iara vem me pentear
e o Boto me contar estórias...
Lá o que não tem é balança;
Glicose e Colesterol
são nomes dos cachorrinhos
que brincam pelo quintal.
O peixe cheira na grelha
e a pimenta no prato
a rede é uma nuvem branca
no céu de Aldebarã.
Lá eu leio a Odisséia
e faço crochê tão bonito
como fazia minha mãe.
Lá, sofrer do coração,
só com lágrimas de amor
quando navego o Poeta.
Por isso humildemente
peço licença ao Manuel
e digo aos meus amigos:
me levem pra Aldebarã!
quarta-feira, 29 de abril de 2009
Anavilhanas, laudes
Zemaria Pinto
serena manhã –
o mundo se movimenta
nos olhos do iguana
o barco pesqueiro
desliza delicadeza
sobre o espelho Negro
manhã de silêncios –
a gaivota rasga o ar
em busca da presa
sobre o fundo verde
da floresta em movimento:
as flores silvestres
sob a morna brisa
os raios de sol se espraiam
– murmúrio das águas
fuga em revoada –
a dissonância dos pássaros
reinventa o dia
serena manhã –
o mundo se movimenta
nos olhos do iguana
o barco pesqueiro
desliza delicadeza
sobre o espelho Negro
manhã de silêncios –
a gaivota rasga o ar
em busca da presa
sobre o fundo verde
da floresta em movimento:
as flores silvestres
sob a morna brisa
os raios de sol se espraiam
– murmúrio das águas
fuga em revoada –
a dissonância dos pássaros
reinventa o dia
terça-feira, 28 de abril de 2009
A poesia
João Alves
A poesia vem de onde não há palavra.
– onde nada é eloquente.
Onde é o silêncio quem fala
e as frases não são para quem ouve e sim para quem sente.
Lugar que todos possuem, contudo poucos o sabem.
– porém jamais se disse que inexistente.
Onde tudo muda e persiste.
E que, desigual a nós, não é submisso ao tempo.
Onde tudo existe e inexiste
Para ser de novo como outrora, intenso.
A poesia está cá e é o que me vive...
– A poesia vem de dentro.
A poesia vem de onde não há palavra.
– onde nada é eloquente.
Onde é o silêncio quem fala
e as frases não são para quem ouve e sim para quem sente.
Lugar que todos possuem, contudo poucos o sabem.
– porém jamais se disse que inexistente.
Onde tudo muda e persiste.
E que, desigual a nós, não é submisso ao tempo.
Onde tudo existe e inexiste
Para ser de novo como outrora, intenso.
A poesia está cá e é o que me vive...
– A poesia vem de dentro.
segunda-feira, 27 de abril de 2009
Estante do tempo
A Muhuraida, Canto 3º (fragmento)
Henrique João Wilkens (17??-18??)
Atentos ouvem todos a proposta,
Ainda que estranha, sem maior reparo,
Pois a Verdade bela nada oposta
É bárbara fereza, ou peito avaro.
Mas entre os Anciões, um Velho encosta
A ressecada mão, com gesto raro,
Na negra face adusta, e enrugada,
Estremado responde, em Voz irada.
Oh, dos teus poucos anos, louco efeito!
Da confiança vil, temeridade!
Que atenção nos merece, ou que conceito,
Conselho, que envilece a tua idade?
Queres, que ao ferro, generoso peito
Entregue a Paz? Ou perca a liberdade,
A doce liberdade, o valeroso
Muhura, em grilhão pesado, e vergonhoso?
Já não lembra o agravo, a falsidade,
Que contra nós os Brancos maquinaram?
Os Autores não foram da crueldade?
Eles, que aos infelices a ensinaram?
Debaixo de pretextos de Amizade,
Alguns matando, outros maniataram,
Levando-os para um triste Cativeiro,
Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro.
Grilhões, Ferros, Algemas, Gargalheira,
Açoutes, Fomes, Desamparo e Morte,
Da ingratidão foi sempre a derradeira
Retribuição, que teve a nossa sorte.
Desse Madeira a exploração primeira,
Impediu, por ventura, o Muhura forte?
Suas Canoas vimos navegando,
Diz, fomos, por ventura, os maltratando?
Para os alimentar, matalotagem
Buscava nosso Amor, nosso cuidado;
A Tartaruga, o Peixe na viagem
Lhes dávamos, e tudo acompanhado
De frutas, e tributos de homenagem,
Em voluntária oferta, que frustrado
O receio deixasse; a Confiança
Aumentando, firmasse a Aliança.
Que mais fazer podia o Irmão? O Amigo?
Que provas queres mais de falsidade?
São estes entre os quais buscas Abrigo?
É nesta em que te fias amizade?
Ah Muhura incauto! Teme o inimigo
Que tem de falso toda a qualidade.
O que a força não pode, faz destreza,
Valor equivocando co’a Vileza.
Assim falando o Velho se levanta,
O lento passo ao Bosque encaminhando.
Mas o Orador de nada já se espanta,
Pois tal oposição stava esperando:
E como nele obrava força santa
De um Deus, que o mesmo esforço ia aumentando;
Nos bárbaros infunde um tal conceito,
Que a preferência alcança, co o respeito.
Henrique João Wilkens (17??-18??)
Atentos ouvem todos a proposta,
Ainda que estranha, sem maior reparo,
Pois a Verdade bela nada oposta
É bárbara fereza, ou peito avaro.
Mas entre os Anciões, um Velho encosta
A ressecada mão, com gesto raro,
Na negra face adusta, e enrugada,
Estremado responde, em Voz irada.
Oh, dos teus poucos anos, louco efeito!
Da confiança vil, temeridade!
Que atenção nos merece, ou que conceito,
Conselho, que envilece a tua idade?
Queres, que ao ferro, generoso peito
Entregue a Paz? Ou perca a liberdade,
A doce liberdade, o valeroso
Muhura, em grilhão pesado, e vergonhoso?
Já não lembra o agravo, a falsidade,
Que contra nós os Brancos maquinaram?
Os Autores não foram da crueldade?
Eles, que aos infelices a ensinaram?
Debaixo de pretextos de Amizade,
Alguns matando, outros maniataram,
Levando-os para um triste Cativeiro,
Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro.
Grilhões, Ferros, Algemas, Gargalheira,
Açoutes, Fomes, Desamparo e Morte,
Da ingratidão foi sempre a derradeira
Retribuição, que teve a nossa sorte.
Desse Madeira a exploração primeira,
Impediu, por ventura, o Muhura forte?
Suas Canoas vimos navegando,
Diz, fomos, por ventura, os maltratando?
Para os alimentar, matalotagem
Buscava nosso Amor, nosso cuidado;
A Tartaruga, o Peixe na viagem
Lhes dávamos, e tudo acompanhado
De frutas, e tributos de homenagem,
Em voluntária oferta, que frustrado
O receio deixasse; a Confiança
Aumentando, firmasse a Aliança.
Que mais fazer podia o Irmão? O Amigo?
Que provas queres mais de falsidade?
São estes entre os quais buscas Abrigo?
É nesta em que te fias amizade?
Ah Muhura incauto! Teme o inimigo
Que tem de falso toda a qualidade.
O que a força não pode, faz destreza,
Valor equivocando co’a Vileza.
Assim falando o Velho se levanta,
O lento passo ao Bosque encaminhando.
Mas o Orador de nada já se espanta,
Pois tal oposição stava esperando:
E como nele obrava força santa
De um Deus, que o mesmo esforço ia aumentando;
Nos bárbaros infunde um tal conceito,
Que a preferência alcança, co o respeito.
domingo, 26 de abril de 2009
Minha pátria é minha língua
Sísifo
José Paulo Paes (1926-1998)
hoje agora me decido
depois amanhã hesito
o dia detém meu passo
a noite cala meu grito
deuses onde? céu existe?
céu existe? deuses onde?
um eco que faz perguntas
um espelho que responde
e eu sísifo tardotriste
a tilintar as correntes
de dilemas renitentes
lá me vou sem vez nem voz
rolar as pedras dos mudos
pela montanha dos sós
José Paulo Paes (1926-1998)
hoje agora me decido
depois amanhã hesito
o dia detém meu passo
a noite cala meu grito
deuses onde? céu existe?
céu existe? deuses onde?
um eco que faz perguntas
um espelho que responde
e eu sísifo tardotriste
a tilintar as correntes
de dilemas renitentes
lá me vou sem vez nem voz
rolar as pedras dos mudos
pela montanha dos sós
sábado, 25 de abril de 2009
Poesia em tradução
Rubaiyat (fragmento)
Omar Khayyam (1050?-1123?)
Nosso tesouro? O vinho.
O palácio? A taverna.
E os fiéis companheiros?
O vinho e a embriaguez.
Ignoramos o medo,
Pois sabemos que nossos
Corações, nossas almas,
Nossas copas e nossas
Roupas enodoadas
Pelas bebidas, nada,
Nada podem temer
Do pó, da água, do fogo.
(Trad. Manuel Bandeira)
Omar Khayyam (1050?-1123?)
Nosso tesouro? O vinho.
O palácio? A taverna.
E os fiéis companheiros?
O vinho e a embriaguez.
Ignoramos o medo,
Pois sabemos que nossos
Corações, nossas almas,
Nossas copas e nossas
Roupas enodoadas
Pelas bebidas, nada,
Nada podem temer
Do pó, da água, do fogo.
(Trad. Manuel Bandeira)
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Outono em Washington
Lêdo Ivo
Uma chuva de folhas douradas
cai e espanta os esquilos de Washington
que não podem catar suas nozes
sem que não sejam incomodados.
Insólito aguaceiro de dólares
atrapalha as pombas que passeiam
entre os sapatos dos intocáveis
e talvez gripados milionários.
O estrondeio dos aviões a jato
estilhaça nos ares de estanho
os direitos civis dos pardais
em voo do Obelisco ao Potomac.
E o turbilhão de vento e folhagem
crispa a orquídea na loja de flores
entre o Bank of América e a noite
nos abrigos contra a bomba atômica.
Uma tempestade de corn-flakes
cai sobre as moças em flor que vão
aos psiquiatras perguntar como
lidar com as máquinas de amor.
Chuva de apartes no Capitólio.
Republicanos e democratas
dão ao foguete chamado Apolo
um prazo para chegar à Lua.
Um anjo de goma e pepsi-cola
faz o pedestre apressar o passo
nas avenidas incandescentes
de olhos de vidro inquebrável e aço.
Na poderosa e marmórea Washington
cheia de templos greco-latinos
só a borracha da noite de outono
apaga as garatujas dos homens.
Uma chuva de folhas douradas
cai e espanta os esquilos de Washington
que não podem catar suas nozes
sem que não sejam incomodados.
Insólito aguaceiro de dólares
atrapalha as pombas que passeiam
entre os sapatos dos intocáveis
e talvez gripados milionários.
O estrondeio dos aviões a jato
estilhaça nos ares de estanho
os direitos civis dos pardais
em voo do Obelisco ao Potomac.
E o turbilhão de vento e folhagem
crispa a orquídea na loja de flores
entre o Bank of América e a noite
nos abrigos contra a bomba atômica.
Uma tempestade de corn-flakes
cai sobre as moças em flor que vão
aos psiquiatras perguntar como
lidar com as máquinas de amor.
Chuva de apartes no Capitólio.
Republicanos e democratas
dão ao foguete chamado Apolo
um prazo para chegar à Lua.
Um anjo de goma e pepsi-cola
faz o pedestre apressar o passo
nas avenidas incandescentes
de olhos de vidro inquebrável e aço.
Na poderosa e marmórea Washington
cheia de templos greco-latinos
só a borracha da noite de outono
apaga as garatujas dos homens.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Soneto de um novembro findo
Francisco Calheiros
A mim me resta apenas o desejo
de perecer seguindo algum espaço,
de naufragar na busca do que faço,
de reviver da forma em que me vejo:
um flagelo de homem de tristeza,
proletário de um mundo sem sentido
que, quanto mais se busca, se é vencido
pelas farpas do tempo da pobreza.
Que me resta, senão a própria morte?
Enfim, somente o ocaso faz-se eterno,
num horizonte assim a me ocultar.
A mim me restará também a sorte
de um homem que não soube ser moderno,
mas que viveu somente para amar.
A mim me resta apenas o desejo
de perecer seguindo algum espaço,
de naufragar na busca do que faço,
de reviver da forma em que me vejo:
um flagelo de homem de tristeza,
proletário de um mundo sem sentido
que, quanto mais se busca, se é vencido
pelas farpas do tempo da pobreza.
Que me resta, senão a própria morte?
Enfim, somente o ocaso faz-se eterno,
num horizonte assim a me ocultar.
A mim me restará também a sorte
de um homem que não soube ser moderno,
mas que viveu somente para amar.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
Anavilhanas, vésperas
Zemaria Pinto
o coral dos encantados
vestido em verde/arco-íris
acompanha-se de naipes
invisíveis
a percussão da água
as cordas do vento
os sopros do sol
até o último
movimento
a capela, em pianíssimo,
a noite
com seus sussurros
o coral dos encantados
vestido em verde/arco-íris
acompanha-se de naipes
invisíveis
a percussão da água
as cordas do vento
os sopros do sol
até o último
movimento
a capela, em pianíssimo,
a noite
com seus sussurros
terça-feira, 21 de abril de 2009
O meu cadáver
Ricardo Lima
O meu cadáver apodrece na colina cinzenta…
Folhas marrons vêm cobri-lo com melancolia
Entre as árvores retorcidas que tremulam.
Abutres assomam lá no alto, em meio
A nuvens inquietas e sob o céu azul,
Voando em círculos dançando a coreografia
Do hediondo.
O vento sussurra na floresta
E logo surgem as sombras do crepúsculo.
Não há lagrimas para meu infortúnio,
Bem como não há melodias angelicais da tristeza.
Nem discursos acalorados lamentando meu voltar a terra…
Agora surgem vermes para sepultar-me…
O meu cadáver apodrece na colina cinzenta…
Folhas marrons vêm cobri-lo com melancolia
Entre as árvores retorcidas que tremulam.
Abutres assomam lá no alto, em meio
A nuvens inquietas e sob o céu azul,
Voando em círculos dançando a coreografia
Do hediondo.
O vento sussurra na floresta
E logo surgem as sombras do crepúsculo.
Não há lagrimas para meu infortúnio,
Bem como não há melodias angelicais da tristeza.
Nem discursos acalorados lamentando meu voltar a terra…
Agora surgem vermes para sepultar-me…
segunda-feira, 20 de abril de 2009
Anjo noturno
Djalma Passos (1923-1990)
Não busques conhecer a estranha alma do poeta
Nem perguntes de onde vem seu corpo desvairado
Nesta noite de lúbricos rumores...
Não somos duas almas paralelas
Mas nossos caminhos têm a fatalidade do mesmo destino...
Somos filhos desta mesma lua
São nossas todas as estrelas
E merecemos a brisa que agora nos envolve.
Quero afagar as tuas asas, anjo noturno,
Sentir a paisagem triste do teu corpo
Sem olhar a tua alma cheia de pecados...
Depois partiremos para sempre
E mais uma vez, anjo das noites inesperadas,
Enfrentarás a aurora...
Não busques conhecer a estranha alma do poeta
Nem perguntes de onde vem seu corpo desvairado
Nesta noite de lúbricos rumores...
Não somos duas almas paralelas
Mas nossos caminhos têm a fatalidade do mesmo destino...
Somos filhos desta mesma lua
São nossas todas as estrelas
E merecemos a brisa que agora nos envolve.
Quero afagar as tuas asas, anjo noturno,
Sentir a paisagem triste do teu corpo
Sem olhar a tua alma cheia de pecados...
Depois partiremos para sempre
E mais uma vez, anjo das noites inesperadas,
Enfrentarás a aurora...
domingo, 19 de abril de 2009
Minha pátria é minha língua
Lembrança de morrer
Álvares de Azevedo (1831-1852)
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos — bem poucos — e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo....
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta — sonhou — e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha
Que minh'alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
Mas quando preludia ave d'aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!
Álvares de Azevedo (1831-1852)
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos — bem poucos — e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo....
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta — sonhou — e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha
Que minh'alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
Mas quando preludia ave d'aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!
sábado, 18 de abril de 2009
Poesia em tradução
Neste momento terno e pensativo
Walt Whitman (1819-1892)
Neste momento terno e pensativo
aqui sentado a sós
sinto que existem noutras terras outros homens
ternos e pensativos,
sinto que posso dar uma espiada
por cima e avistá-los
na França, Espanha, Itália e Alemanha,
ou mais longe ainda
no Japão, China ou Rússia,
falando outros dialetos,
e sinto que se me fosse possível
conhecer esses homens
eu poderia bem ligar-me a eles
como acontece com homens de minha terra,
ah e sei que poderíamos
ser irmãos ou amantes
e que com eles eu estaria feliz.
(Trad. Geir Campos)
Walt Whitman (1819-1892)
Neste momento terno e pensativo
aqui sentado a sós
sinto que existem noutras terras outros homens
ternos e pensativos,
sinto que posso dar uma espiada
por cima e avistá-los
na França, Espanha, Itália e Alemanha,
ou mais longe ainda
no Japão, China ou Rússia,
falando outros dialetos,
e sinto que se me fosse possível
conhecer esses homens
eu poderia bem ligar-me a eles
como acontece com homens de minha terra,
ah e sei que poderíamos
ser irmãos ou amantes
e que com eles eu estaria feliz.
(Trad. Geir Campos)
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Soneto
Chico Buarque
Por que me descobriste no abandono?
Com que tortura me arrancaste um beijo?
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono?
Com que mentira abriste meu segredo?
De que romance antigo me roubaste?
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo?
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio?
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio?
Por que me descobriste no abandono?
Com que tortura me arrancaste um beijo?
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono?
Com que mentira abriste meu segredo?
De que romance antigo me roubaste?
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo?
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio?
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio?
quinta-feira, 16 de abril de 2009
Silêncio
Engels Medeiros
Psiiiuuu
o silêncio
é a noite no cio
que invade a alma
do quarentão solitário
e o transforma
em lobo vadio
psiiiuuu
o silêncio
é o dia vazio
que vaga de quarto em quarto
como um escarro
que dá arrepio
psiiiuuu
o silêncio
é o homem arredio
que corta a madrugada
a frio
e se torna dinamite
sem pavio
psiiiuuu
Psiiiuuu
o silêncio
é a noite no cio
que invade a alma
do quarentão solitário
e o transforma
em lobo vadio
psiiiuuu
o silêncio
é o dia vazio
que vaga de quarto em quarto
como um escarro
que dá arrepio
psiiiuuu
o silêncio
é o homem arredio
que corta a madrugada
a frio
e se torna dinamite
sem pavio
psiiiuuu
quarta-feira, 15 de abril de 2009
romança
2° movimento (noturno)
Zemaria Pinto
havia o vento que desvendava
suavemente a pele morena
nave noturna
suavemente
havia a água que transbordava
alucinante a dourada fúria
colo de espuma
alucinante
havia a terra que aconchegava
dilacerante a fértil ravina
vale sagrado
dilacerante
e havia o fogo que iluminava
serenamente o fugaz momento
gozo profundo
serenamente
Zemaria Pinto
havia o vento que desvendava
suavemente a pele morena
nave noturna
suavemente
havia a água que transbordava
alucinante a dourada fúria
colo de espuma
alucinante
havia a terra que aconchegava
dilacerante a fértil ravina
vale sagrado
dilacerante
e havia o fogo que iluminava
serenamente o fugaz momento
gozo profundo
serenamente
terça-feira, 14 de abril de 2009
Purificação
Gracinete Felinto
A voz se cala
e no silêncio
busco na alma
o pouso do pássaro branco.
O espelho de tecidos
vivos
preso nesse labirinto
expõe meus desejos e angústias
que vorazes pela fuga
tecem uma luta constante
As cortinas do passado
abrem-se
e a projeção da consciência
eleva-se
numa análise breve
dos atos infundados
Os olhos refletem direção
os passos seguem retilíneos
e o corpo recebe a leveza
das asas fechadas desse pássaro.
A voz se cala
e no silêncio
busco na alma
o pouso do pássaro branco.
O espelho de tecidos
vivos
preso nesse labirinto
expõe meus desejos e angústias
que vorazes pela fuga
tecem uma luta constante
As cortinas do passado
abrem-se
e a projeção da consciência
eleva-se
numa análise breve
dos atos infundados
Os olhos refletem direção
os passos seguem retilíneos
e o corpo recebe a leveza
das asas fechadas desse pássaro.
segunda-feira, 13 de abril de 2009
Estante do tempo
Árvore ferida
Álvaro Maia (1893-1969)
Ante a constelação do céu florindo em lume
temos, ó árvore, o mesmo ideal e a mesma sina...
Sangrou-me o peito inerme a sensação divina,
como a acha te sangrou em golpe de negrume.
Dando esmola ao faminto e consolo à ruína
subimos em bondade, ardemos em perfume...
Bendita a dor criadora, o perfurante gume,
que em mim produz o verso e em ti produz resina...
Ninguém virá curar-te! Apenas os ramalhos
ensinarão à flor a música dos galhos
e ensinarão ao galho as lutas das raízes.
Ninguém virá curar-me! Os meus versos apenas
serão o bálsamo esfeito em minhas próprias penas,
sob a ronda de dor dos dramas infelizes.
Álvaro Maia (1893-1969)
Ante a constelação do céu florindo em lume
temos, ó árvore, o mesmo ideal e a mesma sina...
Sangrou-me o peito inerme a sensação divina,
como a acha te sangrou em golpe de negrume.
Dando esmola ao faminto e consolo à ruína
subimos em bondade, ardemos em perfume...
Bendita a dor criadora, o perfurante gume,
que em mim produz o verso e em ti produz resina...
Ninguém virá curar-te! Apenas os ramalhos
ensinarão à flor a música dos galhos
e ensinarão ao galho as lutas das raízes.
Ninguém virá curar-me! Os meus versos apenas
serão o bálsamo esfeito em minhas próprias penas,
sob a ronda de dor dos dramas infelizes.
domingo, 12 de abril de 2009
Minha pátria é minha língua
Poema em linha reta
Fernando Pessoa (1888-1935)
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa (1888-1935)
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
sábado, 11 de abril de 2009
Poesia em tradução
Balada dos enforcados
François Villon (1431-1463)
Homens irmãos que a nós sobreviveis,
Não nos tenhais o coração fechado;
A pena que por nós demonstrareis
Mais cedo Deus terá de vosso estado.
Aqui nos vedes juntos, cinco, seis;
Nossos corpos, demais alimentados,
Agora estão podridos, devorados,
E os nossos ossos vão ao pó volver.
Que não se ria alguém de nossos fados,
Mas peça a Deus que nos queira absolver!
Se de irmãos vos chamamos, não deveis
Mostrar desdém, embora condenados
Por justiça. Contudo, bem sabeis,
Nem todos são os homens assisados.
Junto ao Filho da Virgem bem podeis
Interceder de coração lavado:
Não haja a graça para nós secado
E do raio infernal nos possa haver.
Mortos, noss'alma já nos tem deixado;
Pedi a Deus que nos queira absolver!
Eis que a chuva nos gasta e lava, e eis
Que o sol nos enegrece e tem secado.
Pega ou corvo dos olhos nos desfez
E tem-nos barba e cílios arrancado.
Nossos corpos agitam-se, revéis,
Daqui, dali, ao vento balançados,
Sem cessa a seu prazer; de aves bicados,
Chegamos com dedais nos parecer.
Não queirais ser dos nossos congregados,
Mas pedi que Deus nos queira absolver!
Príncipe Jesus, mestre incontestado,
De nós não se haja o inferno apoderado,
Que ali não temos que pagar nem ver.
Homens, nada vai nisto de zombado:
Rogai a Deus que nos queira absolver!
(Trad. Ivo Barroso)
François Villon (1431-1463)
Homens irmãos que a nós sobreviveis,
Não nos tenhais o coração fechado;
A pena que por nós demonstrareis
Mais cedo Deus terá de vosso estado.
Aqui nos vedes juntos, cinco, seis;
Nossos corpos, demais alimentados,
Agora estão podridos, devorados,
E os nossos ossos vão ao pó volver.
Que não se ria alguém de nossos fados,
Mas peça a Deus que nos queira absolver!
Se de irmãos vos chamamos, não deveis
Mostrar desdém, embora condenados
Por justiça. Contudo, bem sabeis,
Nem todos são os homens assisados.
Junto ao Filho da Virgem bem podeis
Interceder de coração lavado:
Não haja a graça para nós secado
E do raio infernal nos possa haver.
Mortos, noss'alma já nos tem deixado;
Pedi a Deus que nos queira absolver!
Eis que a chuva nos gasta e lava, e eis
Que o sol nos enegrece e tem secado.
Pega ou corvo dos olhos nos desfez
E tem-nos barba e cílios arrancado.
Nossos corpos agitam-se, revéis,
Daqui, dali, ao vento balançados,
Sem cessa a seu prazer; de aves bicados,
Chegamos com dedais nos parecer.
Não queirais ser dos nossos congregados,
Mas pedi que Deus nos queira absolver!
Príncipe Jesus, mestre incontestado,
De nós não se haja o inferno apoderado,
Que ali não temos que pagar nem ver.
Homens, nada vai nisto de zombado:
Rogai a Deus que nos queira absolver!
(Trad. Ivo Barroso)
sexta-feira, 10 de abril de 2009
Espelho
Carlos Nejar
Imune ou solidário,
não cerro meu poema
com persianas
e horários.
O homem se reconhece
mesmo sem identidade.
Também se conhece o jugo
apesar de seu disfarce,
as idades, os escudos,
as armaduras de sangue.
O homem se reconhece
na escuridão, sem assunto:
pode ser encontro breve
quando as estrelas avultam,
pode ser para o soluço,
pode ser para um assunto
de pistolas e defuntos.
Sobretudo nos tropeços,
o homem se reconhece.
quinta-feira, 9 de abril de 2009
jamais esquecerei
Dori Carvalho
jamais esquecerei
o irmão que matou o irmão
e todos perguntavam
se lavaram o sangue do chão
jamais esquecerei
o pai passando susto no menino
e o medo das águas revoltas
lagrimando nos olhos pequeninos
jamais esquecerei
o pé-de-ferro, o sapato, o martelo
e o silvo do pássaro-preto
alegrando o trabalho do velho
jamais esquecerei
o menino que namorava a menina
e na distância nem sabia
estar gravada nas tímidas retinas
jamais esquecerei
a velha e boa senhora
lavando roupa, fazendo comida
pronta para os filhos a toda hora
jamais esquecerei
o papagaio cortando os ares
e aquela mão desconhecida
partindo sonhos estelares
jamais esquecerei
as pequenas mãos apavoradas
na escuridão daqueles tempos
queimando livros na madrugada
jamais esquecerei
para dona Cilota, minha mãe
jamais esquecerei
o irmão que matou o irmão
e todos perguntavam
se lavaram o sangue do chão
jamais esquecerei
o pai passando susto no menino
e o medo das águas revoltas
lagrimando nos olhos pequeninos
jamais esquecerei
o pé-de-ferro, o sapato, o martelo
e o silvo do pássaro-preto
alegrando o trabalho do velho
jamais esquecerei
o menino que namorava a menina
e na distância nem sabia
estar gravada nas tímidas retinas
jamais esquecerei
a velha e boa senhora
lavando roupa, fazendo comida
pronta para os filhos a toda hora
jamais esquecerei
o papagaio cortando os ares
e aquela mão desconhecida
partindo sonhos estelares
jamais esquecerei
as pequenas mãos apavoradas
na escuridão daqueles tempos
queimando livros na madrugada
jamais esquecerei
quarta-feira, 8 de abril de 2009
romança
1° movimento (modinha)
Zemaria Pinto
reza, vela, terra nua,
lembranças de nem-me-lembro,
festa de febre, louvor
para os peixes de setembro.
abre-se o rio numa flor,
o azul veludo vigia,
desce a negra com seu manto:
água, vaga melodia,
espanto, sussurro, canto,
desejo, espasmo, agonia
– explode em carne meu verso
pra fazer nascer o dia!
sobre o cimo do universo,
despida de linho ou lã,
a lima de aço flutua
nos fumos da antemanhã.
Zemaria Pinto
reza, vela, terra nua,
lembranças de nem-me-lembro,
festa de febre, louvor
para os peixes de setembro.
abre-se o rio numa flor,
o azul veludo vigia,
desce a negra com seu manto:
água, vaga melodia,
espanto, sussurro, canto,
desejo, espasmo, agonia
– explode em carne meu verso
pra fazer nascer o dia!
sobre o cimo do universo,
despida de linho ou lã,
a lima de aço flutua
nos fumos da antemanhã.
terça-feira, 7 de abril de 2009
Eu, menino, perdido do que hoje sou
Inácio Oliveira
Eu, menino, perdido do que hoje sou.
Acordava cedo para roubar a aurora
E ir correndo mostrá-la aos amigos.
Minha mãe preparava o café
De encher a manhã inteira,
Meu pai ordenhava o dia
No amanhecer do curral
E uma felicidade de sol na varanda
Atravessava a vida da gente.
Eu, menino, perdido do que hoje sou.
Acordava cedo para roubar a aurora
E ir correndo mostrá-la aos amigos.
Minha mãe preparava o café
De encher a manhã inteira,
Meu pai ordenhava o dia
No amanhecer do curral
E uma felicidade de sol na varanda
Atravessava a vida da gente.
segunda-feira, 6 de abril de 2009
Estante do tempo
Alma de marujo
Mavignier de Castro (1891-1970)
Amo, às vezes, fitar como os marujos
do velho cais, ao céu crepuscular,
o perfil oscilante dos saveiros
e o adeus das velas para o meu olhar.
Ao contato dos barcos forasteiros,
sinto em mim o desejo singular
de correr mundo como os marinheiros,
de ser marujo dominando o mar...
É que, de certo, em épocas remotas,
as minhas ilusões foram gaivotas
no anil dos mares, ao rugir do Sul...
E, além seguiram – desgraçadas delas! –
o roteiro de sol das caravelas
talvez perdidas nesse abismo azul!...
Mavignier de Castro (1891-1970)
Amo, às vezes, fitar como os marujos
do velho cais, ao céu crepuscular,
o perfil oscilante dos saveiros
e o adeus das velas para o meu olhar.
Ao contato dos barcos forasteiros,
sinto em mim o desejo singular
de correr mundo como os marinheiros,
de ser marujo dominando o mar...
É que, de certo, em épocas remotas,
as minhas ilusões foram gaivotas
no anil dos mares, ao rugir do Sul...
E, além seguiram – desgraçadas delas! –
o roteiro de sol das caravelas
talvez perdidas nesse abismo azul!...
domingo, 5 de abril de 2009
Minha pátria é minha língua
cogito
Torquato Neto (1944-1972)
eu sou como sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem grandes secretos dentes
nesta hora
eu sou como sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
Torquato Neto (1944-1972)
eu sou como sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem grandes secretos dentes
nesta hora
eu sou como sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
sábado, 4 de abril de 2009
Poesia em tradução
nalgum lugar em que eu nunca estive
e. e. cummings (1894-1962)
nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda parte;
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade; cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
(Trad. Augusto de Campos)
e. e. cummings (1894-1962)
nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda parte;
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade; cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
(Trad. Augusto de Campos)
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Lusco e fusco
Tânia Diniz
Entreternu(r)a
entre ondas
de lençóis,
entreabertos
nuvens e sóis
da noite
Em vôo cego
em nervoso açoite
de lábios e músculos
me procuras
Te entrenego
entrebuscas
me entrescondo
(entretranso)
entrefugindo
me encontras
Me entrego
e venho
tempo de se ter
te entre tenho.
Entreternu(r)a
entre ondas
de lençóis,
entreabertos
nuvens e sóis
da noite
Em vôo cego
em nervoso açoite
de lábios e músculos
me procuras
Te entrenego
entrebuscas
me entrescondo
(entretranso)
entrefugindo
me encontras
Me entrego
e venho
tempo de se ter
te entre tenho.
quinta-feira, 2 de abril de 2009
O ser de cada um
Candinho
O ser de cada um é que é bonito
simples essência de uma outra esfera
que se mutila, que se dilacera
para dar sopro vivo a um ser finito
Parte é matéria e força é o outro extremo
que se juntam para o divino ofício
dar cumprimento ao grande sacrifício
da purificação do Eu supremo
Entendamos – cada um é a própria cura
é a redenção da sua forma pura
precisamos ter consciência ao menos
Precisamos crescer, ser mais humanos
pois quanto mais humanos nos tornamos
mais divinos e eternos parecemos
O ser de cada um é que é bonito
simples essência de uma outra esfera
que se mutila, que se dilacera
para dar sopro vivo a um ser finito
Parte é matéria e força é o outro extremo
que se juntam para o divino ofício
dar cumprimento ao grande sacrifício
da purificação do Eu supremo
Entendamos – cada um é a própria cura
é a redenção da sua forma pura
precisamos ter consciência ao menos
Precisamos crescer, ser mais humanos
pois quanto mais humanos nos tornamos
mais divinos e eternos parecemos
quarta-feira, 1 de abril de 2009
exercício da crueldade
Zemaria Pinto
palavras são serpentes, são navalhas
são balas que explodem dentro do peito
de quem ouve e de quem fala!
palavras são serpentes, são navalhas
são balas que explodem dentro do peito
de quem ouve e de quem fala!
Assinar:
Postagens (Atom)