Amigos do Fingidor

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Andrzej Malinowski

Fil Bleu.

Poesia em tradução

Um parque de diversões na cabeça – 16
Lawrence Ferlinghetti
O Castelo de Kafka ergue-se sobre o mundo
como uma última bastilha
do Ministério da Existência
Seus acessos cegos nos confundem
Rotas íngremes
partem dele em direção a lugar algum
Estradas irradiam-se pelos ares
como um labirinto de fios
de uma central telefônica
através da qual todas as chamadas
mergulham no infinito insondável
Lá em cima
reina um clima perfeito
As almas dançam nuas
em grupos
e como vagos vadios
nos arredores de uma feira
Cobiçamos o inacessível
mistério imaginado
No entanto na parte de trás do castelo
como na entrada para o picadeiro de um circo
há uma fenda profunda, profunda nas muralhas
através da qual até os elefantes
podem entrar dançando

(Trad. Eduardo Bueno)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Henry Holiday (1839-1904)

Dante and Beatrice.

O livro da agonia I

Hildeberto Barbosa Filho

Nada sei dos homens nem dos deuses,
seus truques, sonhos, armadilhas e destinos,
nem nada sei da vida, cardume que se reinventa.
Nem nada sei do que na guerra existe,
do que na morte existe, do que na cor existe.
Sei que os homens sofrem porque lembram.
Sei que a cada manhã o tempo passa,
repartindo os filhos, as estórias, as mulheres
e que à noite restará um verso sem luz.
Nada sei, nada sei, nada sei,
mas quero guardar a alegria de cantar o amor.
Nada, nada, nada como o amor que vem,
invadindo as cidades, as catedrais, os ermos,
em louvor do grão da vida.
O resto é silêncio, como disse Shakespeare
e morrer também não é remédio.
Os livros não dizem tudo,
nem os astros nem as crenças.
As lições de partir
ficam aquém das estações e dos cais.
Só além do mar e dos teus olhos
eu vejo a ilha dos amores,
seus arrecifes de espinhas, seu gosto de sono,
a ressaca, o nunca mais.
Nada sei que me diga do definitivo pouso,
se há o ponto de apoio que procurava Konoválov,
se é possível o dantesco paraíso no meio do caminho,
ou tudo é selva escura, solidão, inferno?
Nada sei que me diga das estrelas,
nem do amor que tu me tinhas, seus topázios,
seus cabelos de silêncio.
Sei que os homens sofrem porque lembram.
Sei que o amor, o amor, o amor só é possível
reinventado...
E nada sei dos homens nem dos deuses,
se há o verso maior, o poeta maior, o amor maior,
se nesses dias brancos algum dia eu serei feliz.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Manabu Mabe (1924-1997)

Colheita de café.

Didática

Anibal Beça

Queda a palavra não dita
mas, dita pela escrita,
fica sem resposta clara,
se verde é o grão dessa fala.
Ai força que faz do verso,
misterioso vôo disperso,
aberto por linhas tortas:
chave do vento sem portas.
Nesse ofício da solidão,
o poeta arruma a alma:
espinho e palavra na mão.
E a pluma azul, aqui e agora,
decifra os signos e as coisas,
frágua do tempo e sua hora.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Francesco Hayez (1791-1882)

Venus playing with two doves.

exercício nº 7

Zemaria Pinto

palavras são pedras frias à margem
da estrada que atravessa o automóvel
são peixes mortos de dominga feira
cavalos pastando plástico e aço
palavras são carcaças na corrente
lavada em mercúrio e lama são galos
sem manhã cachorros atropelados
espelhos estilhaçados disparos
dispersos cabe ao poeta cuidar
que o lixo em transubstância invente
a dura geometria do poema
e o barulho o mau cheiro a porcaria
sobrepairem no éter sublimados
em cor ritmo imagem e harmonia

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Vincent Van Gogh (1853-1890)

Starry night over the Rhone.

Cantos das ruas

Marco Adolfs

Vou lhes contar uma história,
Com um pouco de verso e de troça;
É obra de desatinado poeta,
Que abandonou vida bem posta;
A coragem ele tirava da vida;
Da agrura e de tudo o que via;
Era um poeta sincero,
Desses que escrevem a lida;
Tornara-se poeta das ruas,
Em meio a pobres e vagabundos...
Preparem-se então pra escutar,
O que ele vai relatar:
– Sempre caminho em frente,
Pisando o bendito do chão;
Sigo o rumo escolhido;
Às vezes sem um tostão;
Mas esta é a vida incerta,
Que Deus me deu pra viver;
É vida pra ser sentida,
Como lição do saber;
Nesses caminhos de luta,
Encontrei alegria e tristeza;
Senti as dores do mundo;
Também falsidade e vileza;
Tudo em cada canto das ruas,
Em rostos de seres sem fim;
No rastro de becos e vielas;
Em almas passando por mim;
Tentava encontrar um começo;
Assim como um meio e um fim;
Travei conversas absurdas,
Em quartos alugados a mim;
Dormi com trapos sangrentos;
Em hálito de tragos sem fim;
Sonhei a Terra dos fracos;
Vivendo uma vida assim;
Acordava pelas tantas da noite,
E olhava as estrelas no céu;
Eram tantas a brilhar nas trevas,
Que eu tinha a certeza do céu;
Assim caminhei um bom tempo;
Antes de parar e escrever;
Peguei do papel e da tinta;
Rabisquei os segredos do ser;
Na solidão desta minha escritura,
Fazia então a poesia nascer;
Pensando em minha vida nas ruas,
Revelava o canto do crer;
Assim eu fui caminhando,
Nos cantos das ruas insanas;
Traçando meu pranto em palavras;
Lavrando o solo do ser.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Jean-Léon Gérôme (1824-1904)

Venus Rising.

Estante do tempo

O caçador e a tapuia
Francisco Gomes de Amorim (1827-1891)


“Tapuia, linda tapuia,
Que fazes no cacaual?”
– Por aqui é meu caminho
Para ir ao cafezal.

“Nem por aqui faz caminho,
Nem há café que apanhar;
Tapuia, linda tapuia,
Que vinhas aqui buscar?”

– Eu ia apanhar goiabas
Para dar a meu irmão.
“Ficam à beira do rio
Não é nesta direção”.

– Ando em busca de baunilha,
Que minha mãe me pediu.
“Menina, nos cacaueiros
Nunca a baunilha subiu”.

– Pois então... eu vou ao lago,
Donde meu pai há de vir...
“Ao lago por estes sítios!
Para que estás a mentir?”

– Se o branco tanto pergunta,
Que já não sei responder...
“Se tu dizer-me não queres,
O que vens aqui fazer!

Todos os dias te vejo
No meu cacaual andar;
Sempre seguindo meus passos,
Meus olhos sempre a fitar.

Pergunto-te o que me queres,
E tu olhas para mim;
Ou para longe te afastas,
Sorrindo-te sempre assim!

Vens assustar-me as cotias,
Pois nenhuma inda avistei;
Mas se tornas a seguir-me,
A teu pai me queixarei”.

– Adeus, branco; vou-me embora
Para não tornar a vir;
Se o branco não achou caça,
Não fui eu que a fiz fugir.

Não assusta a minha idade;
Que sou bela o branco diz;
Mas o que meus olhos mostram,
O meu branco ver não quis.

Eu sozinha atrás do branco,
Pelo cacaual andei;
E o branco se vem queixar
De que a caça lhe assustei!

Era a caça quem caçava
Ao cego do caçador!...
Quem vê tão pouco não caça,
Quem caça... adeus, meu amor.

“Anda cá, linda tapuia,
Não vás assim a fugir;
Tuas palavras tão doces
Volve, volve a repetir”.

– Para trás não volve a caça,
Meu branco, aprenda a caçar;
Quem deseja caça fina
Deve-a saber farejar.

Disse a tapuia, e na selva
Para sempre se ocultou;
Mas o caçador das dúzias
Parvo da caça ficou.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Diego Velázquez (1599-1660)

The Poet Don Luis de Góngora y Argote.

Minha pátria é minha língua

Da vez primeira em que me assassinaram
Mário Quintana (1906-1994)

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Jules Lefebvre (1836-1911)

Young Woman with Morning Glories in Her Hair.

Poesia em tradução

A uma dama, tendo-a visto menina, e depois moça feita
Luis de Góngora y Argote (1561-1627)


Se, entre as plumas do ninho seu, Cupido
o arbítrio me prendeu, que fará agora
que em teus olhos, dulcíssima senhora,
armado voa, já que não vestido?

Eu entre as violetas fui ferido
pela áspide que hoje entre os lírios mora:
igual força mostravas, sendo aurora,
à que tens como sol já bem nascido.

Saudarei tua luz com voz dolente,
qual terno rouxinol em prisão dura
despede queixas, mas bem docemente.

De raios vi, direi, tua fronte ardente
coroada; e que te faz a formosura
cantar as aves e chorar a gente.

(Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Johannes Vermeer (1632-1675)

View of Delft.

Alvíssaras

Antônio Lázaro de Almeida Prado

Que traz em seu alforje a madrugada?
E o áugure o que lê nas entrelinhas
Das arcanas entranhas do futuro?

Em seu ninho de fogo, generoso,
Que prepara em seu sangue o pelicano?
E Orfeu o que perscruta em sua lira?

Acaso já delira a pitonisa
Em sua embriaguez antevisora?
Qual a safra de sonhos do profeta?

Desvelo em seu tremor estas primícias
Do canto inaugural da Nova Idade,
E posso proferir meus vaticínios:

Haverá tanto amor na virgem Terra
Que seu mênstruo benéfico assegura
A vitória da Ovelha sobre o Lobo.

Tudo mais será escória do Passado,
Voz antiga, insensível, dispensável,
Que o fogo em seu ardor reduz a cinzas...

Embora infante boca do futuro
Já posso pronunciar meu Evangelho:
SOMENTE O AMOR INFLAMARÁ O PLANETA!

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Utagawa Hiroshige (1797-1858)

Man on horseback crossing a bridge.

6 haicais inéditos

Luiz Bacellar


Luar de agosto.
No alheio telhado ao lado
concerto de gatos.


Búfalos na estrada.
A lua viaja nos
lombos da manada.


Noite de piracema.
A lua indiscreta mostra
a rota do cardume.


A araponga bate
na bigorna do tempo
estilhaços de luz.


O gato interroga
com o olhar malandro
o voo da libélula.


O peixe cospe
pra fora do lago
uma bolha d'água.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Valery Kosorukov

Ebony with red flowers.

cantiga de amoramar

Zemaria Pinto

a noite tem mais segredos
nos olhos-noite de Márcia
nos lábios-jambo de Márcia
no canto que se derrama
pelo colo, pelo ventre
do corpo negro de Márcia

a noite só tem sentido
se a manhã se descortina
na madrugada dos olhos
dos olhos de mar de Márcia
nos longos braços-abraços
do corpo magro de Márcia

o açoite do vento morno
prenuncia a antemanhã
amalgamando o perfume
do hálito morno de Márcia
ao suor que lustra a pele
noturna pele de Márcia

o soar dos tamborins
fere o silêncio noturno
na tessitura do samba:
Márcia baila bailarina
traz nas mãos um arco-íris
e nos pés dois colibris

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Y. Filippov

Naked.

Em busca do sagrado

Rayder Coelho
À poética de Nelson Castro

Saio em busca do belo
do que antes era verbo
fragmentos do caos e do amor
crisálida aparição

Saio em busca do grão de areia
do nascimento de um poema
do silêncio, de um fonema
mater inspiração

Saio em busca da poesia lírica
do verso, de um livro aberto
da subjetividade de um feto
diáfana criação

Saio em busca do sagrado
da sensibilidade dos santos
do cálice e do sangue derramado
eterno perdão

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Friedrich von Amerling (1803-1887)

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

O touro
Ernesto Penafort (1936-1992)


o touro cinza traz sobre o ocipício
estranha meia lua eclipsada
no turvo olhar das vacas do Cambixe.
é belo o touro. o olhar (lâmina e gelo)
passeia-nos as almas decorando-as
como se fossem seus os nossos pastos.
de seu dorso escorrem-lhes os desejos
que se fincam nas patas feito plantas
de onde brota-lhe o viço das andanças.
um mugido de cores o ilumina
e a tarde se afugenta de seu lombo
sorvendo o que há de luz pela ravina.
é silêncio o curral. sobreflutua
eclipsada e estranha meia lua.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Boris Kustodiev (1878-1927)

Russian Venus.

Minha pátria é minha língua

Canto do regresso à pátria
Oswald de Andrade (1890-1954)

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Vincent Van Gogh (1853-1890)

Igreja em Auvers.

Poesia em tradução

A tumba de Edgar Poe
Stéphane Mallarmé (1842-1848)


Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,
O Poeta suscita com o gládio erguido
Seu século espantado por não ter sabido
Que nessa estranha voz a morte se insurgia!

Vil sobressalto de hidra ante o anjo que urgia
Um sentido mais puro às palavras da tribo,
Proclamaram bem alto o sortilégio atribu-
Ido à onda sem honra de uma negra orgia.

Do solo e céu hostis, ó mágoa! Se o que escrevo -
– Idéia e dor – não esculpir baixo-relevo
Que ao túmulo de Poe luminescente indique,

Calmo bloco caído de um desastre obscuro,
Que este granito ao menos seja eterno dique
Aos vôos da Blasfêmia esparsos no futuro.

(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Joan Miró (1893-1983)

Carnival of Harlequin.

A fera

Max Martins (1926-2009)

Das cavernas do sono das palavras, dentre
os lábios confortáveis de um poema lido
e já sabido
voltas

para ela - para a terra
maleável e amante. Dela
de novo te aproximas

e de novo a enlaças firme sobre o lago
do diálogo, moldas
novo destino

Firme penetra e cresce a aproximação conjunta
E ocupa um centro: A morte, a fera
da vida
te lambendo

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

George Frederic Watts (1817-1904)

Choosing.

Velho Tronco

Almino Affonso

Aos últimos clarões de um sol que expira,
Entre as escumas da corrente, à tona,
Um tronco desce... e como que ressona,
E no seu sono, a sonhar, delira!

Sonha, quiçá, sua fronde esmeraldina,
Onde as brisas cantavam serenatas,
E as aves, em sutis bandolinatas,
Abriam a voz numa explosão divina...

Frutos pendentes a dourar seus galhos
E as lianas vivendo de sua vida...
A fera, à sombra, a lhe pedir guarida,
Vindo sentir-lhe os mágicos retalhos...

Sonha, de certo, as noites de luar,
E o Madeira, tranqüilo, como em cisma,
Tendo nos versos do poeta – a crisma,
E no vento – um seresteiro a cantar.

Depois... a luta, o vendaval rugindo...
Folhas serpeando em doudos espirais...
Galhos rangendo entre gemidos e ais,
Ao chicotear dos ventos se partindo!

E os ninhos a rolarem pelo chão...
Aves implumes a chorar, piando...
E mais e mais, em fúrias, vergastando,
O temporal ribomba no trovão!

E por fim, a estrugir, fraqueja, cai
Sobre as águas barrentas do Madeira
– Líquida estrada de escumante esteira,
Onde sua vida, lenta, já se esvai!...

Velho Tronco! eu te entendo neste instante!
No teu silêncio eu descobri tua vida...
E em tua raiz, para o infinito erguida,
Uma bênção... um perdão edificante!

Ah! tu que foste fruto e sombra e ninho...
És sublime, ó Tronco, e eu te bendigo,
Pois rolando pra morte ainda és abrigo
Das garças e gaivotas do caminho!

* * *

Aprende, coração! E se na vida,
Em troca do bem, do amor que semeares,
Vires a ingratidão lá nos altares
A rir de ti, de tua ilusão sentida...

Relembra o Velho Tronco! E, já sumindo
Os últimos lampejos da existência,
Ampara o fraco e a tímida inocência,
E sentirás a vida reflorindo!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Franz Xaver Winterhalter (1805-1873)

Spring der Frubling.

os olhos da moça loura

Zemaria Pinto

os olhos da moça loura
passeiam no corredor
carregando o corpo magro
as mãos de lis matizadas
e a palidez de um sorriso
carregado de pudor

o corpo da moça loura
passando no corredor
envolto em véus de mistérios
lembra vultos vaporosos
de românticas donzelas
do tempo do imperador

ah moça loura que passa
que passa no corredor
dá-me teus olhos de água
dá-me tua boca, teus seios
dá-me teu sorriso pálido
dá-me dá-me tua dor

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Paul Gauguin (1848-1903)

Vairumati.

Dia de trabalho

Gadi

O relógio acorda a manhã
nas bocas o frescor de hortelã

Uma criança apedreja o galo
o café e a broa são estilhaçados

A produção nas fábricas começa
trabalhadores são fabricados.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1867)

Venus Anadyomene.

Estante do tempo

A Cegonha
Aníbal Teófilo (1873-1915)

Em solitária, plácida cegonha,
Imersa num cismar ignoto e vago,
Num fim de ocaso, à beira azul de um lago,
Sem tristeza, quem há que os olhos ponha?

Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha
Talvez, que o conde de um palácio mago,
Loura fada perversa, em tredo afago,
Mudou nessa pernalta erma e tristonha.

Mas eu, que em prol da Luz, do pétreo, denso
Véu do Ser ou Não Ser, tento a escalada,
Qual morosa, tenaz, paciente lesma,

Ao vê-la assim mirar-se n’água, penso
Ver a Dúvida Humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma!

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Chandos Portrait.
Retrato de Shakespeare. Autor desconhecido.

Minha pátria é minha língua

O Assinalado
Cruz e Sousa (1861-1898)

Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tua alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco...

Na Natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

sábado, 7 de fevereiro de 2009

John Everett Millais (1829-1896)

Ophelia.

Poesia em tradução

Hamlet
Ato III, Cena I (Solilóquio)

William Shakespeare (1564-1616)

Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais – herança do homem:
Morrer para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejemos com fervor.
Dormir... talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte os sonhos que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal-prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
– Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse atônita a resolução,
Nem nos fizesse tolerar os nossos males
De preferência a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação.

(Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Aldemir Martins (1922-2006)

Da série "Gato Azul".

O gato

Adriano Espínola
A Antônio Paulo Graça

Elástico,
caminha sobre o muro.

Com o focinho,
empurra a luz da manhã.

As patas ondulam,
silenciosas.

Refulge,
negramente esculpido,
na claridade.

É denso, atento, perfeito.

*

No entanto,
entre o chão e o ar,

o veloz perfil
desenha enigmas:

o gato é anterior
ou posterior às coisas?

Avança sobre a vigília
ou o sonho?

Que estágio da matéria
espreita o gato?

*

Ali, ele pára, pensativo.

Múltiplo
e sábio,

calcula o espaço
entre seu corpo

– e o telhado em frente.

Súbito,
salta
sobre o invisível.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Luigi Stallone (18??-18??)

Largo do Paço, Rio de Janeiro, em 1865.

Desce a noite no vale e as sombras cantam

Alencar e Silva

Desce a noite no vale e as sombras cantam
trescalantes canções de fim de dia.
Nada pode igualar-se à nostalgia
das luzes mortas que ainda se levantam
e andam na noite e à própria noite encantam
com marcados compassos de agonia,
enquanto a brisa vai ficando fria
e as sombras soltas pela noite cantam.
Fez-se noite no vale e agora é a hora
de recolher ao ninho o coração
entre as notas longínquas da canção
que em doces vozes o embalara outrora.

Vão-se os últimos pássaros do outono.
Fecha-se a noite. E já me apaga o sono.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Frédéric Soulacroix (1858-1933)

Vanitas.

À Belle de Jour

Zemaria Pinto

A negra cabeleira emoldurando
a pele cor de rosa, o lábio rubro,
a boca de palavras provisórias
e o beijo proibido aprisionado.

A tarde, uma serpente feita em fogo,
cativa nos limites da vidraça,
escarne à timidez de nossos gestos,
de línguas e sussurros transbordantes.

A carne decifrada sob o jeans
traz úmidas lembranças aos sentidos:
canções perdidas numa tarde gris.

De volta em mim, a mim não reconheço,
pastor de vícios cultivando flores,
como esta orquídea que te oferto agora.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Zinaida Serebriakova (1884-1967)

Bather (Self-Portrait).

Panela de Barro

Celdo Braga

Velha panela de barro,
tisnada à lenha do tempo
– memorial de lembranças
à toa lá no quintal.

Ao refletir tua sina,
do duro retorno ao pó,
percebo que se aproxima
meu tempo de ficar só.

Tempo de ninar silêncio,
de domar a luz do dia
– pra cavalgar o escuro
da hora da travessia.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Ticiano (1490-1576)

Venus Anadyomene.

Estante do tempo

Dona Ausente – XVIII
Mario Ypiranga Monteiro (1909-2004)

– É tarde e não virás...
De lado a lado
da estrada se erguem troncos nus e tortos.
Parecem exortações de algum Passado,
restos macabros dos meus Sonhos mortos.

Que não virás mais nunca estão de certo
dizendo os lírios pensativamente.
Só eu não creio – e espero ainda, aberto
meu coração à eterna Dona Ausente.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Joseph Karl Stieler (1781-1858)

Nanette Heine, née Kaula.

Minha pátria é minha língua

Ainda Uma Vez – Adeus!
Gonçalves Dias (1823-1864)


I

Enfim te vejo! – enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!

II

Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!

III

Louco, aflito, a saciar-me
D'agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esp’rança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!

IV

Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.

V

Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!

VI

Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias – bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!

VII

Oh! se lutei!... mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos ditérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?

VIII

Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t'esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T'esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu quinhão de dor!

IX

Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!

X

Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
"Ela é feliz (me dizia)
"Seu descanso é obra minha."
Negou-me a sorte mesquinha...
Perdoa, que me enganei!

XI

Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!

XII

Enganei-me!... – Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra.
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei qu'era...
E um louco fui, nada mais!

XIII

Louco, julguei adornar-me
Com palmas d'alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Co'o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Estava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.

XIV

Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora.
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera...
E eu! eu fui que a não quis!

XV

És doutro agora, e p’ra sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!

XVI

Dói-te de mim, que t’imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!

XVII

Adeus qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!

XVIII

Lerás porém algum dia
Meus versos d’alma arrancados,
D’amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; – e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, – de compaixão.