The beloved.
Amigos do Fingidor
sábado, 31 de julho de 2010
Poesia em tradução
Dante Gabriel Rossetti (1828-1882)
Soneto é um monumento do momento, –
Da Alma, memorial da eternidade
Ao morto, hora imortal. Na integridade,
Que seja rito em luz ou só portento,
Dessa árdua plenitude reverente:
No mármore ou no ébano, cinzele-o,
Ditam a Noite e o Dia; e o Tempo a vê-lo:
Pérolas, crista em flor e o oriente.
O soneto é moeda: a cara dela
Mostra a alma, – e a coroa a que Senhor
Deve: – ou por taxa ou por quem augusto apela
À Vida, ou dom na corte alta do Amor,
Serve: ou, no arfar poroso em cais sem norte,
Paga à mão de Caronte o som da Morte.
(Trad. José Lino Grünewald)
Soneto é um monumento do momento, –
Da Alma, memorial da eternidade
Ao morto, hora imortal. Na integridade,
Que seja rito em luz ou só portento,
Dessa árdua plenitude reverente:
No mármore ou no ébano, cinzele-o,
Ditam a Noite e o Dia; e o Tempo a vê-lo:
Pérolas, crista em flor e o oriente.
O soneto é moeda: a cara dela
Mostra a alma, – e a coroa a que Senhor
Deve: – ou por taxa ou por quem augusto apela
À Vida, ou dom na corte alta do Amor,
Serve: ou, no arfar poroso em cais sem norte,
Paga à mão de Caronte o som da Morte.
(Trad. José Lino Grünewald)
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Sabado
sexta-feira, 30 de julho de 2010
Tatuagem na água
Jaci Bezerra
No Recife me perco e me inauguro
Pisando acácias e águas machucadas,
No bolso o sol ferido, um sol maduro
Escorre, úmido, e acende a madrugada.
Uma árvore brota no meu peito impuro
acalentando a infância que, abismada,
brinca dentro de mim e dói no escuro
sempre por um menino acompanhada.
Nunca a essa cidade fui perjuro
nem nuca a reneguei, talvez por isso
ela me planta e aninha entre os seus muros,
e eu a carrego em mim, arrebatado,
apodrecendo nos mangues dos seus vícios
e amando como se nunca houvesse amado.
No Recife me perco e me inauguro
Pisando acácias e águas machucadas,
No bolso o sol ferido, um sol maduro
Escorre, úmido, e acende a madrugada.
Uma árvore brota no meu peito impuro
acalentando a infância que, abismada,
brinca dentro de mim e dói no escuro
sempre por um menino acompanhada.
Nunca a essa cidade fui perjuro
nem nuca a reneguei, talvez por isso
ela me planta e aninha entre os seus muros,
e eu a carrego em mim, arrebatado,
apodrecendo nos mangues dos seus vícios
e amando como se nunca houvesse amado.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
Salexistência
Tenório Telles
Salário
Sal
salga meus sonhos
meus olhos
Sal
que fere
minhas chagas
salmouradas
salgada existência
A vida por um salário
salexistência
O sal da terra
salga-nos os ossos.
Salário
Sal
salga meus sonhos
meus olhos
Sal
que fere
minhas chagas
salmouradas
salgada existência
A vida por um salário
salexistência
O sal da terra
salga-nos os ossos.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
o adeus provisório
Zemaria Pinto
havia em teus olhos duas fontes
trans/jorrando pétalas de pedras
salcristalizados diamantes
havia em teus olhos diamantes
lavados pela língua mineral
pétalas de sal, cristais da ausência
líquido cristal,
teus olhos transbordantes:
minas de luz
havia em teus olhos duas fontes
trans/jorrando pétalas de pedras
salcristalizados diamantes
havia em teus olhos diamantes
lavados pela língua mineral
pétalas de sal, cristais da ausência
líquido cristal,
teus olhos transbordantes:
minas de luz
terça-feira, 27 de julho de 2010
Espelho de estrelas
Carlos Tiago
Grávidas de poesia
as águas levam
o canto preciso do vento
onde todos os calores descansam
do sonho cadenciado:
certos mundos, serenatas de chuva
no meio do rio.
O pescador namora a cabocla desenhada nas nuvens
vai pegar um peixe bem grande para lhe presentear
uma gaivota planando o acompanha
o silêncio vai em suas asas
o infinito em seu olhar.
Botos se assustam e despertam
o sonho esquecido no profundo sono do rio.
águas do Andirá:
efeito de tempo e mistérios
histórias cheias de dor
ondas cantando amor.
Mundo de criações que se aconchegam
nas curvas das misteriosas praias
imaginações, espelho de estrelas
beleza decifrando o segredo das nuvens.
Grávidas de poesia
as águas levam
o canto preciso do vento
onde todos os calores descansam
do sonho cadenciado:
certos mundos, serenatas de chuva
no meio do rio.
O pescador namora a cabocla desenhada nas nuvens
vai pegar um peixe bem grande para lhe presentear
uma gaivota planando o acompanha
o silêncio vai em suas asas
o infinito em seu olhar.
Botos se assustam e despertam
o sonho esquecido no profundo sono do rio.
águas do Andirá:
efeito de tempo e mistérios
histórias cheias de dor
ondas cantando amor.
Mundo de criações que se aconchegam
nas curvas das misteriosas praias
imaginações, espelho de estrelas
beleza decifrando o segredo das nuvens.
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Estante do tempo
A primeira namorada
Farias de Carvalho (1930-1997)
Como pássaros brancos que voltassem
de uma estranha região de coisas mortas,
as tuas mãos, Teresa, em meus cabelos
vieram ninhar saudades esquecidas.
Deixa eu tê-las nas minhas. Vamos juntos
passear velhos domingos de outros tempos,
fazer a turma toda roer de inveja
quando eu passar contigo pela praça.
Repetiremos tudo novamente:
– eu, orgulhoso, comprarei sorvetes
com os dez mil-réis contados da semana;
ficaremos depois no velho banco
sem dizer nada, nossas sombras juntas
como duas saudades que se achassem!
Farias de Carvalho (1930-1997)
Como pássaros brancos que voltassem
de uma estranha região de coisas mortas,
as tuas mãos, Teresa, em meus cabelos
vieram ninhar saudades esquecidas.
Deixa eu tê-las nas minhas. Vamos juntos
passear velhos domingos de outros tempos,
fazer a turma toda roer de inveja
quando eu passar contigo pela praça.
Repetiremos tudo novamente:
– eu, orgulhoso, comprarei sorvetes
com os dez mil-réis contados da semana;
ficaremos depois no velho banco
sem dizer nada, nossas sombras juntas
como duas saudades que se achassem!
domingo, 25 de julho de 2010
Minha pátria é minha língua
Ao verme que primeiro tripudiar sobre o meu cadáver
Uldarico Cavalcanti (18??-19??)
Podes tudo roer, verme pútrido e imundo!
Esta é a tua missão: devastar a matéria.
Tu primeiro virás, depois virá o segundo
E milhões virão mais tripudiar, no fundo
Da cova onde atirar-me a peste ou a miséria!
Podes tudo roer! Nada, nada te impeça
Na tua faina! Rói a mortalha, o caixão,
Depois rói-me também: tronco, membros, cabeça
Tudo, enfim, verme, o que à tua gula apeteça
Mas não toques, maldito, o pobre coração.
Se tanto não saciar tua voracidade
Não toque o coração tua boca voraz,
Com o ciúme, as paixões, a tortura e a saudade
Que lá estão devastando a minha mocidade,
Tu te envenenarás! Tu te envenenarás!
Uldarico Cavalcanti (18??-19??)
Podes tudo roer, verme pútrido e imundo!
Esta é a tua missão: devastar a matéria.
Tu primeiro virás, depois virá o segundo
E milhões virão mais tripudiar, no fundo
Da cova onde atirar-me a peste ou a miséria!
Podes tudo roer! Nada, nada te impeça
Na tua faina! Rói a mortalha, o caixão,
Depois rói-me também: tronco, membros, cabeça
Tudo, enfim, verme, o que à tua gula apeteça
Mas não toques, maldito, o pobre coração.
Se tanto não saciar tua voracidade
Não toque o coração tua boca voraz,
Com o ciúme, as paixões, a tortura e a saudade
Que lá estão devastando a minha mocidade,
Tu te envenenarás! Tu te envenenarás!
sábado, 24 de julho de 2010
Poesia em tradução
A expressão da alma
Elizabeth Barret Browning (1806-1861)
Com lábios hesitantes e som mutilado
Luto e me empenho para o que certo seria
A música deste ente dizer noite e dia
Com sonho e pensamento e sentimento atados,
E interno responder aos sensos circunscritos
Com oitavas de mística íntima e de astral
Que sai com esplendor a caminho do infinito
Dos ângulos sombrios do solo sensual.
Canção da alma porfio a fim de a sustentar
Através dos portais do senso almo e total,
E inteira moldo a mim no interior do ar.
No entanto se isso eu fiz – tal próprio trovejar
Destroça sua nuvem, eis morte carnal
Diante do feroz apocalipse da alma.
(Trad. José Lino Grünewald)
Elizabeth Barret Browning (1806-1861)
Com lábios hesitantes e som mutilado
Luto e me empenho para o que certo seria
A música deste ente dizer noite e dia
Com sonho e pensamento e sentimento atados,
E interno responder aos sensos circunscritos
Com oitavas de mística íntima e de astral
Que sai com esplendor a caminho do infinito
Dos ângulos sombrios do solo sensual.
Canção da alma porfio a fim de a sustentar
Através dos portais do senso almo e total,
E inteira moldo a mim no interior do ar.
No entanto se isso eu fiz – tal próprio trovejar
Destroça sua nuvem, eis morte carnal
Diante do feroz apocalipse da alma.
(Trad. José Lino Grünewald)
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Sabado
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Jogo
Eunice Arruda
Tento ler a
sorte
Jogando
Dados correm
aflitos
Papéis assinados
lágrimas
e uma próxima companhia
Tento
outra vez
a sorte jogando
Dados deslizam
lúcidos
agora
Papéis assinados
lágrimas
A morte é a próxima companhia
Tento ler a
sorte
Jogando
Dados correm
aflitos
Papéis assinados
lágrimas
e uma próxima companhia
Tento
outra vez
a sorte jogando
Dados deslizam
lúcidos
agora
Papéis assinados
lágrimas
A morte é a próxima companhia
quinta-feira, 22 de julho de 2010
Desafinando
Antonino Bacelar
Uma ilusão a mais hoje me passa,
Dilacerando, assim, meu pobre peito,
E, percorrendo a mente, ela ultrapassa
Os meus limites puros, esse jeito.
Porque vieste aqui como miragem,
Impulsionar com os pés a rima fria?
Pra que escondeste tanto a tua imagem,
Nos olhos melodiosos que fazias?
Teu perpassar agora me consome,
o meu espanto tanto se conflita,
No debochar agora se presume
Que o mundo não te encontra mais aflita.
O meu vagar penoso, consciente,
Hoje, um pouco do predestinado,
Vai devolver ao ouvido dessa gente
O som que eu tornei desafinado.
Uma ilusão a mais hoje me passa,
Dilacerando, assim, meu pobre peito,
E, percorrendo a mente, ela ultrapassa
Os meus limites puros, esse jeito.
Porque vieste aqui como miragem,
Impulsionar com os pés a rima fria?
Pra que escondeste tanto a tua imagem,
Nos olhos melodiosos que fazias?
Teu perpassar agora me consome,
o meu espanto tanto se conflita,
No debochar agora se presume
Que o mundo não te encontra mais aflita.
O meu vagar penoso, consciente,
Hoje, um pouco do predestinado,
Vai devolver ao ouvido dessa gente
O som que eu tornei desafinado.
quarta-feira, 21 de julho de 2010
Dabacuri – amazônica 18
Zemaria Pinto
mochila às costas,
um barco e nenhum destino
– pescador de estórias
à beira da praia,
o pescador tece a rede
– desejos de rio
mochila às costas,
um barco e nenhum destino
– pescador de estórias
à beira da praia,
o pescador tece a rede
– desejos de rio
terça-feira, 20 de julho de 2010
Ciúme
Dedé Rodrigues
O Ciúme corrói minha armadura
e me lança em delírio à ira
à angústia ao medo ao terror...
E a Insegurança que rasteja
e bate à minha porta
é a visitante noturna
que vem se abrigar
em seu próprio horror:
– terra desolada
de onde parte em desatino
deixando somente
disforme abantesma,
seu rastro de dor.
O Ciúme corrói minha armadura
e me lança em delírio à ira
à angústia ao medo ao terror...
E a Insegurança que rasteja
e bate à minha porta
é a visitante noturna
que vem se abrigar
em seu próprio horror:
– terra desolada
de onde parte em desatino
deixando somente
disforme abantesma,
seu rastro de dor.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
Estante do tempo
Destino
Benjamin Sanches (1915-1978)
Estou caminhando
Com destino certo,
Quando me cansar,
Estarei bem perto.
Benjamin Sanches (1915-1978)
Estou caminhando
Com destino certo,
Quando me cansar,
Estarei bem perto.
domingo, 18 de julho de 2010
Minha pátria é minha língua
Musa impassível II
Francisca Júlia (1871-1920)
Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.
Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.
Transporta-me, de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,
E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
Francisca Júlia (1871-1920)
Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.
Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.
Transporta-me, de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,
E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
sábado, 17 de julho de 2010
Poesia em tradução
A ilha
Giuseppe Ungaretti (1888-1970)
Numa orla onde era perene tarde
De selvas antigas, acesas, absortas,
Se adentrou
E súbito ouviu rumor de plumas
Que se soltara do estrídulo
Pulsar das águas tórridas,
E um espectro (enlanguescia
E refloria) viu:
Ao retornar viu
Que era uma ninfa: dormia
De pé abraçada a um olmo.
Em si de simulacro a chama verdadeira
Errando chegou a um prado onde
A sombra nos olhos se adensava
Das virgens como
A tarde ao pé das oliveiras;
Destilavam os ramos
Uma preguiçosa chuva de dardos,
Aqui ovelhas haviam dormitado
Sob o liso tepor,
Desfolhavam outras
A alfombra luminosa;
Eram as mãos do pastor vidros
Polidos de uma débil febre.
(Trad. Dora F. da Silva)
Giuseppe Ungaretti (1888-1970)
Numa orla onde era perene tarde
De selvas antigas, acesas, absortas,
Se adentrou
E súbito ouviu rumor de plumas
Que se soltara do estrídulo
Pulsar das águas tórridas,
E um espectro (enlanguescia
E refloria) viu:
Ao retornar viu
Que era uma ninfa: dormia
De pé abraçada a um olmo.
Em si de simulacro a chama verdadeira
Errando chegou a um prado onde
A sombra nos olhos se adensava
Das virgens como
A tarde ao pé das oliveiras;
Destilavam os ramos
Uma preguiçosa chuva de dardos,
Aqui ovelhas haviam dormitado
Sob o liso tepor,
Desfolhavam outras
A alfombra luminosa;
Eram as mãos do pastor vidros
Polidos de uma débil febre.
(Trad. Dora F. da Silva)
sexta-feira, 16 de julho de 2010
Consequência
Denise Teixeira Viana
ó não perturbes
por favor
este sono brasileiro
que já nasci deformada
nasci virada
para o impossível
ó não perturbes
por favor
esta discussão acadêmica
que já nasci anêmica
e me atolei na invisível polêmica
da proposição doutoral
ó por favor
não perturbes
esta utopia americana
que já nasci leviana
e adotei a identidade
de falsa puritana
quinta-feira, 15 de julho de 2010
Amazonas
Celdo Braga
O rio se banha de luz
murmureja e vai seguindo
de porto em porto esculpindo
as margens do seu destino
Destino de ser caminho
de ser barco e navegante
de ser leme e comandante
do seu próprio caminhar
Canaranas, matupás
membecas e murerus
são ilhas de arribação
no regime das enchentes
Nas vazantes borda praias
onde o rito da desova
aninha nos tabuleiros
tartarugas tracajás
E no ciclo das areias
a vida eclode apressada
pra ser de novo tocada
pelo compasso do rio
Quantas vezes este rio
brincou comigo de pira
lavou roupas nas beiradas
foi a fonte do meu pão...
Em silencio e solitário
vai vencendo desafios
se envereda em paranás
bebe as águas de outros rios
Guarda os segredos dos lagos
se embrenha nos igapós
sabe notícia da mata
na boca do igarapé
Ao desfolhar a paisagem
de imagens já distantes
dos primeiros navegantes
acordando o seu silêncio
O rio acende memórias
de lendas de encantamentos
fragmentos de mistérios
que borbulham do seu leito
Carrega todos os sonhos
do olhar das ribanceiras
que se enche de esperança
ao ver o barco passar
Sempre que um gesto impensado
tolda as águas mancha a vida
o rio geme lá no fundo
a ferida que já sangra
O sol míngua no poente
brisa mansa maresia
o rio se aquieta e dorme
em noturna romaria
No amanhecer ainda brilha
a luz dos últimos astros
que à noite se banharam
no firmamento do rio
Rio de saber, santuário
onde os pajés, os sacacas
em mirações milenares
beberam da sua luz
Luz de versos que caminham
alumiando os barrancos
que choram terras caídas
à procura de outro de outro chão
Com jeito de cobra grande
o rio das águas barrentas
rumo leste busca o mar
talvez para se perder
talvez para se encontrar
A Thiago de Mello
O rio se banha de luz
murmureja e vai seguindo
de porto em porto esculpindo
as margens do seu destino
Destino de ser caminho
de ser barco e navegante
de ser leme e comandante
do seu próprio caminhar
Canaranas, matupás
membecas e murerus
são ilhas de arribação
no regime das enchentes
Nas vazantes borda praias
onde o rito da desova
aninha nos tabuleiros
tartarugas tracajás
E no ciclo das areias
a vida eclode apressada
pra ser de novo tocada
pelo compasso do rio
Quantas vezes este rio
brincou comigo de pira
lavou roupas nas beiradas
foi a fonte do meu pão...
Em silencio e solitário
vai vencendo desafios
se envereda em paranás
bebe as águas de outros rios
Guarda os segredos dos lagos
se embrenha nos igapós
sabe notícia da mata
na boca do igarapé
Ao desfolhar a paisagem
de imagens já distantes
dos primeiros navegantes
acordando o seu silêncio
O rio acende memórias
de lendas de encantamentos
fragmentos de mistérios
que borbulham do seu leito
Carrega todos os sonhos
do olhar das ribanceiras
que se enche de esperança
ao ver o barco passar
Sempre que um gesto impensado
tolda as águas mancha a vida
o rio geme lá no fundo
a ferida que já sangra
O sol míngua no poente
brisa mansa maresia
o rio se aquieta e dorme
em noturna romaria
No amanhecer ainda brilha
a luz dos últimos astros
que à noite se banharam
no firmamento do rio
Rio de saber, santuário
onde os pajés, os sacacas
em mirações milenares
beberam da sua luz
Luz de versos que caminham
alumiando os barrancos
que choram terras caídas
à procura de outro de outro chão
Com jeito de cobra grande
o rio das águas barrentas
rumo leste busca o mar
talvez para se perder
talvez para se encontrar
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Sonho
Zemaria Pinto
o sonho que te sonhei
na noite em que não ligaste
começou num pesadelo:
te procurava assaltado
buscando por toda parte
por vielas escondidas
barrancos enlameados
barracos tão desdentados
que pareciam sorrir
escarnecendo de mim
– me vi perdido entre sombras
entre sombras que vivi
as mesmas que te guardavam
quando perdi-me de ti
no sonho que te sonhava
as lâminas rebrilhavam
sem nenhuma simetria
forjando um balé infame
de ritos cotidianos
e o sangue que o chão marcava
pelas trilhas do caminho
eram sinais decifrados
de sacrifícios inúteis
a um Deus sacrificado
– tentei gritar mas o grito
ecoou dentro de mim
a solidão de um vagido
no silêncio absoluto
quando por fim te encontrei
num leve vestido branco
entre o vasto plenilúnio
e a manhã dos girassóis
meu corpo se uniu ao teu
e o corpo com que sonhei
deixou de ser corpoenigma
com seus cheiros, com seu gosto
de mel e sal entranhados
na pele dos meus sentidos
(– no sonho me desencontro
do desencanto da vida
tecendo em tons de delírio
esta balada falida)
o sonho que te sonhei
na noite em que não ligaste
começou num pesadelo:
te procurava assaltado
buscando por toda parte
por vielas escondidas
barrancos enlameados
barracos tão desdentados
que pareciam sorrir
escarnecendo de mim
– me vi perdido entre sombras
entre sombras que vivi
as mesmas que te guardavam
quando perdi-me de ti
no sonho que te sonhava
as lâminas rebrilhavam
sem nenhuma simetria
forjando um balé infame
de ritos cotidianos
e o sangue que o chão marcava
pelas trilhas do caminho
eram sinais decifrados
de sacrifícios inúteis
a um Deus sacrificado
– tentei gritar mas o grito
ecoou dentro de mim
a solidão de um vagido
no silêncio absoluto
quando por fim te encontrei
num leve vestido branco
entre o vasto plenilúnio
e a manhã dos girassóis
meu corpo se uniu ao teu
e o corpo com que sonhei
deixou de ser corpoenigma
com seus cheiros, com seu gosto
de mel e sal entranhados
na pele dos meus sentidos
(– no sonho me desencontro
do desencanto da vida
tecendo em tons de delírio
esta balada falida)
terça-feira, 13 de julho de 2010
Tempo tempo
João Sebastião
A ti que não te dás tempo
vou te dizer sobre o tempo.
O presente é uma invenção
fadada a virar passado
a cada instante que passa.
O futuro, uma promessa
nunca dantes realizada
somatório de presentes
transmudados em passado.
E o passado, como passa?
O passado se repete
se reparte acumulado
em cada dobra de tempo
em cada lençol dobrado.
O passado se repete
nem sempre com o mesmo brilho
no choro de nossos filhos
nas histórias que se contam
nas contas que se recontam
nos contos de faz-de-conta.
Se repete feito farsa
às vezes, feito tragédia
mas quase sempre é comédia
a dividir nossas vidas
porque viver é mais nada
que nadar contra essa onda
que nos maltrata e consome
de procurar ser feliz.
E o que pouca gente sabe:
a felicidade é um grão
perdido pelo salão
abarrotado de vícios.
Grão de messe, grão de posse
ser feliz é uma ilusão
encantamento, magia
deve ter parte com o demo
pois dá uma puta alegria
despudorado tesão
parece até carnaval.
E a carne, fraca, possessa
de sorriso escancarado
despe a máscara que o tempo
engessou-lhe sobre a face
e vê-se então o que há por baixo:
um sorriso renovado
fresco, doce, quase ingênuo
de um tempo de ser feliz
que todos nós conhecemos
um pouco antes ou além
nalgum lugar do passado.
A ti que não te dás tempo
vou te dizer sobre o tempo.
O presente é uma invenção
fadada a virar passado
a cada instante que passa.
O futuro, uma promessa
nunca dantes realizada
somatório de presentes
transmudados em passado.
E o passado, como passa?
O passado se repete
se reparte acumulado
em cada dobra de tempo
em cada lençol dobrado.
O passado se repete
nem sempre com o mesmo brilho
no choro de nossos filhos
nas histórias que se contam
nas contas que se recontam
nos contos de faz-de-conta.
Se repete feito farsa
às vezes, feito tragédia
mas quase sempre é comédia
a dividir nossas vidas
porque viver é mais nada
que nadar contra essa onda
que nos maltrata e consome
de procurar ser feliz.
E o que pouca gente sabe:
a felicidade é um grão
perdido pelo salão
abarrotado de vícios.
Grão de messe, grão de posse
ser feliz é uma ilusão
encantamento, magia
deve ter parte com o demo
pois dá uma puta alegria
despudorado tesão
parece até carnaval.
E a carne, fraca, possessa
de sorriso escancarado
despe a máscara que o tempo
engessou-lhe sobre a face
e vê-se então o que há por baixo:
um sorriso renovado
fresco, doce, quase ingênuo
de um tempo de ser feliz
que todos nós conhecemos
um pouco antes ou além
nalgum lugar do passado.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Estante do tempo
Angústia Numeral 21
Antísthenes Pinto (1929-2000)
Dentro do meu relógio,
a minha dor.
As reticências da tarde
são cães esgueirando seus latidos.
Depois irei para o vale de ardências
ver os utensílios da manhã.
Dentro da minha dor
o relógio se apagou
e as estrelas apodreceram
no prato que trago perto,
queixo em minhas mãos.
Dentro de mim começo a sentir
raízes como se eu fosse um muro estatelando.
Antísthenes Pinto (1929-2000)
Dentro do meu relógio,
a minha dor.
As reticências da tarde
são cães esgueirando seus latidos.
Depois irei para o vale de ardências
ver os utensílios da manhã.
Dentro da minha dor
o relógio se apagou
e as estrelas apodreceram
no prato que trago perto,
queixo em minhas mãos.
Dentro de mim começo a sentir
raízes como se eu fosse um muro estatelando.
domingo, 11 de julho de 2010
Minha pátria é minha língua
Soneto do amor total
Vinicius de Moraes (1913-1980)
Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Vinicius de Moraes (1913-1980)
Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
sábado, 10 de julho de 2010
Poesia em tradução
O raio que não cessa
Miguel Hernández (1910-1942)
Um carnívoro punhal
De suave asa homicida
Mantém seu voo e seu brilho
Em redor de minha vida.
RaIo de metal crispado,
Faiscantemente caído,
Esporeia meu costado
Onde faz seu triste ninho.
Minha têmporas, janelas
Floridas da mocidade,
Estão negras e, com elas,
As cãs de meu coração.
Tão malvada é a natureza
Do raio que me esporeia
Que vejo meus verdes anos
Como a lua vê a aldeia.
Recolho nestas pestanas
O sol da alma e do olho,
Flores de teia de aranha
De minhas tristezas colho.
Aonde irei que não vá
A perdição me buscar?
Teu fado é de praia e minha
Vocação é a do mar.
Descansar desta labuta
De tufão, de amor, de inferno
É impossível, e a dor
Fará meu pesar eterno.
Mas no fim te vencerei,
Ave, raio secular,
Coração, porque da morte
Ninguém me faz duvidar.
Anda, pois, anda, punhal
Voa, fere, que algum dia
Montarás, tempo amarelo,
Em minha fotografia.
(Trad. Mário Faustino)
Miguel Hernández (1910-1942)
Um carnívoro punhal
De suave asa homicida
Mantém seu voo e seu brilho
Em redor de minha vida.
RaIo de metal crispado,
Faiscantemente caído,
Esporeia meu costado
Onde faz seu triste ninho.
Minha têmporas, janelas
Floridas da mocidade,
Estão negras e, com elas,
As cãs de meu coração.
Tão malvada é a natureza
Do raio que me esporeia
Que vejo meus verdes anos
Como a lua vê a aldeia.
Recolho nestas pestanas
O sol da alma e do olho,
Flores de teia de aranha
De minhas tristezas colho.
Aonde irei que não vá
A perdição me buscar?
Teu fado é de praia e minha
Vocação é a do mar.
Descansar desta labuta
De tufão, de amor, de inferno
É impossível, e a dor
Fará meu pesar eterno.
Mas no fim te vencerei,
Ave, raio secular,
Coração, porque da morte
Ninguém me faz duvidar.
Anda, pois, anda, punhal
Voa, fere, que algum dia
Montarás, tempo amarelo,
Em minha fotografia.
(Trad. Mário Faustino)
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Visão de São Paulo à noite – Poema Antropófago sob Narcótico
Roberto Piva (1937-2010)
Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apoia em nada
eu não me apoio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correrias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo
Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apoia em nada
eu não me apoio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correrias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Quase toada
Artemis Veiga
Creio em ti, menino-vadio
e no teu silêncio puro
só quebrado
pelo pranto sem lágrimas
contido num único soluço
que tua voz não realiza...
Creio em ti, menino-grande
e nos teus sonhos encantados
que acalantam
segredos de coisas
eternas
nas curvas turvas
da madrugada...
Creio em ti, menino-noturno
e no teu silêncio grave
machucado
por presenças impossíveis
que mastigam
solidões gêmeas
entre gritos estrangulados...
Creio em ti, menino-trazverso
e nas tuas tramas
claras e cheias
de palavras perfeitas
urdidas
no riso matreiro
e no hálito de noite
que te inaugura
em azul-grávido
de certezas.
(Para um menino-muito-meu-amigo)
Creio em ti, menino-vadio
e no teu silêncio puro
só quebrado
pelo pranto sem lágrimas
contido num único soluço
que tua voz não realiza...
Creio em ti, menino-grande
e nos teus sonhos encantados
que acalantam
segredos de coisas
eternas
nas curvas turvas
da madrugada...
Creio em ti, menino-noturno
e no teu silêncio grave
machucado
por presenças impossíveis
que mastigam
solidões gêmeas
entre gritos estrangulados...
Creio em ti, menino-trazverso
e nas tuas tramas
claras e cheias
de palavras perfeitas
urdidas
no riso matreiro
e no hálito de noite
que te inaugura
em azul-grávido
de certezas.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Dabacuri – amazônica 17
Zemaria Pinto
cruzando o rio,
borboletas amarelas
– efêmera aventura
sob a chuva fina
adivinho Parintins
– ah, meu boi-bumbá
cruzando o rio,
borboletas amarelas
– efêmera aventura
sob a chuva fina
adivinho Parintins
– ah, meu boi-bumbá
terça-feira, 6 de julho de 2010
Lembranças ao entardecer
Rafael Marques
A manhã mescla-se à tarde.
O rosto de recente passado
descobre-se dos limos
e penumbras, a cada
lento e fascinado
escavar
de cartas.
Os olhos fúlgidos de agora
alentam letras de outrora:
alojados nos quartos
opacos dos fonemas estão
as falas, ruas e claustros.
A mesa imensa da solidão.
O afago de tua fala não mais
acolhe o imaginário baú das lembranças
gritantes, mas encobre
do presente, o astro que antes sorria
(agora quase morto).
Falta de calor numa chuva fria.
(ao descobrir antigos poemas)
A manhã mescla-se à tarde.
O rosto de recente passado
descobre-se dos limos
e penumbras, a cada
lento e fascinado
escavar
de cartas.
Os olhos fúlgidos de agora
alentam letras de outrora:
alojados nos quartos
opacos dos fonemas estão
as falas, ruas e claustros.
A mesa imensa da solidão.
O afago de tua fala não mais
acolhe o imaginário baú das lembranças
gritantes, mas encobre
do presente, o astro que antes sorria
(agora quase morto).
Falta de calor numa chuva fria.
segunda-feira, 5 de julho de 2010
Estante do tempo
Mar despovoado
Sebastião Norões (1915-1972)
Mar despovoado. O coração em largas sensações.
Uma gaivota rasgando o espaço inutilmente.
Na profundeza das águas o incógnito
e no céu sempre o mesmo azul e as mesmas esperanças.
Peixe isolado mostrando à flor do líquido
a razão de viver.
A vastidão comendo tudo.
E o vácuo ainda maior.
O pensamento se desabotoa célere
mas a amplidão é infinita.
Alcançar a Austrália ou alcançar o Alasca
é coisa que fica na vontade.
Nem a amizade brotou verdadeira.
Agora só o repouso que não finda.
O afogamento para sempre de todas as ilusões
e a morte completa.
Sebastião Norões (1915-1972)
Mar despovoado. O coração em largas sensações.
Uma gaivota rasgando o espaço inutilmente.
Na profundeza das águas o incógnito
e no céu sempre o mesmo azul e as mesmas esperanças.
Peixe isolado mostrando à flor do líquido
a razão de viver.
A vastidão comendo tudo.
E o vácuo ainda maior.
O pensamento se desabotoa célere
mas a amplidão é infinita.
Alcançar a Austrália ou alcançar o Alasca
é coisa que fica na vontade.
Nem a amizade brotou verdadeira.
Agora só o repouso que não finda.
O afogamento para sempre de todas as ilusões
e a morte completa.
domingo, 4 de julho de 2010
Minha pátria é minha língua
Nobre
B. Lopes (1859-1916)
Quando eu voltar ao meu castelo, o Sonho,
Brasonado de um lis em campo de ouro,
Onde há muito me espera um anjo louro
De fina palidez e olhar tristonho,
A pedraria que nas rimas ponho
Refulgirá de novo, e o irial tesouro
Terá, então, um brilho imorredouro
E eu de novo terei o estro risonho.
Hoje ainda não! É um campo de batalha
Este viver acerbo e amargurado,
Onde um rebanho de ilusões tresmalha.
Breve, porém, em bálsamos imerso,
Na minha torre heráldica fechado,
Nobreza e graça cantará meu Verso!
B. Lopes (1859-1916)
Quando eu voltar ao meu castelo, o Sonho,
Brasonado de um lis em campo de ouro,
Onde há muito me espera um anjo louro
De fina palidez e olhar tristonho,
A pedraria que nas rimas ponho
Refulgirá de novo, e o irial tesouro
Terá, então, um brilho imorredouro
E eu de novo terei o estro risonho.
Hoje ainda não! É um campo de batalha
Este viver acerbo e amargurado,
Onde um rebanho de ilusões tresmalha.
Breve, porém, em bálsamos imerso,
Na minha torre heráldica fechado,
Nobreza e graça cantará meu Verso!
sábado, 3 de julho de 2010
Poesia em tradução
Elogio de uma urna
Hart Crane (1899-1932)
Era uma face nórdica, meigo
Disfarce de exilado reunindo
Os olhos eternos de Pierrot
E a gargalhada de Gargântua.
Seus pensamentos, que me confiava
Do travesseiro, da colcha branca
Heranças eram – bem vejo agora –
Cavaleiros sutis da tempestade.
A lua torta no monte torto
Já nos levara a pressentir
O que, ainda vivo, o morto guarda
E certos cálculos da alma, iguais
Aos do relógio, renitente, empoleirado
Na antecâmara do crematório
Tocando até nosso elogio
De glórias próprias da ocasião.
Por mais que lembre cabelos de ouro
Não quero ver a testa partida
Nem ouço o som seco de abelhas
Atravessado no espaço lúcido.
Que vale a boa intenção destas
Palavras que solto e perco no fumo
Da primavera dos arrabaldes?
Se ao menos fossem troféus do sol!
(Trad. Mário Faustino)
Hart Crane (1899-1932)
Era uma face nórdica, meigo
Disfarce de exilado reunindo
Os olhos eternos de Pierrot
E a gargalhada de Gargântua.
Seus pensamentos, que me confiava
Do travesseiro, da colcha branca
Heranças eram – bem vejo agora –
Cavaleiros sutis da tempestade.
A lua torta no monte torto
Já nos levara a pressentir
O que, ainda vivo, o morto guarda
E certos cálculos da alma, iguais
Aos do relógio, renitente, empoleirado
Na antecâmara do crematório
Tocando até nosso elogio
De glórias próprias da ocasião.
Por mais que lembre cabelos de ouro
Não quero ver a testa partida
Nem ouço o som seco de abelhas
Atravessado no espaço lúcido.
Que vale a boa intenção destas
Palavras que solto e perco no fumo
Da primavera dos arrabaldes?
Se ao menos fossem troféus do sol!
(Trad. Mário Faustino)
sexta-feira, 2 de julho de 2010
Ritmo de pilão
António Nunes (1917-1951)
Bate, pilão, bate,
que o teu som é o mesmo
desde o tempo dos navios negreiros,
de morgados,
das casas-grandes,
e meninos ouvindo a negra escrava contando histórias de florestas, de bichos, de encantadas...
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e a casa-grande perdeu-se,
o branco deu aos negros cartas de alforria
mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor...
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
desde o tempo antigo
dos navios negreiros...
(Ai os sonhos perdidos lá longe!
Ai o grito saído do fundo de nós todos
ecoando nos vales e nos montes,
transpondo tudo...
Grito que nos ficou de traços de chicote,
da luta dia a dia,
e que em canções se reflete, tristes...)
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e em nosso músculo está
nossa vida de hoje
feita de revoltas!...
Bate, pilão, bate!...
Bate, pilão, bate,
que o teu som é o mesmo
desde o tempo dos navios negreiros,
de morgados,
das casas-grandes,
e meninos ouvindo a negra escrava contando histórias de florestas, de bichos, de encantadas...
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e a casa-grande perdeu-se,
o branco deu aos negros cartas de alforria
mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor...
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
desde o tempo antigo
dos navios negreiros...
(Ai os sonhos perdidos lá longe!
Ai o grito saído do fundo de nós todos
ecoando nos vales e nos montes,
transpondo tudo...
Grito que nos ficou de traços de chicote,
da luta dia a dia,
e que em canções se reflete, tristes...)
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e em nosso músculo está
nossa vida de hoje
feita de revoltas!...
Bate, pilão, bate!...
quinta-feira, 1 de julho de 2010
As barrancas
Maria José Hosanah
I
Na barra de tua saia,
as barrancas
bordadas na barra
de barro e madeira,
de gentes em bando.
A mulher que se quisera bela
vestira-se de branco,
de cimento e pedra,
de adorno em brinco,
mas mulher descalça.
Na barra de tua saia
rendada,
do barro que pisava,
dos bilros de estacas,
dos berros das gentes
– as barrancas.
A mulher que se quisera bela
ornara-se de rendas,
de salões cristal,
de painéis de lendas,
mas de pés descalços.
Na margem de tua saia,
madeiras moldadas,
marginais de lama,
barradas imagens,
entre o rio e fama
– as barrancas.
A mulher que se quisera bela
fizera-se ilha,
em verde e em rio,
em raízes-pilhas,
em rádios e palhas,
dúplice ao meio
d’argamassa barro.
No friso de tua saia
– Mana-os
guizos e risos,
bardos-bordados,
berros-barrados,
Maninha
as barrancas.
I
Na barra de tua saia,
as barrancas
bordadas na barra
de barro e madeira,
de gentes em bando.
A mulher que se quisera bela
vestira-se de branco,
de cimento e pedra,
de adorno em brinco,
mas mulher descalça.
Na barra de tua saia
rendada,
do barro que pisava,
dos bilros de estacas,
dos berros das gentes
– as barrancas.
A mulher que se quisera bela
ornara-se de rendas,
de salões cristal,
de painéis de lendas,
mas de pés descalços.
Na margem de tua saia,
madeiras moldadas,
marginais de lama,
barradas imagens,
entre o rio e fama
– as barrancas.
A mulher que se quisera bela
fizera-se ilha,
em verde e em rio,
em raízes-pilhas,
em rádios e palhas,
dúplice ao meio
d’argamassa barro.
No friso de tua saia
– Mana-os
guizos e risos,
bardos-bordados,
berros-barrados,
Maninha
as barrancas.
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