Amigos do Fingidor

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Jorge Reinoza

The birth of Venus.

Estante do tempo

Coplas de virgo
Anibal Beça (1946-2009)



Há um cheiro de angústia nos teus olhos
amputado no meio desta sala.
E este mistério basta-se em silêncio
apascentando os demos desta noite.

E é assim que eu não querendo ver eu vejo
madeira tosca a se rachar no tempo
os caules duros tão particulares
reconstruídos no covão das horas.

Pois que do tempo bebo alimentando
a tua singular fisionomia.
Aquela mesma que ficou plantada
de grãos e pelos rubra arquitetura.

E repousei caído em teus desígnios
e a água não era mais a mesma água
e a praia desnudava-se dos olhos
de ter e ver o verão do teu corpo.

E tua geografia era uma ilha
relva fresca de brisa amanhecida
que águas do meu instinto roçagavam
acordando gaivotas no teu ventre.

E éramos sós, o vôo da paisagem
em duas asas alargando a noite
e displicentes palmilhamos rastros
e nos perdemos na linguagem única.

Amarantíssimo ansiar de chamas
fuga fugaz em tempo de equinócio
onde o dia e a noite são no avesso
a própria conjunção dos girassóis.

Que vibrem as cigarras de setembro
instante de pálpebras frementes
que o nosso alumbramento encadeado
seja o elo perene do silêncio.

Ah, duração de gozo interminável
onde o tempo é objeto sem valor
pois o moto maior de todo amante
é um antigo relógio sem ponteiros.

Ah, o lobo da memória me assaltando
a devorar auroras e crepúsculos
mas me salva este mar da lua espelho
onde liberto sou e recomeço.

domingo, 30 de agosto de 2009

Eugène Delacroix (1798-1863)

Retrato de Chopin.

Minha pátria é minha língua

Ofício de viver
Afonso Félix de Sousa (1925-2002)


O mundo que encontrei já era isso.
O jeito foi bordá-lo
com palavras.

Palavras e palavras, esta a herança
que tive e vou deixando.
O jeito foi juntá-las
untá-las
soprá-las
dobrá-las a meu jeito.
Perdão ó mestres
vos dou a mão à palmatória
mas não sei ser outro, não sei
ser de outro jeito.

O mundo é isso
e o jeito é ir chutando e vou chutando
e vou driblando e vou sendo driblado
e vou caindo e vou-me erguendo e vou
e vou gemendo
atrás da bola
e a bola atrás
e a bola à frente
e ao lado a bola
e do outro lado
e nas alturas.

Mestres
meus mestres
qual o sentido
de tudo isso?

sábado, 29 de agosto de 2009

Pablo Picasso (1881-1973)

The Artist's Son.

Poesia em tradução

Jaguadarte
Lewis Carroll (1832-1898)


Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

"Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!"

Ele arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do Homundo.
Na árvore Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta, e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

"Pois então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!"
Ele se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Joseph Berger (1798-1870)

Psyche Et Cupidon.

Poema final

Moacy Cirne


o homem só,
velho e cansado,
olha para a frente
e nada vê.
olha para os lados
e nda vê.
olha para o fim do mundo
e nada vê
entre
o espanto dos suicidas
e
o silêncio dos desamados,
o homem cansado,
velho e só,
olha para o poema
e nada vê.
será
que os sinos
dobrarão por ele?

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828)

Witches Sabbath.

Ai de ti, Manaus

(excertos)
Aldisio Filgueiras


Ai de ti, Manaus:
tu viste
na televisão
o crime
suprir
tua lei
– no teu olho –
& preferiste
voltar
as costas
para o rio
& a floresta
& riste
& te chamaram sorriso
& riste

(...)

Decidi
ser didático contigo:
Muitas
cidades já foram devoradas
pelo fogo
& pela água
& pelo vento
& pela terra
& pela... bala...
& pela peste
Muitas.
Tu não:

(...)

Todo descuido
em ti será
fatal, Manaus.
Espremeste
todas as seringueiras
& oprimiste
todos os seringueiros
que o Nordeste
não teve tempo
quente o bastante
para queimar.

(...)

Massacraste
os teus poetas &
pintores
& músicos & malucos
de todos os matizes
– os que mais te amaram –
com discursos
& crimes pós-barba
& piadas obscenas
& quadros & romances
que só tu
superas em ficção
& maldade

(...)

Ouve a pobreza
dos teus
bairros, Manaus.
Eles comem
lixo & tu vestes luxo.
Eles querem viver
& ensinas
lições suicidas
desde a Baixa
Cachoeirinha
– onde quintais
viram danceterias
& os igarapés
estão bêbados de
néon & mercúrio.
Sim: eles querem viver.

Mas o ônibus
fede & os sovacos
& as bocetas
& os homens bebem
movidos a ódio cru
para sonhar
mas o sonho fede
& tu cagas pra isso.
Ai de ti, Manaus
não venhas chorar no meu ombro.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Hendrick Bloemaert (1601?-1672)

Diana and Callisto.
Cantar de amigo ao poeta
Anibal (Ferro Madureira) Beça
também Augusto e Neto por fortuna
para em voz alta ser lido
na translúcida passagem
de seus redondos cinquentanos

Zemaria Pinto*

Fiz do título um brinquedo
com teus metros preferidos
meu caro amigo Poeta
mas fixo-me em redondilhas
redondas magas palavras
pra tornar o itinerário
desmedido desde sempre:
sempre que é ontem, passagem
sempre que é hoje, premissa
sempre pra sempre: primícias.

(Um deus e um demônio em si
o tempo o corpo enfraquece
mas o espírito guerreiro
do poeta fortalece.)

Já se passaram trinta anos
desde o “convite frugal”
que fizeste à musa em fuga.
Trinta messes, mesas fartas
de suculenta poesia
comungada em trinta cantos
cantados por toda gente
flor de semente plantada
na vila de São José
da Barra deste rio Negro.

(“Trotamundo”, trota o tempo
em cascos de aço e de vento
levando qualquer saudade
aos confins do esquecimento.)

“Um pássaro risca na tarde
a cambraia do seu canto”:
não se engane, é o poeta
tecendo um canto de rendas
na manjedoura-maromba
onde nascem curumins
“filhos da várzea” e da fome
mas também dessa esperança
que nos conserva poetas
pesar de todas as penas.

(Penas que o tempo não cura
não lava e leva no ar;
mas, ah, se o tempo as levasse
não valeria penar.)

Companheiras de aventuras
a canção e a poesia
sempre juntas se estreitaram
nas firmes mãos do poeta:
lembro daquele lundu
que em fogo a memória grava
e do doce que emanava
do corpo suave da moça
sob uma lua encantada
cantando “Marapatá”.

(Tantas canções outras há
que a viola se intimida
mas inda dez versos faltam
pra eu concluir meu cantar)

Neste 13 de setembro
entre décimas e quadras
abraço também Eugênia
esteio de tua casa.
Ceifas, por fim, te desejo
da Poesia, os arcanos
para que possas, Poeta
cantar à noite que nasce
cantar pra nascer o dia
inda por mais cinquenta anos!

*Setembro de 1996, por ocasião dos 50 anos do poeta
Anibal Beça (13/09/1946-25/08/2009)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Otto Lingner (1856-1917)

Water Nymph.

Rio Solimões

Sergio Luiz Pereira

A Alcides Werk

Imagens, são fantásticas imagens!
Mistérios, são mistérios perseguindo
O verde em sempre pássaros sorrindo
À flor das águas doces e selvagens.

De quando em quando habitações, miragens
Das almas esquecidas vêm surgindo
E a imensidão das águas permitindo
Dos homens e progressos as passagens.

O sol boiando inspira doce mágoa
Salta o boto a sorrir na beira dágua
Passa a canoa cheia nos porões.

E a noite vem chegando com histórias
Ficando vivamente nas memórias
Na solidão do rio Solimões...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Edward Baird (1904-1949)

The Birth of Venus.

Estante do tempo

Chegando
I. Xavier de Carvalho (1872-1944)

Venho mesmo não sei de que Degredo
Improvisando altares no caminho,
A rezar, de olhos fitos no arvoredo,
Missas Negras sem hóstias e sem vinho.

Lá nos conventos monacais do Medo
Tomei de um frade este burel de linho...
E, da Vida no estúpido rochedo,
Eis-me na encosta a caminhar sozinho.

Poetas de todo o Mundo, vinde ouvir-me!
– Que um Monge Bom, com os olhos rasos d’água
Quase às portas da Morte, porém firme,

Vai produzir, numa oração sentida,
Desse intangível púlpito da Mágoa,
Todo um sermão de Lágrimas à Vida!

domingo, 23 de agosto de 2009

Jacob van Loo (1614-1670)

Diana and her nymphs.

Minha pátria é minha língua

Psicologia da composição
João Cabral de Melo Neto (1920-1999)


I

Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.


II

Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.

Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;

como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.


III

Neste papel
pode teu sal
virar cinza;
pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.

(Teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera.)

Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.

(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera.)


IV

O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; romper
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça.)


V

Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.

Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esses lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)

que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido
contra o açúcar do podre.


VI

Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,
aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.


VII

É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.


VIII

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.

(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
cai, fruto!
Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:

então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maçã
resta uma fome;

onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.

sábado, 22 de agosto de 2009

François Lemoyne (1688-1737)

Venus and Adonis.

Poesia em tradução

Definição de Poesia
Boris Pasternak (1890-1960)

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, afolha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas –
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim um estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

(Trad. Haroldo de Campos)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Karl Briullov (1799-1852)

Italian Midday.

Soneto da personagem encarnada

Luciano Maia


Ó mamulengo triste do Nordeste!
Galopando o teu riso salteador,
fazes cinema no reboco agreste,
figura de arremedo e de impostor.

Acoitas um trejeito cafajeste
num palco de escandelo e de clamor.
Poeta doido, que mal se traveste
de alegria, a convite de mais dor.

Ó meu bizarro amigo de encarnado!
Vejo-te exílio, pranto em vez de dengo.
Oculto povo, mudo e desterrado.

Vaqueiro nordestino, lengo, tengo...
Estrebucha o teu tempo decepado,
caçoa do meu choro, mamulengo!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Albert Aublet (1851-1938)

An Orientalist Beauty.

O lado vermelho do azul

(excerto)
Arnaldo Garcez

(Em memória do poeta Ernesto Penafort)


O lado vermelho do azul
é encarnado encardido
assim como o amarelo
e a fome das crianças
do Solimões
o lado vermelho do azul
não é verde
tal os limões azedos
na ponta dos dedos
da memória do povo
(ovo em banho-maria)
o lado vermelho do azul
busca a dignidade
sem contemplar o tempo
essência de ócio e do cio
na fome da miséria
de alguns homens podres
o lado vermelho do azul
não admite o fruto falso
que traduz o vento
da lepra, que insiste
no encalço dos nossos
passos
entre a Getúlio Vargas
e a Dez de Julho
(ditadura e liberdade)
o lado vermelho do azul
rejeita o lilás
aliás é contrário
a qualquer forma de
governo
que não busque
a essência da luz
que traduza o alimento
a razão e o equilíbrio
o lado vermelho do azul
é mais forte
do que qualquer forma
de governo
permanece no ventre
do vento num tempo
que não necessita de
governo
o lado vermelho do azul
também é contrário
ao rio que escorre
como álibi, no córrego da
vida
faminta de uma sociedade
quase extinta
o lado vermelho do azul
não é frágil como os olhos
da manhã
que se ilude com o sol
os limões e a lepra
amarelada sob as armas
e armaduras de grupos
indecentes
o lado vermelho do azul
procura o verde, não esse
verde
da bandeira,
nem o verde da esperança,
mas sim, o ver do verde,
futuro decente
de um povo (o ovo em
banho-maria)
verdes o vermelho
é o outro lado do azul

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Charles Lucien Moulin (séc. XIX)

Baigneuse Aux Figues.

gênese

Zemaria Pinto


um poema se projeta
– entre sapos, entre grilos –
recortando a madrugada:

com o fio da navalha
costuro as sombras do chão
– viver é imenso

de pedras teço meu canto
recolhido, emimesmado
num redemoinho de enganos

(canto em arco arquitetado:
seta que se completa
no atingimento da meta)

onde ouvi aquelas pedras?
são monolitos de Rosa
ou sussurro minuano?

terça-feira, 18 de agosto de 2009

John Roddam Spencer Stanhope (1829-1908)

Nymphe.

ninfa

Clara Nihil


o meu desejo é u’a manada
de búfalos selvagens abalando
à superfície d’água

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Francesco Podesti (1800-1895)

The Birth of Venus.

Estante do tempo

Lago maldito
Jonas da Silva (1880-1947)


Se hoje, em surdina, o teu pesar disfarças,
Ouvindo o canto às jaçanãs morenas,
Sentes, minh’alma, as aflições e as penas
De um lago azul sem jaçanãs nem garças.

Lago em que havia à superfície esparsas
Grandes vitórias-régias e falenas
E em que hoje existe a canarana apenas
E são as praias matagais e sarças...

Senhora, olhai, vede esta cena, em mágoa...
Um peixe enorme agita as barbatanas
Fazendo um grande redemoinho n’água...

Morre aos venenos do timbó medonho...
– Assim tombei nas lutas desumanas,
Tal a Descrença envenenou-me o Sonho!...

domingo, 16 de agosto de 2009

José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899)

Autorretrato.

Minha pátria é minha língua

Homem que vens de humanas desventuras
Antônio Botto (1902-1959)


Homem que vens de humanas desventuras,
Que te prendes à vida, te enamoras,
Que tudo sabes mas que tudo ignoras,
Vencido herói de todas as loucuras,

Que te ajoelhas pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras
E na ambição das causas mais impuras
És grande simplesmente quando choras.

Que prometes cumprir para esquecer,
E trocando a virtude no pecado
Ficas brutal se ele não der prazer.

Arquiteto do crime e da ilusão,
Ridículo palhaço articulado,
− Eu sou teu companheiro, teu irmão.

sábado, 15 de agosto de 2009

Anselm Feuerbach (1829-1880)

Iphigenia.

Poesia em tradução

Súplica
Alfonsina Storni (1892-1938)


Senhor, Senhor, há muito tempo, um dia,
Um grande amor sonhei, que não pudera
Ninguém sonhar igual, um amor que era
A minha vida inteira de poesia.

Passava o inverno e, entanto, o amor não via;
E tornava a chegar a primavera,
o verão novamente aparecia
E o outono vinha me encontrar à espera.

Senhor, Senhor, meus ombros desnudados
Deixam-vos ver os golpes retalhados
Que ali deixaram látegos perversos...

E tomba a tarde já na minha vida!
E essa paixão ardente e desmedida,
Eu a perdi, Senhor, fazendo versos!...

(Trad. Ivo Barroso)

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Lorenzo di Credi (1458-1537)

Vênus.

Cidade 1985

Carlos Cardoso


De manha quando acordo
em Maputo
o almoço é uma esperança.
Mãe tenho fome
marido tenho bicha

e mil malárias me disputando a vontade.

De manha quando acordo
em Maputo
o jantar é uma incerteza
o serviço uma militância política
do outro lado do sono incompleto
e o chapa-cem um regulado impiedo
sono quatro barra oitenta sem contra-argumento.

De manha quando acordo
em Maputo
o vizinho já candongou o que me roubou
a estomatologia não tem anestesia
a chuva abriu dialeticamente mais um buraco na estrada
e o conselho executivo continua desdentado de iniciativas.

De manhã quando acordo
em Maputo
Porra para a vizinha que estoirou a torneira do rés-do-chão
Porra para o guarda que não ligou a bomba quando veio a água
Porra para os cem gramas de carne apodrecidos
no silêncio desenergético de Komatiport
mais as ó eme emes sem dê efes
e o soldado que ainda não ouviu dizer que os passeios
são lugares públicos
e os fulanizados explorados de outrora
que se preparam para cuspir na tua campa, ó Mataca,
às ordens de um Mouzinho boer.

Mas ao anoitecer quando me percorro
em Maputo
enfio ominosamente o cérebro numa competentíssima paciência
desembainho felinamente mais uma mentira diplomática
e aguardo a lucidez companheira me leia
nas acácias em sangue
nos jacarandás estalando sob a sola epidérmica do povo
que este é ainda o eco estridente do Chai
até que Botha seja farmeiro e Mandela Presidente.

Então,
com a raiva intacta resgatada à dor
danço no coração um xigubo guerreiro
e clandestinamente soletro a utopia invicta.

À noite quando me deito
em Maputo
não preciso de rezar.
Já sou herói.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Charles Gleyre (1808-1874)

Diana.

Silêncio e palavra

Thiago de Mello

I

A couraça das palavras
protege nosso silêncio
e esconde aquilo que somos.

Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.

Ademais, nem são palavras.
Sons vazios de mensagem,
são como a fria mortalha
do cotidiano morto.
Como pássaros cansados,
que não encontraram pouso
certamente tombarão.

Muitos verões se sucedem:
o tempo madura os frutos,
branqueia nossos cabelos.
Mas o homem noturno espera
a aurora de nossa boca.
.

II

Se mãos estranhas romperem
a veste que nos esconde,
acharão uma verdade
em forma não revelável.
(E os homens têm olhos sujos,
não podem ver através.)

Mas um dia chegará
em que a oferenda dos deuses,
dada em forma de silêncio,
em palavra transfaremos.

E se porventura a dermos
ao mundo, tal como a flor
que se oferta – humilde e pura –
teremos então cumprido
a missão que é dada ao poeta.
E como são onda e mar,
seremos palavra e homem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Amedeo Modigliani (1884-1920)

Seated Nude on Divan.

exercício nº 1

Zemaria Pinto


As horas passam como cães na noite
sobre o meu corpo de ervas verticais,
mesclando sons, ruídos ancestrais
ao silêncio do quarto. O forte açoite

do vento prenuncia a tempestade.
Relâmpagos inventam sombras tortas
nas paredes de formas natimortas:
uma forca, um punhal, uma deidade

pagã. Em meu peito um animal freme,
se agita, as mãos crispadas sobre o torso
nu, já não fala, balbucia, geme.

Buscando sonhos numa busca vã,
meu corpo explode em derradeiro esforço,
nos murmúrios convulsos da manhã.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Edward Burne-Jones (1833-1898)

The Wedding of Psyche.

Em tempo

Dedé Rodrigues


São poemas de dor
os que escrevo
herança de Florbela e de outras
da horda – que mesmo renegando –
faço parte.

É que as mulheres
mesmo amadas e prósperas
carregam no ventre a culpa
a expulsão do paraíso
e por isso sofrem...

sofrem mesmo sem saber
sofrem mesmo na alegria
sofrem e sofrem e sofrem:

– isso lhes basta.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Noel-Nicolas Coypel (1690-1734)

Birth of Venus.

Estante do tempo

Dois poemas para Autazes
Narciso Lobo (1949-2009)
.

I

Autazes não é uma saudade
nem um sonho
nem um poema

Autazes é um grito aflito
malárico diarreico

Autazes não é um desejo


II

Autaz Açu/Autaz Miri

Autazes:
rio juta homem
rio junta homem

Autaz Açu
encontra
Autaz Miri

Na Boca dos Autazes

Fome une paladares

domingo, 9 de agosto de 2009

Sebastiano Ricci (1659-1734)

Venus and Cupid.

Minha pátria é minha língua

Procura da poesia
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

sábado, 8 de agosto de 2009

René Magritte (1898-1967)

Golconde.

Poesia em tradução

O Corvo
Edgar Allan Poe (1809-1849)


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo:
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais”.

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
que mal ouvi...” e abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigo, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais”.
Disse o corvo, “Nunca mais”.

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais”,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

(Trad. Fernando Pessoa)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Jan Massys (1510-1575)

Flora.

Prova d’água

Rubervan du Nascimento


atiro o ódio
na Fonte de Dentro

rolam cismas entrevadas
pelo vão
uma
a
uma

pela fresta
meu corpo
redescobre a claridade

mãe-do-rio aprova o gesto
me convida
pro banquete
vestida de mim

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Jan van Eyck (1395-1441)

The Ghent Altarpiece: Eve (detail).

O sermão da selva (III)

Max Carphentier


Bem-aventurados os que sonharam e os que plantaram lagos
no Tien Shan, duzentos lagos novos
bordejando de bálsamo a grande muralha ressequida,
e aqueles que descobriram a outra face de Assuan,
importante barragem perigosa (quantas outras
socorrem de uma forma e matam de outra?)
de águas represadas aparentemente só frutíferas,
mas que aprisionam a cútis milenar e tenra
do lodo com que o Nilo dá de beber ao Egito
tanta verdura em meio a penedias.

Porque esses, considerando a eficácia e a índole das águas,
e seu poder de vida sob os astros, que as governam,
respeitarão o desígnio constelado das nascentes
de fazer escorrer no corpo verde os rios,
livres no seu ciclo vital e na clemência
de sangue claro e artérias que recolhem
a selva em seus minúsculos sistemas e a transformam
no pão nômade e fácil dos cardumes,
na perpétua vocação de safra dessas margens.

Bem-aventurados os que sabem que as raízes e as folhas
e a flor que alberga a luz, que sonha nela,
tanto interessam à ave como à rocha
e ao homem e às brisas igualmente importam;
que um androceu perdido nas espumas
nutre indistintamente a argila e o peixe.
Esses não perturbarão os movimentos invisíveis
dos universos que se ajustam e se completam nos ecossistemas,
não frustrarão a saga de topázios das cachoeiras,
castas e nuas noivas do arco-íris,
trompas da mata e rendas dos abismos.

Desses o galardão maior será a vitória
da semente na várzea e a azáfama dos rios
carregando no braço as cestas das colheitas;
a juta a estender nas touceiras do dia
seus vestidos de sol bordados pela terra;
e as canoas fartas levando os seus pomares,
e os homens combinando a próxima manhã,
enquanto, alta alegria, o menino se firma
no chão e ergue o seu riso contra a noite.

Porque o que a selva une a ignorância não separe,
e o que ela protege a mesquinhez não maltrate
e tudo que sua égide geral contém num abraço
disso também se livre, e se cumpra e se salve.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Jacek Malczewski (1854-1929)

The Pythia.

autocripta

Zemaria Pinto
(dedicado à poesia encanecida
das mesas de fins de festas)


não há poeta que resista
passar
24 horas por dia
sem pensar em poesia
durante anos sem fim:
a cabeça televisiona-se
a barriga, outrora esguia, encerveja-se
a poesia é apenas um retrato itabirano
pendurado na parede

e a produção? há produção! haja a promoção
do poeta comportado
gordo e bem/mal passado
que hoje depois de velho
contempla
velhos tomos coloridos
com a mesma sem-gracice
com que espia
lombos juvenis

ai de ti, poeta gordo
ex-poeta
poeta de porta de banco e de farmácia
deixaste
apagar do peito o fogo
com que um demônio incendiaste
há 10 mil anos atrás

pobre de ti, poeta porco
poeta de duplicatas, impostos e carnês
– quem reconheceria nesse cabelo-escovinha
debaixo dessa gravata
o adolescente irado
pregando a paz e a guerrilha?

poeta, meu poetinha de merda,
quebra esse espelho!

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Charles-Joseph Natoire (1700-1777)

Psyché à sa toilette.

Carta

Pelarga


passa correndo o correio
rua Borba, 195
tem um sonho pra mim?

– não, não veio!

passa o correio correndo
rua Borba, 195
tem uma esperança pra mim?

– não, não estou vendo!

passa velozmente o correio
no suor do carteio, nenhum sonho
nem uma tênue esperança.

– sangra o amor no seio!

deixo-me ficar inerte
entre o azul desbotado
da esquadria da porta.

– chora a saudade em desenleio!

minha alma de mão posta
esperando inutilmente
na infindável ausência
da tua carta-resposta.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Cristina Marsi

The Birth of Venus.

Estante do tempo

O Uirapuru
Barreto Sobrinho (1891-1934?)

Quem passa sobre os rios
dessa região imensa,
ouvindo os berros, os cantos, os gritos, os pios
da população selvagem, pensa
que aquela musicalidade
extraordinária
é a voz tumultuária
de uma calamidade...

Entretanto
destaca-se entre a grande balbúrdia
a expressão original, estúrdia
de um canto
dalgum duende
que ninguém entende...

Todos os brutos, animais e aves,
dentro do coração
da floresta, ouvindo os tons suaves,
cheios de estupefação
ficam calados
e maravilhados!

O duende-pássaro que na floresta apareceu
é alma de Orfeu!...

domingo, 2 de agosto de 2009

Hieronymus Bosch (1450-1516)

Triptych of Garden of Earthly Delights.
(central panel)

Minha pátria é minha língua

O canto do gaúcho
Simões Lopes Neto (1865-1916)


Eu não nasci para o mundo,
Para este mundo cruel.
Só quero cortar os Pampas,
No dorso do meu corcel,
Este meu pingo galhardo,
Este meu pingo fiel.

Eu sou como a tempestade,
Sou como o rijo tufão,
Que esmaga os vermes na terra,
E sobe para a amplidão.
Eu sou senhor dos desertos,
Monarca da solidão!

Quando eu, de lança enristada,
Esbarro no meu bagual,
Não temo a fúria sanhuda
Dessa canalha real,
Os reis são nuve’ de poeira,
Eu quero ser vendaval.

Eu sei que os reis, sobre os tronos,
Zombam de mim, eu bem sei;
Mas eu não troco o meu pingo,
Pela cabeça de um rei,
Esses palhaços c’roados
Que toda a vida eu odiei.

Qu’importa, pois, que eles zombam,
Que eles riam-se de mim?
Eu nunca fui um lacaio,
Eu nunca serei mastim,
Quero viver sempre livre
Quem me quiser – é assim!

Oh! como é belo – esta vida
Assim tão livre levar!
Beber a luz d’alvorada
Quando ela vai rebentar!
Correr o Pampa deserto,
Correr... correr... não parar!

Eu tenho a crença no peito,
Guardada no coração;
Quero surgir na batalha,
À voz da revolução;
Amortalhar-me nas dobras
Do tricolor pavilhão.

sábado, 1 de agosto de 2009

Frederick Arthur Bridgman (1847-1928)

The Bathing Beauties.

Poesia em tradução

O infinito
Giacomo Leopardi (1798-1837)


Sempre cara me foi esta colina erma
e esta sebe, que de extensa parte
dos confins do horizonte o olhar me oculta.
Mas, se me sento a olhar – intermináveis
espaços para além, e sobre-humanos
silêncios e quietudes profundíssimas,
na mente vou sonhando – e de tal forma
que quase o coração me aflige. E, ouvindo
o vento sussurrar por entre as plantas,
o silêncio infinito à sua voz
comparo: é quando me visita o eterno
e as estações já mortas e a presente
e viva com seus cantos. Assim, nessa
imensidão se afoga o pensamento
e doce é naufragar-me nesses mares.

(Trad. Ivo Barroso)