Amigos do Fingidor

quarta-feira, 31 de março de 2010

Chales Gleyre (1808-1874)

Le Coucher de Sapho.

elegia temporal

Zemaria Pinto




o sangue que me vem quente
e lento
do ventre me recorda
tua ausência

e flui feito o choro
represado
há tanto tempo
desenhando impressões vermelhas
na frialdade branca do vaso

(a meus pés
  um longo fio de cabelo
  desenha
  um possível ponto de interrogação)

terça-feira, 30 de março de 2010

Domenico Ghirlandaio (1449-1494)


Portrait of Giovanna Tornabuoni.

De ofício ou carta de fã

Dedé Rodrigues


Para o Chico



um dia eu quis descrever o teu feminino
e embarquei numa viagem
de mulheres estranhas
submissas e abandonadas – miseráveis
travestidas – mulheres violadas
mulheres fortes – prostitutas
viúvas – homossexuais

embarquei na loucura
de um bicho tão desconhecido
tão próximo
e tão íntimo
penetrei em minha própria alucinação
um mundo de amantes suicidas
de temporais violentos
e namorei com o vento
desamarrei os barcos
numa viagem sem retorno

segunda-feira, 29 de março de 2010

Chris Bilton

Birth of Venus.

Estante do tempo

Didática
Luiz Ruas (1931-2000)




Palavra por palavra
compõe-se a arquitetura.
O canto é limpo timbre.
É rosa a rosa. Rosa.

Desnuda geometria
espaço libertado:
no campo indevassado
na página tranqüila

desenho desprovido
de inúteis arabescos
os pontos se projetam
em linhas e figuras

os semitons banidos
só restam sombra e luz.
Palavra é só palavra:
Indício fruto ou véu.

Por fim se ordenam símbolos
em lúdica harmonia
Fundindo o lucicanto
Ou coisadedizer.

domingo, 28 de março de 2010

Cornelis Van Haarlem (1562-1638)

Banquet of the Officers of the Company of St. George.

Minha pátria é minha língua

Horas mortas
Alberto de Oliveira (1857-1937)




Breve momento, após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço,
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia!

Desta janela aberta à luz tardia
Do luar em cheio a clarear o espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica.
Mas é tão tarde! Rápido flutuas,
Tornando logo à etérea imensidade;

E na mesa a que escrevo apenas fica
Sobre o papel – rastro das asas tuas –
Um verso, um pensamento, uma saudade.

sábado, 27 de março de 2010

Eugene Soubiran (Século XIX)


Danae Sous L'Ondee D'Or.

Poesia em tradução

A um amigo distante

William Wordsworth (1770-1850)


Por que estás em silêncio? É teu amor a planta
De tanta fraca fibra em que o pérfido ar
De ausência o que era assim formoso irá secar?
Nem dívida a pagar, dádiva que garanta?
Porém meu pensamento em ti é vigilante,
Atado a teu serviço em incessante zelo –
A mente sem doar requer um mendicante
Por nada, mas poupar que possa teu desvelo.
Fala! embora este doce ardente peito, fito
Para ter mil prazeres almos, meus e teus,
Ficou mais assolado, um esfriar aflito,
Que um ninho abandonado e pleno de nevadas
No mesmo matagal de rosas desfolhadas –
Fala, e a ânsia das dúvidas, seu fim saiba eu!



(Trad. José Lino Grünewald)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Gustave Moreau (1826-1898)

Hésiode et la Muse.

Fui eu

Orides Fontela (1940-1998)




eu fui

eu?

consegui?


Existir: assombro.


Fui eu! Serei?

Nem Deus

diz.


Existir: abismo.


Como me

atrevi

como nasci?

quinta-feira, 25 de março de 2010

John William Godward (1861-1922)

Far Away Thoughts.

Do urutau

Max Carphentier




Vivendo de morrer do amor perdido,
a alma da cunhã, presa na lua,
às vezes desce sobre a noite, e canta
com o nome de urutau, ave das sombras,
em que se encarna pra sofrer nos ramos.
É que Tupã um dia a condenara,
por ter sido infiel, a errar nas trevas,
penando como fazem as flautas tristes.
E vem nesse cantar da lua à terra
toda mágoa dos olhos que interrogam
o céu sobre o pesar do amor sozinho,
como o pesar que sofre essa cunhã
         que, se um falaz amor tarde traíra,
         do verdadeiro amor cedo partira.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Pompeo Batoni (1708-1787)

Diana and Cupid.

exercício nº 4

Zemaria Pinto




O som do sol se pondo sobre o rio
compõe a melodia-desatino
de negros ecos, negras ressonâncias,
inventando hemoptises na calçada.

Um barco rasga lentamente a água
e uma gaivota faz evoluções
tardias. Pela beira, dois cães magros,
como dois homens, caçam nos monturos.

Aos poucos, desfaz-se a tarde submissa
à noite, o imenso pássaro sombrio,
sobrepairando azul sobre a cidade,
o hálito morno, as garras afiadas.

Meu peito inda lateja a dor antiga,
tanto cruel quanto serena e amiga.

terça-feira, 23 de março de 2010

Francesco Melzi (1493-1570)

Pomona and Vertumnus.

Fim de fita

Regina Melo
À memória do Cine Guarany



Dêem adeus aos anjos loucos

às pragas empestando as praças

aos sussurros dos loucos

desvairados

das crianças que beijam

todas as bocas



Dêem adeus aos piratas clandestinos

na orgia das madrugadas.



O Guarany acaba de ser

demolido!

segunda-feira, 22 de março de 2010

Anthony Ackrill

Birth of Venus.

Estante do tempo

No Roadway
Alcides Werk (1934-2003)




As águas do Roadway são negras
porque são filhas do rio Negro,
ou porque os homens as toldaram?

As águas lavam tudo,
mas não lavam a si mesmas.

Meu pequeno espírito, absorto,
filosofa sobre essas obviedades.

Já vi muitas pessoas
lavar o lado sujo de suas almas
no rio Negro.

Estamos ficando velhos
precocemente
- eu e o rio Negro.

domingo, 21 de março de 2010

Guillaume Seignac (1870-1924)


The Awakening of Psyche.

Minha pátria é minha língua

Iara, a mulher verde
Cassiano Ricardo (1895-1974)




Neste país de coisas em excesso
o sol me agride, o azul passa da conta.
No entanto, os poucos beijos que te peço
o teu amor futuro me desconta.

De tanto céu tenho a cabeça tonta.
O meu jornal é todo em verde impresso.
Só tu, a quem já um pássaro amedronta,
te fechas no mais íntimo recesso....

No país do excessivo, és muito pouca.
Vê a borboleta jovem, como esvoaça.
Vê como nos convida a manhã louca!

Por seres assim, se tudo é assombro,
se a própria nuvem branca – e com que graça –
só falta vir pousar em nosso ombro?

sábado, 20 de março de 2010

Jean-Jacques-François Lebarbier (1738-1826)

A Female Turkish Bath or Hammam.

Poesia em tradução

Kubla Khan
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834)



Em Xanadu, um palácio de prazer
Comanda-o Kubla Khan como um farol
Onde Alph, rio sagrado, vem correr
Através de cavernas sem mais ver
Ao ser humano até um mar sem sol.
Assim, milhas e milhas de bom solo,
Cerca de muro e torres polo a polo:
E lá jardins luzentes em ribeiros
Curvos e árvores com flor e incenso;
Aqui florestas velhas qual outeiros,
Estufam tons de sol em seu descenso.

Mas, oh! ideal abismo que desceu
Pela colina em cedro verdejante!
Lugar selvagem! santo e tão galante
como sob um luar minguante deu-se
A uma mulher em prantos: demoamante!
E no abismo em tumulto sem cessar,
Como se esta terra estivesse a arfar,
Uma possante fonte foi lançada,
Entre seus fortes jatos em camada
Grandes fragmentos alçam-se, granizos,
Ou áridos grãos sob o mangual com guizos;
Sempre e uma vez rochedos dançarinos
Davam-se em relance ao rio divino.
Cinco milhas em deslizar insano
Entre vales e bosques foi-se o rio
E chegou às cavernas sem feitio
E agitado entrou no vago oceano:
E nisso Kubla de longe a escutar
Vozes velhas a guerra a anunciar!
       A sombra do palácio do prazer
       Flutuou pelo meio das marés
       Quando se ouviu a escala do envolver
       Da fonte e das cavernas. E até
Era milagre de raro desvelo
Um solar de prazer, cavas de gelo!

       Uma donzela com saltério
       Vi certa vez como algo etéreo
       Era uma virgem da Abissínia
       E no saltério dela ouvia
       O seu cantar do Monte Abora.
       Podia reviver agora
       Sua canção e sinfonia,
       Esse denso deleite me teria,
Pois com longa, elevada melodia,
Eu faria aquele solar no ar,
Aquelas cavas de gelo! O solar!
Todos que ouviram os veriam lá,
E, cuidado! cuidado! a gritar
Todos. Seus olhos cintilantes
E seus cabelos flutuantes!
Três vezes tece um aro em torno dele,
E cerre a vista em sacro medo, que ele
Alimentou-se do silvestre mel
E assim bebeu o leite lá do Céu.



(Trad. José Lino Grünewald)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Valeri Aslanoglu

Smile of the black woman.

Póstudo

Augusto de Campos




                       QUIS

MUDAR       TUDO


MUDEI         TUDO


AGORAPÓSTUDO


                EXTUDO


MUDO

quinta-feira, 18 de março de 2010

Artemisia Gentileschi (1593-1653)

Bathsheba.

Rondel do Cupuaçu (XXVI)

Luiz Bacellar



cupuaçu

és soberano

do pomolário

americano

num cofre pardo

guardas com ciúmes

raros sabores

vivos perfumes



urna selvagem,

ubre silvestre,

moreno seio,

tanta delícia

tua curva crosta

retém no meio

quarta-feira, 17 de março de 2010

Diego Velázquez (1599-1660)

The drinker (The Triumph of Bacchus).

paixão

Zemaria Pinto



a nona sinfonia explode
tua lâmina me rompe o ventre
e faz jorrar o sangue da minha carne
plantando-me tua semente

a paixão violenta – o grito
a lágrima sufocada – ah, a alegria
língua que lambe o mundo

o beijo a dentada
contigo, eu pelo espaço:
Beethoven & boleros

sou uma égua de fogo

terça-feira, 16 de março de 2010

Pelagio Palagi (1775-1860)

Diana cacciatrice.

Espelho

Gracinete Felinto




Sou um ser à parte
a procura do não dito,
a busca me faz incesto
a mim mesmo.

Sou ser em toda parte
nos anúncios me aglutino,
entre o alicerce de outrora
e os anseios da vaidade.

Mas continuo a ser um ser
sem um todo,
“espelho comum”
que a alma nega.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Manfred Von Pentz

Birth of Venus.

Estante do tempo

Do corpo, da memória
Ernesto Penafort (1936-1992)




eis que surges, noite morta.
nem te adivinhava antes,
já vagava em outras terras,
outros mares me banhavam.
entretanto, estás
presente, suor do corpo.
rastro de quem anda,
amor de quem partiu.

eis que surges, noite morta.
mesmo adivinhar-te
era um absurdo, noite morta.
principalmente agora
que vejo luz e longe,
estás presente, suor do corpo,
memória e tatuagem,
novamente suor do corpo,
estás presente,
memória de quem anda,
suor de quem partiu.

domingo, 14 de março de 2010

Antonio Maria Esquivel (1806-1857)

Doña Josefa García Solis.

Minha pátria é minha língua

Do azul, num soneto
Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008)



Verificar o azul nem sempre é puro.
Melhor será revê-lo entre as ramadas
e os altos frutos de um pomar escuro
– azul de tênues bocas desoladas.

Melhor será sonhá-lo em madrugadas,
fresco, inconstante azul sempre imaturo,
azul de claridades sufocadas
latejando nas pedras – nascituro.

Não este azul mas outro e dolorido,
evanescente azul que na orvalhada
ficou, pétala ingênua, torturada.

Recupero-o sem ter, e ei-lo perdido,
azul de voz, de sombra envenenada,
que em nós se esvai sem nunca ter vivido.

sábado, 13 de março de 2010

Oscar Pereira da Silva (1867-1939)

Dánae.

Poesia em tradução

Canção
Bernart de Ventadorn (1150?-1195?)



Ao ver a ave leve mover
Alegre as alas contra a luz,
Que se olvida e deixa colher
Pela doçura que a conduz,
Ah! tão grande inveja me vem
Desses que venturosos vejo!
É maravilha que o meu ser
Não se dissolva de desejo.

Ah! tanto julgava saber
De amor e menos que supus
Sei, pois amar não me faz ter
Essa a que nunca farei jus.
A mim de mim e a si também
De mim e tudo o que desejo
Tomou e só deixou querer
Maior e um coração sobejo.

Eu renunciei a me reger
Desde o dia em que os olhos pus
No olhar que vi transparecer
No belo espelho em que reluz.
Espelho, pois que te vi bem,
Morri na luz do teu reflexo
Como, perdido de se ver,
Narciso no seu próprio amplexo.


(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Leon Bazile Perrault (1832-1908)

Venus with a Dove.

Soneto a quatro mãos

Francisco Carvalho e Jorge Tufic



O tempo passa, o tempo nos ilude.
O tempo nos pranteia a qualquer hora
quando amanhece, quando é noite escura,
quando a taça do amor nos comemora.

O tempo, quando muito se demora
confunde as noites, rouba a juventude;
então que seja vário e sempre mude
aos sons do brinde, aos êxitos de agora.

O tempo que não vemos se renova
nos momentos diurnos ou facetos,
mas também são ardis, mutantes covos.

O tempo nos enterra numa cova
com os versos que escrevemos e os sonetos
que foram velhos e ficaram novos.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Giampietrino (? - 1549)

Diana, the Huntress.

Tristeza

Almir Diniz


Cavalgo, triste, meu corcel alado
Pelas pistas sem fim do pensamento,
De rédea solta, solto meu lamento,
Meu protesto de lágrimas molhado.

Galopando sem rumo, e magoado,
Carpindo no selim meu sofrimento,
Chego a pensar que todo este tormento
É mero sonho, e sonho malfadado...

Mas, se passo trotando contra o vento
E ouço um tropel alegre pelo prado,
Aperto o arreio... sem... eis-me acordado!

Aí, sim, sofro a dor que me vai dentro,
Essa dor que mais dói, sem ferimento,
Que as feridas de todo o meu passado!

quarta-feira, 10 de março de 2010

Hendrik van Balen (1575-1632)

The Judgement of Paris.

exercício nº 2

Zemaria Pinto




(as ásperas palavras que te disse
naquela madrugada de setembro
retornam feito facas em meu peito
forjadas pela têmpera do tempo)

a noite agônica se plasma lenta
sobre os escombros da cidade cinza,
dispondo sombras que, multiplicadas,
deslizam livres aos desvãos da vida

ao eco dos silêncios vem juntar-se
a frágil consciência da distância:
menos que pena, dor dilacerada

meus olhos lúcidos deliram sonhos
por sob as tardas horas que traduzem
ausência, perda, solidão e nada

terça-feira, 9 de março de 2010

Vera Donskaya

Self-portrait.

Igual às rosas

Rayder Coelho


(em homenagem ao dia internacional da mulher)



Teu amanhecer é orvalhado de ternura
e com toda a doçura que preparas o café
despertarás sonhos no mais incauto ser

Dos dias que nascem de ti
pedem um poema.

Dos que habitam em teu jardim
igual às rosas, arcanjos e serafins, esperam de ti
força para triunfar e adornar os caminhos.

Das tardes que descansam em ti
pedem um poema.

Tua força vem em se compadecer dos fracos
e erguendo os braços em um gesto sagrado
como quem protege seu legado

dos que te amam e adormecem em ti
pedem um poema.

Pede um poema a força com que vences
o amor que te envolve e transcende.
O milagre de uma rosa
como um poema ou prosa
que a mais bela flor irá eternizar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Jonathon Earl Bowser

Birth of Venus.

Estante do tempo

Três garças... três graças...
Barreto Sobrinho (1891-1934?)





Dentro da floresta amazônica, disforme,
há um grande lago, um lago enorme,
que vive a espelhar na face sua
de dia o sol, de noite a lua...

Em torno ao lago
o vasto capinzal verdeja.
E sob o afago
de mil aves
de cantos estridentes ou suaves,
alveja
uma trilogia de garças brancas
que naquelas paragens francas
ficaram perdidas
qual três visões esquecidas...

Aquele grupo lindo
de três garças,
faz-me pensar que fugiram do Pindo
as três graças...

E ali naquela imensidade
de água e floresta
elas estão simbolizando a saudade
na expressão de sua alvura modesta...

E o lago também ali perdido,
ignorado,
dá-me a idéia de um mundo encantado
transformado no líquido polido...

Esta minha impressão (eu bem recordo)
tive-a ao passar por ali, a bordo.

O rio se estirava interminável!
A floresta aumentava formidável!

Foi quando eu vi as três garças solitárias
naquelas paragens milenárias
de sugestões e de belezas raras,
de lendas, de bruxedos e de Iaras!

Mas as três garças brancas pareciam
três almas penadas
que aos viandantes pediam
que fizessem
com que elas fossem desencantadas...

Mas o navio passou
e a trilogia das garças ali ficou!

domingo, 7 de março de 2010

Jean-Léon Gérôme (1824-1904)

Phryné before the Areopagus.

Minha pátria é minha língua

O julgamento de Frineia
Olavo Bilac (1865-1918)




Mnezarete, a divina, a pálida Frineia,
Comparece ante a austera e rígida assembleia
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxiteles,
De Hipérides à voz e à palheta de Apeles.

Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam,
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça,
Transbordante de Cós, erguer com maior graça,
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.

Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses,
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis…
Basta um rápido olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo…
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas:
Basta um gesto, – e a seus pés roja-se humilde Atenas…

Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela
Sua oculta nudez, mal os encantos vela,
Mal a nudez oculta e sensual disfarça.
Cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa…
Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala,
E incita o tribunal severo a condená-la:

“Elêusis profanou! É falsa e dissoluta,
Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta!
Dos deuses zomba! É ímpia! é má!” (E o pranto ardente
Corre nas faces dela, em fios, lentamente...)
“Por onde os passos move a corrupção se espraia,
E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!”

Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma…
Mas, de pronto, entre a turba Hipérides assoma,
Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede,
Suplica, ordena, exige… O Areópago não cede.
“Pois condenai-a agora!” E à ré, que treme, a branca
Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca…

Pasmam subitamente os juízes deslumbrados,
– Leões pelo calmo olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia
Todo o corpo ideal, Frineia aparecia
Diante da multidão atônita e surpresa,
No triunfo imortal da Carne e da Beleza.

sábado, 6 de março de 2010

Pompeo Batoni (1708-1787)

Venus and Cupid.

Poesia em tradução

O prazer do difícil
William Butler Yeats (1865-1939)



O prazer do difícil tem secado

A seiva em minhas veias. A alegria

Espontânea se foi. O fogo esfria

No coração. Algo mantém cerceado

Meu potro, como se o divino passo

Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço,

Sob o chicote, trêmulo, prostrado,

E carregasse pedras. Diabos me levem

As peças de sucesso que se escrevem

Com cinquenta montagens e cenários,

O mundo de patifes e de otários

E a guerra cotidiana com seu gado,

Afazer de teatro, afã de gente.

Juro que antes que a aurora se apresente

Eu descubro a cancela e abro o cadeado.


(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 5 de março de 2010

William Edward Frost (1810-1877)

Nymph and Cupid.

Única

Marcelo Salgado




Morena leonina da pele branca
Juba tão negra, tão longa, tão lisa
Teu olhar mestiço marcante me avisa:
“Sou muito mulher; sou fogo, sou franca””

Morena branca da pele leonina
Sempre que amarra essa negra cortina,
Os braços na altura do nariz fino,
Percebo de novo porque me fascino

Por essa mulher de quem quente emana
Simples sorriso de amazona urbana:
Revela, elegante, teus mais de vinte
Mistérios fartos, felino requinte

E segundo seguinte segue adiante
Qual leoa que és: exuberante.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Palma Vecchio (1480-1528)

Venus and Cupid in a landscape.

Carta Lunar – Adágio (XX)

Luiz Bacellar



O meu verso é um fragor: desmoronar-

me sinto quando escrevo. E o ruído é tanto

que vou com passo incerto no meu canto

como se caminhasse à beira-mar

num dia de ressaca sob um luar

como o de agora (a Via Láctea é um manto

salpicado de sal, de prata e pranto)

em que as horas se esquecem de passar.

Meu verso é um natural correr de pena

que rasga, que destrói, mutila e mata

minhalma que é de espuma e de verbena:

é um vestido deixado sobre a cama,

vazio de um corpo amado. E me arrebata

no vácuo intenso do meu próprio drama.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Guido Reni (1575-1642)

Bacchus and Ariadne.

poema inconcluso

Zemaria Pinto



uma estrela de gás refinado
rasgou o céu sobre o Negro
quando você disse sim

um turbilhão de ânsias
coração a coração – invadiu-nos

e a linguagem dos corpos negava
tuas palavras negando o que teu corpo
todo teu corpo – gritava

(conosco
a anatomia ficou louca)

e eu atirei-me ao precipício

antes mesmo de alcançá-lo
como temesse perdê-lo:
                                      não havia espaço para o voo.

mas haveria um poema a ser escrito
                        – o mergulhar no desconhecido
                           o flutuar na escuridão
                           o deixar-se levar pela paixão
sendo ave, homem e deus alguns segundos

esse poema
              eu o escreverei
       no teu corpo!

terça-feira, 2 de março de 2010

Peter Paul Rubens (1577-1640)


Venus and Adonis.

exercício interrompido

Clara Nihil


seis anjos pairam sobre a navenoite
seus corpos transparentes de onde brota
o sangue dos cordeiros irredentos
e um cântico de lobos transtornados

os anjos são destroços dos vencidos
que não tiveram tempo de lutar
são sombras refletidas pensamento
vão turva criação de mentes vis

segunda-feira, 1 de março de 2010

Henry Selous (1803-1890)


The birth of Venus.

Estante do tempo

O Uirapuru
J. Ferreira Sobrinho (1888-?)


Para Olegário Mariano


No Acre. Pleno verão. Deslumbrante arrebol
inundava de luz a majestosa mata,
quando, a viajar, ouvi, do maestro de escol,
a voz, que nos fascina, entusiasma e arrebata.

No alto de um buriti, bebendo a luz do sol,
ele o canto habitual, primoroso, desata...
Rodeiam-no, da selva em multicromo rol,
boêmios e menestréis, voejando, espata a espata,

em coro... E mais e mais se inflama a rude avena,
afeita a preludiar, por invernos e estios...
Tão soberba magia a ave ao concerto empresta,

que se tem a impressão de que, assim, tão pequena,
tem, no peito, o rumor de cascatas e rios
e a harmonia pagã de suntuosa floresta.