Amigos do Fingidor
terça-feira, 30 de setembro de 2008
Antígona
Para D. Hermes da Fonseca
As grevas se iluminam ao sol do meio-dia.
Rubros, saem da névoa os corpos retalhados,
lâminas quebradas gotejando trevas
sob o olhar de tédio dos cavalos.
Fúrias que se ocultam em rosto vário
deixam nesta hora o plano imenso.
Quando, nos punhais, serão gravados
nossos nomes, nossa hora, em silêncio?
No trio, em silêncio, um vulto chega.
A mortalha em farrapos sobe ao vento. Esse encarne
do Amor (que nos corpos apodrece) chora
a carne em solidão - o negro templo.
Abre a multidão, caída, sob o férreo sol
da estação de Tebas. A brutal cidade
hoje uma chaga aberta
numa entorpecida América selvagem.
Como um cão divino, transparente e grave
passa a grande sombra sobre o fio das facas.
Não purificou, o Tempo, a sua arca
de agonias, de miséria e sangue.
O meio-dia tange a lágrima de bronze
sobre bondes e pedreiros e peões cansados
e garis suados. Pai, é teu cadáver
que Antígona levanta em seus braços.
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Estante do tempo
Antísthenes Pinto (1929-2000)
Há um luar azul percorrendo o meu corpo.
Todas as aves brancas construíram ninhos no meu coração
e seus cânticos são de uma tristeza inenarrável.
Vou absorvendo o orvalho noturno
com a mesma quietude da árvore curvada no barranco.
Meu maior alimento é o silêncio
e o deslizar do rio comumente tranqüilo.
A outra metade de mim vive no espelho
que deforma a minha paz. Tantas ruas
cruzam-se em meus pés, tumultuosas, salpicadas de pranto
e seios de todas as cores e vícios e viços.
As auroras e os crepúsculos das cidades,
o ar plúmbeo, cinzento das cidades
arrancaram todo o humor que eu tinha pelos homens.
(No entanto o sangue corre nas minhas veias frias).
Ah se a memória se limitasse ao presente,
todavia, o passado me inunda a alma
e cicatrizes das mais torpes
se espalham nos meus ossos, nos meus nervos,
na minha sombra espectral, estática sombra roxa.
Meu maior alimento é o silêncio
e o deslizar do rio, comumente tranqüilo.
domingo, 28 de setembro de 2008
Minha pátria é minha língua
Machado de Assis (1839-1908)
O poeta chegara ao alto da montanha,
E, quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.
Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,
Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.
sábado, 27 de setembro de 2008
Poesia em tradução
Allen Ginsberg (1926-1997)
O método deve ser a mais pura carne
e nada de molho simbólico,
verdadeiras visões & verdadeiras prisões
assim como vistas vez ou outra.
Prisões e visões mostradas
com raros relatos crus
correspondendo exatamente àqueles
de Alcatraz e Rose.
Um lanche nu nos é natural,
comemos sanduíches de realidade.
Porém alegorias não passam de alface.
Não escondam a loucura.
(Trad. Cláudio Willer)
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Água doce
A água do rio é doce.
Carece de sal, carece de onda.
A água do rio carece
da vândala violência do mar.
A água do rio é mansa
sem a ameaça constantes das vagas
sem a baba de espumas brabas.
A água do rio é mansa
mas também se zanga.
Tem banzeiro, enchente
correnteza e repiquete.
Pressa de corredeira
sobressalto de cachoeira
traição de redemoinho.
A água do rio é mansa
corre em leito estreito.
Mas também transborda e inunda
também é vasta, também é funda
também arrasta, também mata.
Afoga quem não sabe nadar.
Enrola quem não sabe remar.
A água do rio é doce
mas também sabe lutar.
A água doce na pororoca
enfrenta e afronta o mar.
Filha de olho d’água e de chuva
neta de neve e de nuvem
a água doce é pura
mas também se mistura.
Tem água cor de café
tem água cor de cajá
tem água cor de garapa
tem água que nem guaraná.
A água doce do rio
não tem baleia nem tubarão
tem jacaré, candiru, piranha
poraquê e não sei mais o quê.
A água doce não é tão doce.
Antes fosse.
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
O Rio Amazonas
Rio, lavras tua gula,
comedor de terra e espuma,
trazes os teus peixes todos,
sol ardente sobre lâmina.
Manhã clara consumada,
hereditária da chuva,
água tranqüila na cuia
do verão que te saúda.
Noite nova sobre as árvores,
sombras nos ombros da lua,
os duendes antigos vivos,
mulher deitada na grama.
Não és um rio caduco,
mas uma fera atiçada.
Contra a fome te concentras
como o fixo olhar da garça.
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
Exercício nº 13
Assim falava Zaratustra
Zemaria Pinto
Agora vou dizer-vos sobre mim,
ó multidão destino e oceano.
Estai atenta para que as palavras
fundam-se em fogo e bronze na memória.
Dos homens ocos já trilhei caminhos,
plantei sementes de noturnos sonhos,
fiz-me passagem, ponte, travessia:
hoje sou ontem e amanhã e sempre.
Fui peregrino, traduzi montanhas,
levando em mim o caos que poderia
trazer à luz a mais brilhante estrela.
Amei senão a alma transbordante
e a solidão dos poucos que souberam
viver a vida como se extinguindo.
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Antropologia
Simão Pessoa
tembé oiampii assurini parakanã
xikrin gorotiré apalaí kaxuyana
tiryo arara parakatagé karipuna
galibi palikur makuxi wapixana
fora dos livros de história
estes nomes não dizem nada
só trazem talvez remorso
pela memória apagada
txikuna miranha kulina kaxinawá
tapirapé paresi iranixe karajá
xavante bacairi javaé nambikuara
krinati guajajara krahó apinagé
fora dos livros de história
estes nomes nada nos dizem
só trazem talvez espanto
pela miséria visível
guajá xerente pataxó atroari
pankararé tupiniquim krenak tuxã
waimiri kaimbé potiguara xoko
kiriri ianomâmi apurinã kadiwé
fora dos livros de história
estes nomes nos mostram tudo:
o homem lobo do homem
na apoteose do jugo
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
Estante do Tempo
Alcides Werk (1934-2003)
A água, que é mãe da vida
(antes pura, clara, doce),
passa aí prostituída,
triste, amarga, poluída,
como se mater não fosse.
domingo, 21 de setembro de 2008
Minha pátria é minha língua
Fernando Pessoa (1888-1935)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
sábado, 20 de setembro de 2008
Poesia em tradução
O Albatroz
Charles Baudelaire (1821-1867)
Às vezes, por folgar, os homens da equipagem
Pegam de um albatroz, enorme ave do mar,
Que segue – companheiro indolente de viagem –
O navio no abismo amargo a deslizar.
E por sobre o convés, mal estendido apenas,
O imperador do azul, canhestro e envergonhado,
Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas,
Eis que deixa arrastar como remos ao lado.
O alado viajor tomba como num limbo!
Hoje é cômico e feio, ontem tanto agradava!
Um ao seu bico leva o irritante cachimbo,
Outro imita a coxear o enfermo que voava!
O Poeta é semelhante ao príncipe do céu
Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;
Exilado na terra e em meio do escarcéu,
As asas de gigante impedem-no de andar.
(Trad.: Jamil Almansur Haddad)
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
Poeta não se define: é um ser à parte
Jorge Tufic
Poeta não se define: é um ser à parte.
De homem se veste, de animal caminha,
mas algo nele de anjo se avizinha
quando em fatias brancas se reparte.
Cheira o pão de seus versos; faz-se arte
pela dor que humaniza e que espezinha;
não a dor do egoísmo, a dor mesquinha,
mas a dor que se empluma no estandarte.
Pode ser o domingo que se anula,
um galgo que tropeça, o lenço esgarço
que, sendo de Marília, ainda tremula.
Para si mesmo estranho ele se enigma,
avesso ao paletó, caderno esparso,
nada o liberta, nunca, desse estigma.
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Rondel do tucumã (XLVIII)
do teu minúsculo coquinho
relatam lendas milenárias
brotaram sono, amor, carinho,
a lua e as outras luminárias;
onças e pássaros noturnos,
quanto em teu bojo se escondia
dele fugiu com ares soturnos
enquanto o breu se derretia;
tu foste a caixa de Pandora
das tribos bárbaras de outrora
e a cor das asas da graúna
saiu de ti como um trovão
para que a filha da boiúna
pudesse amar na escuridão
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
Advertência ou Uma poética do devaneio
I
O meu poema não guarda
relação com a realidade.
Quando muito, escrevo sonhos
que ando sonhando acordado.
São sonhos pré-fabricados,
tecidos de forma vária:
sonho poemas escritos
por poetas que não li
e os escrevo com a certeza
de que a mim não me pertencem.
Mas os escrevo em sonhos:
tinta de ar, papel de espuma.
Serpentes e labirintos,
anjos, panteras, centauros,
pássaros, peixes e vacas,
cães, borboletas, carneiros,
além de abismos e rios:
são recorrências de sonhos.
Sonhar voando é brinquedo,
recorrência de prazer.
II
Já sonhei com o Paraíso,
onde busquei Beatriz
num círculo espiralado
de areia e vento e desejo.
Mas já sonhei com o Demônio.
Aliás, lhe sonho sempre,
desde quando um grito negro
despertou-me do delírio,
entre a repulsa e a libido,
do meu corpo submetido.
Sonho com o céu se abrindo
em nuvens revolucionadas.
Sonho com a Terra explodindo,
ilhas de gente arrancadas,
explosões multiplicadas,
lava de fogo e poeira.
Em meio a tudo caminho
com a calma dos culpados,
e talvez até sorria
da beleza do espetáculo.
III
Para o poema transponho
não os sonhos como os vi:
passo ao papel a tristeza
que toma conta de mim
ou então a alegria
esporrada no lençol.
Pois se os escrevo sonhando,
transcrevo-os na sordidez
das lentas salas de espera,
nas filas dos hospitais,
nas toscas mesas dos bares
que constrangido freqüento
ou nas mesas apressadas
dos restaurantes de quilo.
O poema não reclama,
não requer assepsia.
Apenas pede passagem
como um quisto que supura:
a urgência do poema
não condiz com a escritura.
IV
Deve o poema ser lento
gerado célula a célula,
como um corpo que se forma,
um bicho que se transforma
ou como fosse a laranja,
que se faz de casca e gomos;
em cada gomo milhares
de pequenas bolsas-lágrimas;
e somem-se ainda os átomos
do líquido que a enforma,
até a conclusão óbvia:
toda laranja é um poema.
Toda vida é um poema?
Toda coisa é um não-poema?
Mas uma coisa se muda
em poema: se transmuda.
Poemacoisa: poesia;
poemobjeto é outra coisa.
Um poema é um poema,
apenas e tão-somente.
V
A medida do poema
nasce na palma da mão,
galopando até a língua
no ritmo desejado.
Mas a música do poema
é o ouvido do leitor.
Alguns poemas têm cheiro;
outros há que têm sabor;
outros buscam harmonizar
os sons, perfumes e as cores.
O meu poema procura
a ordem fora da ordem.
Mas não resiste o poema
que não reflete uma imagem,
ainda que distorcida
em figura de linguagem.
Pois assim é o meu poema:
lúcido, lúdico, meu.
De outra forma, valeria
transformar sonho em poesia?
sexta-feira, 12 de setembro de 2008
Soneto ao fingidor
Revejo a praça, o bar, o teatro, a igreja.
A tarde deixa o dia ali na esquina.
Logo chega o Simão, e a noite ensina
que antes do papo venha uma cerveja.
Agora o bar do Armando é uma oficina.
Em cada peito um fingidor lateja...
Zemaria sussurra, alguém troveja,
mas tudo é festa, brinde, serpentina.
Que seria de nós ou da Poesia,
se além da “crise” bar virasse banco,
praça, estacionamento, o que seria
das estrelas, do nimbo e do luar,
se de repente um verso – azul ou branco –
já não tivesse mais onde pousar?