Amigos do Fingidor

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Kuroda Seiki (1866-1924)

Lakeside.

Dabacuri - amazônica 6

Zemaria Pinto


vai-e-vem dos barcos
dia de missa e de festa
– manhã de domingo



pequeninos círculos
se formam à flor da água:
ainda chuvisca

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Max Ernst (1891-1976)

The Whole City.

E assim vai o dia

Lau Franco


E assim vai o dia
no calor equatorial dos infernos
O asfalto evapora as almas
de quem, sob frágeis pés, alcança cada espaço
e atravessa rios de peixes metálicos,
nadando ao lado de dragões mecânicos enfurecidos

Lá se vão as gentes: sobem, descem, entram e saem
num mar de urbana barbárie
engolidas por concreto e alumínio
de um cotidiano cinza-esverdeado
Levam no peito corações e sonhos e intenções e desejos
consumidos todos pela velocidade vazia da pressa

E haja barrigas para empurrar este mundo

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Lena Sotskova

Birth of Venus.

Estante do tempo

Em busca da perfeição
Hemetério Cabrinha (1892-1959)


A alma que busca exílio nas clausuras
Emotivas da vida transitória,
Traz em sua odisseia, em sua história
As consequências das ações impuras.

Absorvida nas dores, nas torturas,
Nos desesperos de uma luta inglória,
Percorre amargurada trajetória
Em sucessivas existências duras.

Reparando a fraqueza de seus atos,
Como o cego levado pelos tatos,
Busca na treva a meta desejada.

Até que um dia, em vestes vaporosas,
Abre no espaço as asas luminosas
E conquista a Mansão Iluminada.

domingo, 27 de setembro de 2009

Patricia Watwood

Portrait of a Woman with a Bared Breast.

Minha pátria é minha língua

5ª Sinfonia de Beethoven
Solano Trindade (1908-1974)


5ª Sinfonia de Beethoven
Os dois tímbalos
parecem o mundo
partido ao meio

Eu gosto da barbaria dos tímbalos
como de todas as melodias
como de todos os sons
como de todas as cores
como todas as formas
Detesto limitações
eu gosto da barbaria dos tímbalos

5ª Sinfonia de Beethoven
Estou sofrendo
como as mulheres de parto
Eu gosto da barbaria dos tímbalos
Chove lá fora
e Garcia Lorca passeia na chuva

Barbusse está cheio de amor pela vida
e Beethoven escuta a própria Sinfonia
Não sei onde está o fim
nem o princípio das cousas
sei que gosto da barbaria dos tímbalos

Eu sou como a semente
que espera a terra
Eu serei plantado
e meus irmãos repousarão sobre mim
quando eu for uma árvore frondosa
Minha amada está despida para me receber
Seu corpo é como a 5ª Sinfonia
Seus olhos são como a 5ª Sinfonia
Seus seios
são como a 5ª Sinfonia
A minha amada é universal.

Oh! se eu pudesse pintar a 5ª Sinfonia
Chove lá fora
Van Gogh passa em passos largos
Gauguin está pintando as mulheres das ruas
e eu estou perdido
dentro de mim mesmo
porque não sei pintar
a 5ª Sinfonia de Beethoven

Onde estão os bárbaros?
Onde estão os civilizados?
Onde está o amor?
Onde está o ódio?
Estão na 5ª Sinfonia
As crianças marcham à minha frente
cantando uma canção de esperança

Ouçam todos os que me entendem
eu amo a 5ª Sinfonia de Beethoven
e não quero limites para viver.

sábado, 26 de setembro de 2009

Frederic Leighton (1830-1896)

The Daphnephoria.

Poesia em tradução

Ode sobre uma Urna Grega
John Keats (1795-1821)


______________________
I

Tu, ainda não violada noiva do repouso,
Criança, de que o silêncio e o tardo tempo cuidam,
Silvestre historiadora, que assim podes exprimir
Um florido conto com maior doçura do que a nossa rima:
Que legenda franjada de folhagens te rodeia a forma
De divindades ou mortais, ou de umas e outros,
Pelo vale de Tempe ou nos da Arcádia?
Que homens são esses ou que deuses? Que virgens relutantes?
Doida perseguição! Que luta por fugir?
Que frautas e pandeiros? Que furor selvagem?

_____________________II

É doce a melodia que se escuta; mais ainda,
Aquela que não se ouve; soai pois, ó brandas frautas;
Não para o ouvido material, porém mais gratas
Tocai-nos para o espírito árias insonoras:
Formoso jovem sob as árvores, não podes mais cessar
Tua canção, nem estas árvores despir-se;
Jamais, jamais, afoito amante, podes tu beijar,
Embora próximo da meta – entanto não te aflijas;
Ela não pode se fanar: se não alcanças teu prazer,
Para sempre a amarás e ela será formosa!

____________________III

Felizes, ah! felizes ramos! não podeis perder
As vossas folhas, nem dizer adeus à primavera;
Melodista feliz, infatigável,
Para sempre a modular cantigas para sempre novas;
Oh mais feliz amor! oh mais feliz, feliz amor!
Ardendo para sempre e sempre a ser fruído,
Arfando para sempre e para sempre jovem!
Amor acima das paixões dos homens que respiram,
Essa que deixou o coração desconsolado e farto,
A testa em fogo e ressequida a língua.

____________________IV

Quem serão estes que estão vindo para o sacrifício?
Para que verde altar conduzes, misterioso sacerdote,
Esta novilha que levanta para os céus o seu mugido,
Tendo os sedosos flancos revestidos por guirlandas?
Que pequenina urbe junto a rio ou mar
Ou construída em montanha, com tranquila cidadela,
Por esta gente é abandonada, esta manhã piedosa?
Cidadezinha, para sempre tuas ruas ficarão silentes,
Nem alma alguma voltará jamais para dizer
Por que razão estás desabitada.

____________________V

Ó forma ática! Atitude bela! com um entrelace
De virgens e varões de mármore a cercar-te,
Com ramos de floresta e com pisadas ervas,
Tu, forma silenciosa! como a eternidade
Além do pensamento nos perturbas: fria pastoral!
Quando a velhice destruir a geração de agora,
Tu permanecerás, no meio de outras dores,
Não das nossas, amiga do homem, a quem dizes:
“A beleza é a verdade, a verdade a beleza” – é tudo
O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber.


(Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Guido Reni (1575-1642)

The Rape of Dejanira.

Poema obsceno

Ferreira Gullar


Façam a festa
______cantem dancem
que eu faço o poema duro
_______________o poema-murro
_______________sujo
_______________como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
_____________Bethânia Martinho
_____________Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
_______________________todos
_______________________façam
_________a festa
enquanto eu soco este pilão
____________este surdo
______________poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
________Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
________o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
__________– e espreitam.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Anselm Feuerbach (1829-1880)

Nerina.

Ela

Cláudio Fonseca


Essa que o recebe à porta, que acolhe
à luz do candeeiro, as mãos silenciosas
(desse homem que eu não sou). A que aceita
o beijo, o peixe fresco, algumas rosas...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Hendrick Goltzius (1558-1617)

Minerva.

exercício nº 3

Zemaria Pinto


É madrugada. O ritual dos parvos
faz-se preciso e lento. Peregrino,
meu corpo vertical é um fantoche
cambaleando em cordas invisíveis.

Já não sei quem sou. Naves de papel
num circunscrito céu circunvoluem
entre as amarras de concreto gris
e bandos vira-latas de mendigos.

De repente, uma pomba rasga o ar
num pardacento feixe de luz. Não,
nenhum olho fixou aquele instante,
preciso instante feito de lampejos.

De mim desperto, silencio o grito
que se formara exausto no meu peito:

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Giovanni Bellini (1430-1816)

The Feast of the Gods.

Abril

Regina Melo


O canto está iluminado
pelo cometa que partiu
levando os restos da fala
para o outro lado do rio.

Ficou somente o silêncio
na aura de nossas bocas
distribuindo no tempo
espasmos de ondas loucas.

Como se o tempo das veias
fossem pedaços de céu
e a amplidão do poema
o véu

Abriu na forma do corpo
como quem abre o perdão
todo impuro, casto e torto
nação.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Warren Criswell

Golden apples.

Estante do tempo

A festa do caium
Theodoro Rodrigues (1873-1913)


No espaço o maracá selvagem chocalhando,
No terreiro da taba em círculo formada,
A cabilda feroz, em festa vai cantando
Os feitos geniais da prole antepassada.

A um canto, triste e só, aquela cena olhando,
Co’a forte “mussurana” ao poste acorrentada,
A vítima infeliz sente que vai chegando
O momento fatal de ser sacrificada.

E no auge do festim avança – hora suprema!
Enraivecido, o algoz, vibrando a tangapema,
Tomba a vítima... o sangue, em jorros, espadana.

E naquele furor os membros espedaçam...
Deitando-os no “bucan” as velhas esfumaçam
E a rir vão banquetear-se em rubra carne humana.

domingo, 20 de setembro de 2009

Angelo da Siena (?-1456)

Small Female Portrait.

Minha pátria é minha língua

Violetas
Cândido José de Araújo Viana (Marquês de Sapucaí) (1793-1875)


Da planta que mais prezavas,
Que era, filha, os teus amores
Venho de pranto orvalhadas
Trazer-te as primeiras flores.

Em vez de afagar-te o seio,
De enfeitar-te as lindas tranças,
Perfumarão esta lousa
Do jazigo em que descansas.

Já lhes falta aquele viço,
Que o teu desvelo lhes dava...
Gelou-se a mão protetora
Que tão fagueira as regava.

Desgraçadas violetas,
A fim prematuro correm...
Pobres flores! também sentem!
Também de saudade morrem!

sábado, 19 de setembro de 2009

Noel-Nicolas Coypel (1690-1734)

The Rape of Europa.

Poesia em tradução

O pescador bêbado
Robert Lowell (1917-1977)


A chafurdar neste maldito antro
Eu lanço o anzol ao peixe que me atrai
(Em verdade, do arco de jeová não pendem
Potes de ouro a vergarem-lhe as pontas);
Sangrentas as bocas, só as irisadas trutas
Mordem-me a isca. E na bolsa de lona
Em torno, outras saltavam, até que a traça
Corroeu-lhe o tecido, desgastável.

Para saber o dia, um calendário;
Um lenço, para afastar os mosquitos;
Com a tempestade, sem estofo o catre
E eu com uma garrafa sob o braço;
A garrafa de uísque cheia de iscas;
E calças de pijama: serão termos
Próprios a avaliar do verme a líquida
Raiva no ventre a fervilhar da idade?

Pescar, outrora, era questão de sorte –
Ó vento! Sopra frio, sopra quente.
Os sóis deixa ficar ou pular fora:
A vida dançava a jiga no jorro –
Do cachalote, e fluente e obscena a pesca
Do pescador lavava a consciência.
Crianças! Baba a memória, enfurecida,
Sobre a glória dos charcos do passado.

Tépido agora o rio, vaza e empoça
Suas águas cruentas em enseadas;
Dentro de meu sapato, um grão de areia
Imita a lua anta a desfazer
O Homem, e até a criação; o pútrido
Remorso empestou já a sua fonte;
Assemos de baleia a raiva trilha.
E este da velhice o caldeirão.

Não há algum modo de lançar o arpão
Fora deste dinamitado córrego?
Do pescador os filhos, quando rasas
As águas somem, têm de esquadrinhar.
Com isca untada, apanharei o Cristo
E enquanto o Príncipe da Treva espreita
Meu sangue até o seu estígio termo...
Anda sobre a água o Homem-Pescador.

(Trad. Octavio Mora)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Ernest Liphart (1847-1934)

The string of pearls.

As mãos

Manuel Alegre


Com mãos se faz a paz, se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são de paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Gustave Moreau (1826-1898)

Poète mort porté par un centaure.

Soneto de espera ou o 1º da morte

Alencar e Silva


De espera e espera sofro-te em meu canto,
em meu verso e nas coisas que te anseiam.
E mais sofrera se te não sonhara
nem crera em tua vinda, anjo noturno
que virás sobre o mar – pássaro, estrela
ou rosa a se elevar na noite pura –
sem outro anúncio a preceder-te, além
do teu hálito fresco sobre o vale
e esta certeza para além do sonho
de que teus olhos de mistério e flamas
descerão de repente em minha espera
e me destruirás para salvar-me:
que os noturnos jardins florescerão
e nos ventos da noite fugiremos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Vincent Van Gogh (1853-1890)

Self-Portrait with Bandaged Ear.
(Leia comentário no Palavra do Fingidor)
o fingidor – opus zero (agitato)*
Zemaria Pinto


fingere. a dor esculpida em riso ou siso: el dolor de ya no ser. essências & medulas. medo. de não sentir o que se sente quando se pensa que. eu, não, eu. autofagia. devora-me ou. eu não sabia, eu só queria te conhecer. mas, o que pode, o que pensa, o que quer? tudo – e mais alguma coisa: absoluto. eu, resoluto, explodo em estilhaços de. eu profundo, quantos eus? quando, eu? nonada, bosticatoa – quer saber? poder & desprezo: domínio/abandono. língua & linguagem, loucas papilas unem bocas & axilas. pó, água, barro: homem. vem comigo, forma inexata, tapete púrpura, jambo, deitar. derrame o sol seus cristais. nos meus umbrais canta um bem-te-vi vadio, a repetir, a repetir, ah! tua cara de lua reflete a luz do lampião. fachear. manhã nascida do verso feito carne – gozo & fogo. ravina perpassa vento, ventania. demência. mente alada, fingimento, alegria, dor, rebeldia. ainda & sempre. criar: mesmo à revelia. do sono, do saldo, da sarna. cita da citação: é sempre o homem, mesmo que seja o boi. berro. arrancam-me os olhos, mas posso ver-te. paisagem queima-me a pele. eu retorcido, cauim. beleza inútil, poesia? palavra, lavra lavada – anoiteço, desamanheço de mim. obscuro. canto & muro. tristezas não pagam patos. desmantelo o improviso assobiando tercetos. cateretê. desarme-se/desatrele-se. sorris, mas eu te quero ainda. ao sol, todos os gatos são fardos. magia. na linha do soco, se agache. rito. beijo na boca, hortelã & caju. diz que me ama, mas não fala. guarda aladas palavras como palomas nas torres da catedral. rubi na boca. troféu. batalha vencida. tempo: litania. jogo: um lance de dedos. liame de corpos jogados ao léu. revelação, forma & substância: encontro. imagem, música. logos.
.
.
*365 dias no ar. Este poema foi publicado na capa de o fingidor, número zero, em maio de 1993. Quem viveu viu.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Herbert James Draper (1863-1920)

Lament for Icarus.

É mentira o que dizem estes senhores...

Bosco Ladislau


É mentira o que dizem estes senhores todos – estes
que afirmam identificarem-se com a geração subjugada,
mas que nunca trazem as mãos fedendo a cigarro barato
e nem recebem salário mínimo.

São, apenas, arautos
das Nações e de Sociedades
(corruptas e criminosas como as noites do Terceiro Mundo).
Disto sabem os deuses e os governantes
que nos conduzem à desgraça
quando simulamos a dissolução de seus sacramentos.
Disto sabem os deuses e os governantes
que nos limitam a uma existência louca.
É uma existência súbita e cruel;
como o preço do pão,
como a falta do feijão,
como os 99 cruzeiros mensais
das professoras do Nordeste
no Hemisfério Ocidental,
como os 60% de desempregados
de algum lugar dispensados
em 1976,
como os crimes
que cortam as tardes no Hyde Park
ou na Praça da República!

Estes são os homens de ternos cinzas;
meros executivos que lêem García Lorca,
ou fazem grandes projetos para o amanhã.
No fim do dia
discutem entre si e dizem:

“Como são estranhos os homossexuais e as prostitutas que se beijam
e se consolam na desgraça... Complexos são os camponeses que trabalham
fazendo canções... Ordinários são os poetas, que falam de amor e do
Oceano Pacífico apenas para revelarem o choro dos oprimidos...”

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Thomas Oliver

Birth of Venus.

Estante do tempo

Na praia da Ponta Negra
Alcides Werk (1934-2003)


Às vezes tenho vontade
de andar de jeans, ser moderno,
fazer versos esquisitos,
gerar palavras estranhas,
somar asfalto com lua,
misturar brigas de rua
com rosa, com cal e mar.
Mas, quando te sonho nua
na praia da Ponta Negra,
com gestos de pré-amar,
todo o meu ser se acomoda,
e eu volto a me ver menino
que sonhara ser poeta
em noites de romantismo,
e, conquistado, me esqueço
das conquistas que faria:
minha alma mansa flutua
nas águas pretas do rio
e esvoaça sobre a tua
como um pássaro no cio.

domingo, 13 de setembro de 2009

Henry Holiday (1839-1904)

Music.

Minha pátria é minha língua

Ternura
Vinicius de Moraes (1913-1980)


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos.
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

sábado, 12 de setembro de 2009

Palma Vecchio (1480-1528)

Venus and Cupid in a landscape.

Poesia em tradução

Prece
Antonin Artaud (1896-1948)



Ah dá-nos crânios de brasa crânios
Pelas faíscas do céu queimados
Lúcidos crânios, crânios reais
Por tua presença traspassados

Que renasçamos nos céus internos
Crivados de abismos efervescentes
E que vertigens nos atravessem
Com suas unhas incandescentes

Vem saciar-nos que temos fome
De comoções intersiderais
Em nossas veias em vez de sangue
Despeja agora lavas astrais

Vem desprender-nos, vem dividir-nos
Com tuas mãos, brasas de corte
Para nós abre os tetos ardentes,
Onde se morre pra lá da morte

No mais profundo de sua ciência
Confunde, abala nossa razão
Arrebatando-lhe a inteligência
Nas garras novas de um furacão

(Trad. Mário Faustino)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Il Sodoma (1477-1549)

Allegory of Celestial Love.

Exercício

Nei Leandro de Castro

Posto que o amor é fruto, e não semente,
resta colhê-lo.
Alcança com a mão a fruta fálica,
toma-a entre os dedos tão de leve
que a faça vibrar, já sazonada
pelo calor que emanarás.
A penugem do pêssego (inventemos)
deve cair sobre os teus lábios e a boca
de avidez serena,
até que o fruto, feito pássaro,
tombe trespassado de chumbo.
Posto que o amor é amor,
cumpre sugar a flor, o pólen, o sal,
a cor da fruta vulvar disseminada,
seminada.
A linguagem do amor é infecunda
como um poema,
apenas lança o seu destino, tece
o fio bem finito do orgasmo:
órgão, asma.
Posto que o amor é tudo e nada
tese e síntese
linguagem que falo,
resta aviá-lo: imagem/fruto/falinguagem.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Giovanni Baglione (1566-1643)

Hercules at the Crossroads.

Não tendo chegado as flores

Rogel Samuel


Não tendo chegado as flores
de primavera, gozo o prazer
de dar-te a prévia rosa
queiramos ou não que desabroche
na mão da tua lâmina terna
e sem dizer o que devemos
ponho os olhos nos limites da estrada.
Quem assim te afague, ó meu amor
que ainda te amo como agora
folha da tua árvore querendo
ver-te como estrela
o mais de sobretodas as senhoras
olham de perto o incerto par.
Sejamos lógicos com estas grinaldas
de primavera que inventei sem peso
me apaixonei sem me aproximar.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ludwig Von Hofmann (1861-1945)

Notturno.

O dia seguinte

Zemaria Pinto


Manhã de chumbo em meus olhos,
o cheiro de enxofre espalha
a morte pelos caminhos;
a cidade é um só monturo
sem qualquer sinal de vida;
não há ratos, não há moscas,
nem baratas testemunham
a ruína das ruínas.

De súbito, um cão disforme,
de negro sangue coalhado,
assoma entre os automóveis
carbonizados; as fauces,
uma chaga aberta; arrasta
os membros traseiros sobre
o metal – horror mudado
em música surreal.

Sem um rumo definido,
me afundo na névoa cinza;
tudo o que almejo é a distância
do mal que toma a cidade.
Mutilados os sentidos,
sou um simulacro humano,
me esgueirando entre os destroços
como um lobo encurralado.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Gustave Caillebotte (1848-1894)

La Place de l'Europe, temps de pluie.

Engenharia do tempo – XXVII

Efraim Amazonas


Vejo o álbum de retratos,
o mapa da minha infância.
Bonecos, carrinhos, folguedos
sobre o barquinho ligeiro
sem cais.

Brincam os irmãos na saleta,
tocam cornetas no vento.
Vaivém, petecas, estrelinhas.
Ilusões, dançai.

Imagens todas correndo
crianças apitos quintais.
Doce abandono da infância
neste álbum de sonho.
Nunca mais!

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Cornelis de Vos (1584-1651)

The birth of Venus.

Estante do tempo

O Descrente
Torquato Tapajós (1853-1897)


Que mais queres? De ti aborrecido
Procuro a solidão.
Lá mesmo vais levar a meus ouvidos
O rir da multidão!

Eu desprezo-te, mundo, e tu me buscas!
Mil vezes maldição!
Já não creio em teus risos mentirosos
Roubaste-me a ilusão.

Vai-te, vai-te me deixa – sinto o gelo
Crestar-me o coração.
Foste tu quem mo deste, pois outrora
Ardia qual vulcão.

Nem futuro mais tenho, o atiraste
Em triste escuridão.
Meteoro brilhante que surgindo
Perdeu-se n’amplidão.

Vai-te mundo enganoso – sou descrente
Oh! me sorriste em vão.
Não quero teu sorriso que é mentido
É rir de perdição.

Fui cego em te seguir – compreendeu-te
Bem tarde o coração.
Mas forças inda tenho para dar-te
Desprezo e maldição.

domingo, 6 de setembro de 2009

Alexander Roslin (1718-1793)

The Lady with a Fan (The Artist's Wife).

Minha pátria é minha língua

Última jornada
Machado de Assis (1839-1908)


I

E ela se foi nesse clarão primeiro,
Aquela esposa mísera e ditosa;
E ele se foi o pérfido guerreiro.

Ela serena ia subindo e airosa,
Ele à força de incógnitos pesares
Dobra a cerviz rebelde e lutuosa.

Iam assim, iam cortando os ares,
Deixando em baixo as fértiles campinas,
E as florestas, e os rios e os palmares.

Oh! cândidas lembranças infantinas!
Oh! vida alegre da primeira taba!
Que aurora vos tomou, aves divinas?

Como um tronco do mato que desaba,
Tudo caiu; lei bárbara e funesta:
O mesmo instante cria e o mesmo acaba.

De esperanças tamanhas o que resta?
Uma história, uma lágrima chorada
Sobre as últimas ramas da floresta.

A flor do ipê a viu brotar magoada,
E talvez a guardou no seio amigo,
Como lembrança da estação passada.

Agora os dois, deixando o bosque antigo,
E as campinas, e os rios e os palmares,
Para subir ao derradeiro abrigo,

Iam cortando lentamente os ares.


II

E ele clamava à moça que ascendia:
“Oh! tu que a doce luz eterna levas,
E vais viver na região do dia,

Vê como rasgam bárbaras e sevas
As tristezas mortais ao que se afunda
Quase na fria região das trevas!

Olha esse sol que a criação inunda!
Oh! quanta luz, oh! quanta doce vida
Deixar-me vai na escuridão profunda!

Tu ao menos perdoa-me, querida!
Suave esposa, que eu ganhei roubando,
Perdida agora para mim, perdida!

Ao maldito na morte, ao miserando,
Que mais lhe resta em sua noite impura?
Sequer alívio ao coração nefando.

Nos olhos trago a tua morte escura.
Foi meu ódio cruel que há decepado,
Ainda em flor, a tua formosura.

Mensageiro de paz, era enviado
Um dia à taba de teus pais, um dia
Que melhor fora se não fora nado.

Ali te vi; ali, entre a alegria
De teus fortes guerreiros e donzelas,
Teu doce rosto para mim sorria.

A mais bela eras tu entre as mais belas,
Como no céu a criadora lua
Vence na luz as vívidas estrelas.

Gentil nasceste por desgraça tua;
Eu covarde nasci; tu me seguiste;
E ardeu a guerra desabrida e crua.

Um dia o rosto carregado e triste
À taba de teus pais volveste, o rosto
Com que alegre e feliz dali fugiste.

Tinha expirado o passageiro gosto,
Ou o sangue dos teus, correndo a fio,
Em teu seio outro afeto havia posto.

Mas, ou fosse remorso, ou já fastio,
Ias-te agora leve e descuidada,
Como folha que o vento entrega ao rio.

Oh! corça minha fugitiva e amada!
Anhangá te guiou por mau caminho,
E a morte pôs na minha mão fechada.

Feriu-me da vingança agudo espinho;
E fiz-te padecer tão cruas penas,
Que inda me dói o coração mesquinho.

Ao contemplar aquelas tristes cenas,
As aves, de piedosas e sentidas,
Chorando foram sacudindo as penas.

Não viu o cedro ali correr perdidas
Lágrimas de materno amado seio;
Viu somente morrer a flor das vidas.

O que mais houve da floresta em meio
O sinistro espetáculo, decerto
Nenhum estranho contemplá-lo veio.

Mas, se alguém penetrasse no deserto
Vira cair pesadamente a massa
Do corpo do guerreiro; e o crânio aberto,

Como se fora derramada taça,
Pela terra jazer, ali chamando
O feio grasno do urubu que passa.

Em vão a arma do golpe irão buscando,
Nenhuma houve; nem guerreiro ousado
A tua morte ali foi castigando.

Talvez, talvez Tupã, desconsolado,
A pena contemplou maior do que era
O delito; e de cólera tomado,

Ao mais alto dos Andes estendera
O forte braço, e da árvore mais forte
A seta e o arco vingador colhera;

As pontas lhe dobrou, da mesma sorte
Que o junco dobra, sussurrando o vento,
E de um só tiro lhe enviou a morte.”

Ia assim suspirando este lamento,
Quando subitamente a voz lhe cala,
Como se a dor lhe sufocara o alento.

No ar se perdera a lastimosa fala,
E o infeliz, condenado à noite escura,
Os dentes range e treme de encontrá-la.

Leva os olhos na viva aurora pura
Em que vê penetrar, já longe, aquela
Doce, mimosa, virginal figura.

Assim no campo a tímida gazela
Foge e se perde; assim no azul dos mares
Some-se e morre fugidia vela.

E nada mais se viu flutuar nos ares;
Que ele, bebendo as lágrimas que chora,
Na noite entrou dos imortais pesares,

E ela de todo mergulhou na aurora.

sábado, 5 de setembro de 2009

Wojciech Korneli Stattler (1800-1875)

Étude de nu.

Poesia em tradução

Diário de sete dias
Alan Dugan (1923-2003)


Ah, eu me levantei e fui para o trabalho
e trabalhei e voltei para casa
e comi e conversei e fui dormir.
Então me levantei e fui para o trabalho
e trabalhei e voltei para casa
do trabalho e comi e dormi.
Então me levantei e fui para o trabalho
e trabalhei e voltei para casa
e comi e vi televisão e dormi.
Então me levantei e fui para o trabalho
e trabalhei e voltei para casa
e comi bife e dormi.
Então me levantei e fui para o trabalho
e trabalhei e voltei para casa
e comi e trepei e dormi.
E então era sábado, sábado, sábado!
O amor deve dar sentido à semana.
Fomos às compras! Vi nuvens!
As crianças explicavam tudo!
Eu podia falar do principal!
Que bebi no sábado à noite
que me fez perder a primeira, a melhor metade do domingo?
A segunda metade não foi digna desse nome.
Então me levantei e fui para o trabalho
e trabalhei e voltei para casa
do trabalho e comi e dormi
renovado, porém cansado do fim-de-semana.

(Trad. Jorge Wanderley)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Eustache Le Sueur (1616-1655)

Abduction of Ganymede.

Antidelação

Vasco Cabral (1926-2005)


A noite veio,
disfarçada em dia
e ofereceu-me a luz,
diáfana como a aurora.

Mas eu disse que não.

Depois veio a serpente
disfarçada em virgem
e ofereceu-me os seios e os braços nus.

Mas eu disse que não.

Por fim veio Pilatos,
disfarçado em Cristo,
e numa voz humana e doce
disse: “se quiseres eu dou-te o paraíso
mas conta a tua história...”

Mas eu disse que não,
que não, não, não!

E continuei um Homem!
E eles continuaram
os abutres do medo e do silêncio.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Hans von Aachen (1552-1615)

The three graces.

Meninas

(fragmento)
Marcileudo Barros


A menina pediu;
a mãe resistiu.
A menina insistiu;
a mãe permitiu.
A menina saiu
com promessas mil
de não chegar tarde demais.

A mãe ficou sozinha, mas
uma ponta de inveja da
menina dela e a saudade
dela menina foram atrás.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Guido Reni (1575-1642)

Drinking Bacchus.

Dabacuri - amazônica 5

Zemaria Pinto


trabalho de séculos –
o estreito mais se alarga
com a força das águas



suave contraponto
ao tom monótono do barco
– o som dos pássaros

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Elisabeth Vigée-Lebrun (1755-1842)

Bacchante.

Epifania poética

Nelson Castro
Para Tenório Telles

Estilhaçado sobre o nada, o vitral
reflexo d’um mito derrotado.
No espelho outra face espectral
reflete como metáfora.

A pedra gênese do mal
reflete o bem ausente
o sentimento antípoda à virtude
reflete a forma estranha
a violência simbólica, a vil atitude.

O equilíbrio distante...
nos aproxima do abissal
ou nos torna estátua de sal
preciosos instantes perdidos
a cada virada da ampulheta.

O livro apócrifo, a liberdade
do império dos sentidos
tem nos feitos neo-escravos
de nossos próprios instintos.

Assim o sentido da vida
é um libelo de um tempo sem utopia
de um lugar sem jardim sem poesia
reflexo inverso de ser feliz.
Porém...
nem tudo está perdido
o poeta ratifica
no poema em matéria densa
a presença do amor para sempre escrita.