Amigos do Fingidor

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

René Magritte (1898-1967)

La Magie Noire.

Medida

Teresa Tenório


a medida do amor é ser deserto
e retomar a ausência inicial
de parte da memória devorada
do inconsciente profundo
axial
porque o real do amor é fragmentar-se
no decorrer do ciclo indefinido
em espirais do tempo diluído
à lembrança inconsútil
desvelar-se

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

José Ferraz de Almeida Júnior (1850 - 1899)


A pintura.

O Canto

Maria José Hosanah

Acordou ferida
como o pássaro que rasgou as próprias asas
e olhava o céu, chorando o grito.
O grito que só era ouvido
pela estranheza do ar, da água.
Do ar, da água, que nunca falavam
ao pássaro,
ao pássaro das asas feridas
que acordava
em dor.

Acordou ferida
como o pássaro que sangrava as duas asas
e que veria a dor e a morte, menos sofridas
se ouvisse um grito, um mesmo som.

E ao pássaro ferido, a quem restava
preencher o espaço com seu próprio grito,
na esperança de sentir o mundo
igual à sua dor,
ficou um som,
o canto.
O mais belo canto
de recriação.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Amedeo Modigliani (1884-1920)

Nu reclinado.

canção da moça da praça

Zemaria Pinto

leve feito uma asa-delta
a moça atravessa a praça
na tarde lavada em gris

a moça não anda, plana
vestida de azul-turquesa
nas asas dum bem-te-vi

(a chuva não molha a moça
que flutua sobre a praça
espargindo girassóis)

sons e cores arquitetam
um carnaval inquieto
ao tênue passar da moça

súbito, a escuridão
invade a praça de chumbo:
evola-se a moça em nuvens

(a moça deixa no ar
uma estranha melodia
de perfumados silêncios)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

George Owen Wynne Apperley (1884-1960)

 Ritmo andaluz.

Poética

Sergio Luiz Pereira




Seja a palavra símbolo de encanto
De toda sensação vertida em verso
E tudo que se inspire no universo
Faça-se em notas de agradável canto.

Também da retirada de tal manto
Que de alegria cobre o mundo inverso
Para mostrar que, mesmo em tempo adverso
Cabe a justiça o bom caráter quanto.

Que as cordas desta lira em liberdade
Possam transpor o vário sentimento:
Essa paixão que a todo peito invade.

E estável fundo e forma equilibrista
Tocar com o coração, pois, no momento
O artista é de seu tempo jornalista.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Venus Anadyomene.
Afresco de Pompéia. Século I a.C.

Estante do tempo

Soneto
Tenreiro Aranha (1769-1811)

A um passarinho, quando o Autor sofria vexações

Passarinho, que logras docemente
Os prazeres da amável inocência,
Livre de que a culpada consciência
Te aflija como aflige ao delinqüente.

Fácil sustento, e sempre mui decente
Vestido te fornece a Providência;
Sem futuros prever, tua existência
É feliz, limitando-se ao presente.

Não assim, ai de mim! porque sofrendo
A fome, a sede, o frio, a enfermidade,
Sinto também do crime o peso horrendo.

Dos homens me rodea a iniqüidade,
A calúnia me oprime; e, ao fim tremendo,
Me assusta uma espantosa eternidade.

domingo, 26 de outubro de 2008

Agnolo Bronzino (1503-1572)

Alegoria com Vênus e Cupido.

Minha pátria é minha língua

O lutador
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.

Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue...
Entretanto, luto.

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.

Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
outra sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.

O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.

sábado, 25 de outubro de 2008

Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828)

O Colosso.

Poesia em tradução

Canção da torre mais alta
Arthur Rimbaud (1854-1891)

Mocidade presa
A tudo oprimida
Por delicadeza
Eu perdi a vida.
Ah! que o tempo venha
Em que a alma se empenha.

Eu me disse: cessa,
Que ninguém te veja,
E sem a promessa
De algum bem que seja.
A ti só aspiro
Augusto retiro.

Tamanha paciência
Não me hei de esquecer.
Temor e dolência
Aos céus fiz erguer.
E esta sede estranha
A ofuscar-me a entranha.

Qual o Prado imenso
Condenado a olvido,
Que cresce florido
De joio e de incenso
Ao feroz zunzum das
Moscas imundas.

Ah! viuvez selvagem
Desta alma que chora
Tendo só a imagem
De Nossa Senhora!
Mas quem rezaria
À Virgem Maria?

Mocidade presa
A tudo oprimida,
Por delicadeza
Eu perdi a vida.
Ah! que o tempo venha
Em que a alma se empenha!

(Trad. Ivo Barroso)

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Leonardo da Vinci (1452-1519)

Dama com um arminho.

Tempo sem nome

Donaldo Mello

“Escondeste estas coisas aos sábios e aos
prudentes e as revelaste aos pequeninos...
porque assim foi de Teu agrado”
Lucas 10:21

: começo de todas as
coisas, antes de tudo
o que veio mais tarde,

o começo dos céus e
da terra, o calor e o dia
e o vento, e a mãe a

embalar na rede, com
o aroma de Mãe, era
esse o primeiro lugar?

o lugar do perdão,
da esperança, da luz
e do amor infinito.

depois do útero,
a “desconhecida”
caminhada ao devir...

um passarinho resplende
como fagulha, acendendo
a chama do espanto:

sustenta no vôo
preso nas patinhas,
verdadeiras pinças
[do cirurgião hábil,

um filhote de lagarto,
inerme. pousa no poste
mais alto. assustado,

trincha, tece mais
um elo no ciclo da
vida: uns morrem

outros vivem.
elo da corrente
das existências.

e sobreviverá, O
pássaro, compondo
uma reinvenção

cósmica do universo
vastamente superior
ao do ser mínimo

o serzinho embalado no
colo imenso, evanescendo
num misterioso aroma (amor)
diáfano, amor aroma...

começo, tempo sem nome!!!
p e r f u m e
a virtude invisível da flor

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Vincent Van Gogh (1853-1890)

A carroça azul.

Kaleidoscópio - I

Anisio Mello

Balé de felino
entre as flores do verde:
traição à vista.

Foi buscar o sol
e com suas asas de cera
o sonho acabou.

No vaso quebrado
os retalhos de uma vida:
lembranças da China.

Num dia quentíssimo
com um balde d’água na mão
apaguei o sol.

Caindo do céu
como se fosse cristal
molha o chão: a chuva.

Olho o céu escuro
uma estrela abandonada
faz o meu luar.

Relógio-de-sol
com medo da tempestade
atrasou o dia.

Brotando do asfalto
o trilho do bonde é visto:
praça da Saudade.

Saudade e lembrança
duas emoções que se unem
na velha cidade.

Madeira no campo.
Polpa, papel e palavra:
o livro está pronto.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Lorenzo Lippi (1606-1665)

Allégorie de la simulation.

Exercício nº 21

Zemaria Pinto

soneto meu, faustino de armação
tramado e arquitetado em vário

desarma-se
em vis desvios vãos
limítrofes
à tinta e ao papel

(meu canto fraturado
é um crânio
morto
oco osso
síntese de nada
ou
cousa alguma:
crianças & urubus
canteiros de noturnos
girassóis)

soneto meu de têmpera diversa
forjado em noites
sob lamparinas
silvos de partidas
salvas perdidas

a ti revelo-te
tua natureza
a ti entrego-te
meu braço destro
meu sexo
meus olhos
e meus delírios

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Sandro Botticelli (1445-1510)

Primavera.

Canção da esperança

Tenório Telles
(Para Michele)

Neste tempo desolado
de sonhos subtraídos
e utopias amortalhadas
– ergo este canto para celebrar
a esperança entressonhada.

Neste tempo de partos sem flores
de silêncio e de almas violadas
– ergo este canto para celebrar
a semente que arde em luz.

Neste tempo de vidas fraturadas
de olhos imantados e corações ressecados
– ergo este canto para celebrar
a inocência e o brilho da infância.

Neste tempo de morte e de sombras
de guerras e de campos devastados
– ergo este canto para celebrar
a vida e os que tombam pela liberdade.

Contra toda desesperança
contra toda cegueira e emudecimento
contra toda indiferença

– Ergo este canto para celebrar
a manhã, os rios
as florestas e seus enigmas
– Ergo este canto para celebrar
os pássaros – suas cores e cantos
as flores. o ser humano e a utopia
e também os olhos da amada.

É para vós
este canto de esperança
– que mesmo sendo pranto – ­
se eleva como música luminosa.

É para vós
este canto de exaltação
– que floresça em vossos olhos
– que se faça verdade em vossas bocas
e nasça como verdade em nossas vidas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

John William Waterhouse (1849-1917)

Hylas and the Nymphs.

Estante do tempo

Minha lenda
Violeta Branca (1915-2000)


À sombra de um igapó escuro e parado,
branca como as areias e as espumas,
e mais triste que um gesto de adeus,
com a forma de uma vitória-régia imensa,
desmaiada de indiferença,
eu florescia...

Tupã, uma noite,
olhou-me com os olhos de luar
e se enamorou de mim.
E, numa fala que lembrava a suavidade
do riso das águas
correndo sobre pedras, disse:

“És triste e bela. E por isso
terás a glória suprema,
que é maior que o triunfal poema
que canta o uirapuru em voz tão clara.
Toma a pedra muiraquitã,
desce ao fundo dos rios:
vais ser Iara”.

Depois...
Numa hora de encantamento e beleza,
com os cabelos enfeitados de aguapés
e no corpo o fascínio dos mistérios,
prendi a alma ingênua de um marujo incauto.
E o deus lendário da Amazônia,
sentindo o amor palpitar no meu canto,
voltou a me falar.
Nesse dia os seus olhos
tinham lampejos de sol
e a voz o ressoar da pororoca:

“Não mereces mais a glória de ser Iara.
Não ficarás aqui nem um dia sequer.
Vais receber o teu castigo...”

...E transformou-me em mulher.

domingo, 19 de outubro de 2008

Piero di Cosimo (1462-1521)

Portrait of Simonetta Vespucci.

Minha pátria é minha língua

Soneto de devoção
Vinicius de Moraes (1913-1980)


Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela

Essa mulher é um mundo! - uma cadela
Talvez... - mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!

sábado, 18 de outubro de 2008

Henri Fantin-Latour (1836-1904)

Un coin de table.
À esquerda, sentados, Verlaine e Rimbaud.

Poesia em tradução

Arte Poética
Paul Verlaine (1844-1896)

Antes de tudo, a Música. Preza
Portanto o Ímpar. Só cabe usar
O que é mais vago e solúvel no ar,
Sem nada em si que pousa ou que pesa.

Pesar palavras será preciso,
Mas com algum desdém pela pinça:
Nada melhor do que a canção cinza
Onde o Indeciso se une ao Preciso.

Uns belos olhos atrás do véu,
O lusco-fusco no meio-dia,
A turba azul de estrela que estria
O outono agônico pelo céu!

Pois a Nuance é que leva a palma,
Nada de Cor, somente a nuance!
Nuance, só, que nos afiance
O sonho ao sonho e a flauta na alma!

Foge do Chiste, a Farpa mesquinha,
Frase de espírito, Riso alvar,
Que o olho do Azul faz lacrimejar,
Alho plebeu de baixa cozinha!

A eloqüência? Torce-lhe o pescoço!
E convém empregar de uma vez
A rima com certa sensatez
Ou vamos todos parar no fosso!

Quem nos dirá dos males da rima!
Que surdo absurdo ou que negro louco
Forjou em jóia este toco oco
Que soa falso e vil sob a lima?

Música ainda, e eternamente!
Que teu verso seja o vôo alto
Que se desprende da alma no salto
Para outros céus e para outra mente.

Que teu verso seja a aventura
Esparsa ao árdego ar da manhã
Que enchem de aroma o timo e a hortelã...
E todo o resto é literatura.

(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Michelangelo da Caravaggio (1571-1610)

Fanciullo con canestro di frutta.

Os anjos de Sodoma

Roberto Piva

Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder o ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando a
loucura e o arrependimento de Deus

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pieter Brueghel, o Velho (1520/30-1569)

A torre de Babel.

O sermão da selva (I)

Max Carphentier

Bem-aventurados aqueles que lastimam e os que combatem
o estender-se mortal do Atacama vizinho,
com seus dentes carpindo a cordilheira a oeste
e suas patas de chuvas evadidas
ciscando fogo, foices da invasora
branca fúria de sal no chão do Chile.
Porque esses, temendo o deserto, amarão a selva,
serão chamados a celebrar continuamente o verde,
e repousarão seus fardos sob sombras diversas,
e muitos frutos socorrerão a sua sede,
e seu espírito se comprazirá na abundância da terra.

Respeitarão o verde, o verde-vida, verde-salvação;
verde-acapu, verde-angelim, verde-itaúba,
verde-madeira dos quintais da infância,
verde-pau-rosa, rosa trespassada,
de fragrância reclusa em tambores de ferro;
verde-muirapinima, verde-cedro, verde-aguano,
verde-cumaru-ferro e verde-acariquara
dos esteios sustendo o lume das choupanas;
verde copaibeira e verde-louro, verde-
andiroba tremida e ucuúba dorida.

Por esses vós sereis respeitadas, árvores mansas,
porque sois companheiras de séculos; como então
rapidamente extinguir-vos nesse genocídio
da seiva lagrimando em caules abatidos?

Mas bem persistireis na calma e duradoura ajuda
com que nos permitis, no incendido hemisfério,
cumprir sob o signo do equador e nesses rios
a angústia aqüífera e o corpo mesopotâmico.
Eis que toda fruição é lícita se o ritmo, sereno,
o renovar das forças considera.
Continuareis então, árvores, unas na selva,
nesta paz cenozóica e sob estrela forte
da terra que se abre como vasta flor cindida
sobre o sonho das águas solidárias.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Peter Paul Rubens (1577-1640)

Venus at the mirror.

Quinteto

Zemaria Pinto

Eu vi a moça atravessando a rua
substantiva e prenhe de sorrisos,
vestida em primavera e acalantos.
– O ventre saliente, uma redoma
onde dormita o som e o sonho sonha.

A moça aproximou-se e me beijou
como se beija um filho antes do sono
e sem dizer palavra as minhas mãos
tomou nas suas e me conduziu
entre detritos, gritos, correria.

Os edifícios se multiplicavam
acima das cabeças apressadas.
O ar escasso, a gente que passava,
não me deixavam perceber que a moça
me abandonava em meio ao burburinho.

Em minhas mãos um girassol vermelho
substitui as mãos que até aqui
me navegaram por entre os escombros
da cidade. De novo solitário
recolho-me à vigília de meus dias.

-*-

Já muitos girassóis tenho guardados
no ventre escuro onde acordado sonho
cativo de pacífica certeza:
a moça barriguda é uma invenção
que o sol depositou em minhas mãos.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Andy Warhol (1928-1987)

Ernesto "Che" Guevara.
Obs: sobre foto de Alberto Korda (1928-2001).

O menino e os poetas

Dori Carvalho

(a Thiago de Mello)

quando menino ganhei não presentes caros
mas cheios de sabedoria, delicados e raros

quatro livros de poesia, pura poesia
meu Deus, que descoberta, que alegria
Carlos Drummond de Andrade
ensinou-me a sentir a alma das cidades
Manuel Bandeira, mil bandeiras,
desde aí, caminhei sem eira nem beira
Pablo, isla negra, Neruda
mostrou-me a ternura e a vida desnuda
Thiago, amazônico Thiago de Mello
cantou-me que o mundo ainda pode ser belo

um livro de muitas batalhas
El Che, Ernesto Guevara
sangrou-me o quanto a vida é cara

e uma pataca de prata de quatrocentos réis
presente de aniversário do meu padrinho

por isso, ando com esse sentimento do mundo
que tanto me faz sofrer e faz sonhar
por isso, o silêncio e a palavra
por isso, essa dureza e essa ternura
por isso, a sede de liberdade e as canções desesperadas
por isso, levo em meu coração um pouco de poesia
por isso, trago em minha boca um copo de pasárgada
que tanto me faz amar e viver
por isso, carrego na lembrança
o fuzil, que, in-felizmente, nunca usei
e a pataca de prata que perdi
e nunca soube multiplicar.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Édouard Manet (1832-1883)

Stéphane Mallarmé.

Estante do tempo

Interlúnio
Maranhão Sobrinho (1879-1915)

Entre nuvens cruéis de púrpura e gerânio,
rubro como, de sangue, um hoplita messênio
o sol, vencido, desce o planalto de urânio
do ocaso, na mudez de uni recolhido essênio...

Veloz como um corcel, voando num mito hircânio,
tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio
da tarde, que me evoca os olhos de Stephanio
Mallarmé, sob a unção da tristeza e do gênio!

O ônix das sombras cresce ao trágico declínio
do dia que, a lembrar piratas do mar Jônio,
põe, no ocaso, clarões vermelhos de assassínio...

Vem a noite e, lembrando os Montes do Infortúnio,
vara o estranho solar da Morte e do Demônio
com as torres medievais as sombras do Interlúnio...

domingo, 12 de outubro de 2008

Tarsila do Amaral (1890-1973)

Operários.

Minha pátria é minha língua

Catar Feijão
João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

(A Alexandre O’Neil)

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

sábado, 11 de outubro de 2008

Herbert James Draper (1863-1920)


Ulysses and the Sirens.

Poesia em tradução

Arte Poética

Jorge Luis Borges (1899-1986)

Mirar o rio, que é de tempo e água,
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que passam os rostos como a água.

E sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar, sentir que a morte,
Que a nossa carne teme, é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.

E ver no dia ou ver no ano um símbolo
Desses dias do homem, de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.

E ver na morte o sonho, e ver no ocaso
Um triste ouro, e assim é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes, pelas tardes, uma face
Nos observa do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nossa própria face.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

(Trad. Rolando Roque da Silva)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Jacques-Louis David (1748-1825)

A morte de Sócrates.

Poema cíclico

Anibal Beça

A trave dos meus olhos
é pólen de crisântemos:
farpas cronológicas.
Metro a metro a seta ideográfica
abre aspas ao vento:
mandala vertical.

Quem me confere
estas asas nubladas
de arcanjo do limbo?

Ah tempo adiposo
a marca do teu risco
esferográfico
abre mais uma estrada
(sem acostamentos)
paralela às estrias do sono.

Eis que a pálpebra de palha
se apresenta:
dos meus olhos saltam
pássaros ariscos
prontos a deflorar begônias
em setembro
e 38 ponteiros
(rubis ciclotímicos do silêncio)
acupunturam poros fóbicos.

Calendas
a fala do espelho
(espectador anônimo)
mostra-me por inteiro:
vital conselho
entre o sudário que
me hospeda
e a angústia que
me habita.

A miração flutua narcisicamente
o rasto da sílaba
e
o grão onomástico sussurra:
Anibal.

Quão particular este silêncio
(viés oculto)
que me sabe desnudo
despudoramente nu
encalhado num atol:
leito circunscrito
às algas do meu avesso.

Sem embargo
trago sempre no alforje
um fardo de estrelas:
sei-me estivador
desse cais agônico:
atarefado Sísifo.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Paul Gauguin (1848-1903)

Deux Tahitiennes.

Uma Didática do Peixe

(fragmentos)
Aldisio Filgueiras

A geografia do peixe
é uma natureza mais ampla
e generosa que a paisagem
suja das feiras e mercados
onde se dá preço até
aos nomes mais sonoros
das espécies que, pelos
ouvidos, nos enchem a boca
de água e sal com fartura.

&&&

O peixe é um animal literário
tanto quanto o homem arrisca
sê-lo. Quanto mais não fosse
pode ser convertido à custa
de uma letra que o rio
fisga e recicla como
(depois de comê-lo inteiro)
o converte em espinha
o gato da história-em-quadrinhos.

O peixe é um sujeito histórico
tanto quanto o homem pretende
etc etc etc

&&&

O que move mesmo o peixe
é o mito: crença e verdade,
enfim, o mesmo princípio:

palavra e realidade.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Johannes Vermeer (1632-1675)

Moça com brinco de pérola.

Exercício nº 5

Zemaria Pinto

Trago nas mãos a lâmina dos anos
que passaram por mim tragando sonhos:
sementes de um passado sem memória,
inúteis fragmentos de silêncio.

As velhas alegrias disfarçadas
tatuam sombras em meu rosto pálido.
Sorrio amargo, o limo transparente
refletido nos dentes amarelos.

Meus olhos baços já não sonham luzes
sob o cantar monótono do vento:
palavras surdas nos meus lábios cegos.

Antúrios se renovam no meu peito
e de meus braços pendem sensitivas.
Nos pés carrego o peso desses sonhos.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Gustav Klimt (1862-1918)

O beijo.

Da chuva

Célio Cruz

O dia carpia cristais de aurora
e tangia sua harpa de prazer.

Tudo parecia vivo e nítido,
tudo cores fortes: o asfalto mais
negro, a folhagem mais verde,
o sorriso do jardim invernado
sobre a tela cinza e prata da chuva.

Nem sinal do seco e quente inferno
solar. Era vida que se derramava pelas
calhas, entrava em veias pelos nichos
das casas e dos postes velhos
e depois corria livre e densa pelas

sarjetas, para amar a lama e o lixo
das ruas. Percussão de turva música
na concha dos bueiros e sopro
de flauta em dó dos esgotos.

Sinfonia de água, terra e mato
para a fuga do vento-arco
arrancar notas das palmeiras
que regiam a orquestra natural.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Paul Delvaux (1897-1994)

Entrada na cidade.

Estante do tempo

Sonetos autobiográficos - 3
Luiz Ruas (1931-2000)

A égua caminhava a passos largos
Por entre a lama espessa, mal cheirosa,
A égua que nasceu de barro e sopro,
Pesada e, ao mesmo tempo, vaporosa.

A égua percorreu todo o passado:
É lenda, é mito, é sombra luminosa;
Galopa semeando vida e morte,
É frágil como a flor e belicosa.

Tem alma muito embora no seu ventre
Aninhe fauna imunda e tenebrosa
De serpes e batráquios peçonhentos.

A égua chega sempre. Chora, às vezes.
Às vezes, come fezes. Eu a vi
Comendo, em céu de estrelas, uma rosa.

domingo, 5 de outubro de 2008

Marc Chagall (1887-1985)

Nude over Vitebsk.

Minha pátria é minha língua

Jandira
Murilo Mendes (1901-1975)

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados,
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés.
Todas as partes do corpo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.

E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
Apareceram ritmos que estavam de reserva,
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E, mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.

sábado, 4 de outubro de 2008

William Blake (1757-1827)

The ancient of days.

Poesia em tradução

O Tigre

William Blake (1757-1827)

Tigre! Tigre! Brilho, brasa
Que à forma noturna abrasa,
Que olho ou mão armaria
Tua feroz simetria?

Em que céu se foi forjar
O fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chama?
Que mão colheu essa flama?

Que força fez retorcer
Em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração,
De aço, que cor, que ação?

Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo? Que fornalha
O moldou? Que mão, que garra
Seu terror mortal amarra?

Quando as lanças das estrelas
Cortaram os céus, ao vê-las,
Quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?

Tigre! Tigre! Brilho, brasa
Que à forma noturna abrasa,
Que olho ou mão armaria
Tua feroz simetria?

(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Eugène Delacroix (1798-1863)

A Liberdade guiando o povo.

A caranguejeira feliz

Thiago de Mello

Estão afáveis os ferrões da aranha
pousada na madeira da manhã.
Caçadora noturna, ela está imóvel,
as pernas cabeludas estendidas.
Chego mais perto: dorme fatigada
sob o possante resplendor do dia.
Cada pêlo é um olho, e em cada olho
um brilho denso de felicidade.

Sobre a parede de maçaranduba,
na luz da antemanhã, antes a vira:
tinha o dorso coberto por um corpo
em tudo igual ao seu, só que mais negro.
Maravilhado vi: eram lentíssimos
os movimentos, sombra sobre sombra,
suavidades. No abraço vertical,
o amante delicado lhe agradava
os flancos com as patas eriçadas.
Deixei os dois na paz feita de fúria
no sonoro silêncio da floresta.

Ferrões afáveis, pernas distendidas,
indiferente à claridão, a aranha
amazônica dorme, e talvez sonhe
com quem feliz a fez antes da aurora.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Paul Cézanne (1839-1906)

Os jogadores de cartas.

Sob Vésper

Alencar e Silva

Antes que o grande vendaval me afaste
do teu corpo de pássaros e rosas,
deixa que eu cante uma canção sonâmbula
sob as luas ciganas de teus olhos.
Antes que o grande vendaval me arraste,
deixa-me ter-te como um lírio aberto
na hora crepuscular da tarde ardente
numa varanda toda de jasmins.
Antes que o grande vendaval quebre a haste
das rosas últimas e só espinhos
cerquem-me a fronte - deixa que me mirem
teus olhos, como sempre me miraste.
E eu canto, amor, uma canção de outono
para inundar de pássaros teu sono.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Frida Kahlo (1907-1954)

Auto-retrato.

Moto-contínuo

Zemaria Pinto

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

Lentamente a História muda,
lentamente muda o Homem,
tão lentamente que às vezes
pensamos que estagnou.

As longas noites da História
passam-se tão lentamente
que nem nos apercebemos
quando o dia, enfim, chegou.

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

Tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu:
os corpos e os vegetais,
a fé e a necessidade,
a volúpia e a vontade,
o desejo e o desalento.

Tudo o que é vivo apodrece,
o que é líquido evapora,
o sólido se deforma,
o fogo que queima apaga
e o ar, puro ou cinzento,
a cada instante renova-se,
e mesmo o pó se transporta
sob o trabalho dos ventos.

Tudo muda, tudo passa,
tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.