Amigos do Fingidor

domingo, 31 de maio de 2009

Friedrich Bury (1761-1823)

Countess Luise von Voss.

Minha pátria é minha língua

Minha’alma é triste
Casimiro de Abreu (1839-1860)


Mon coeur est plein – je veux pleurer!
Lamartine

I

Minh’alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

E, como a rola que perdeu o esposo,
Minh’alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.

E como as notas de chorosa endeixa*
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh’alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.

Dizem que há gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
– Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei por que – mas a minh’alma é triste!

II

Minh’alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.

Se passa um bote com as velas soltas,
Minh’alma o segue n’amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.

Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh’alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!

E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minh’alma em notas de chorosa endeixa*
Lamenta os sonhos que já tive outrora.

Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
– Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos – a minh’alma é triste!

III

Minh’alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh’alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!

Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.

Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços,
Ambos choramos, mas num só gemido!

Dizem que há gozos no viver d’amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– Eu vejo o mundo na estação das flores...
Tudo sorri – mas a minh’alma é triste!

IV

Minh'alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!

A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
– Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.

De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s’reia
Que em doce canto me atraiu na infância.

Ai! loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp’ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
– Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!

Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores – a minh’alma é triste!

* Endecha.

sábado, 30 de maio de 2009

Christoffer Wilhelm Eckersberg (1783-1853)

Morning Toilette.

Poesia em tradução

Quando, na angústia do suicídio
Anna Akhmátova (1889-1966)


Quando, na angústia do suicídio,
o povo esperava pelo hóspede germânico,
e o austero espírito de Bizâncio
desertava a Igreja russa,
quando a capital às margens do Nevá,
esquecida de sua grandeza,
como uma prostituta bêbada
nem sabia mais a quem se entregava,
ouvi uma voz consoladora
que me dizia: “Vem para cá,
abandona essa terra surda e pecadora,
abandona a Rússia para sempre.
Limparei o sangue de tuas mãos,
a negra vergonha arrancarei de teu coração,
com um nome novo cobrirei
a injúria e a dor da derrota”.
Mas eu fiquei calada e indiferente
e tapei os ouvidos com as mãos
para que essas indignas palavras
não viessem profanar minha alma aflita.

(Trad. Lauro Machado Coelho)

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Jean-Baptiste Regnault (1754-1829)

The Judgement of Paris.

Testamento

Alda Lara (1930-1962)


À prostituta mais nova
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos, lavrados
em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
rapariga sem ternura,
sonhando algures uma lenda,
deixo o meu vestido branco,
o meu vestido de noiva,
todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
ofereço-o àquele amigo
que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
das contas de outro sofrer,
são para os homens humildes,
que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e desordenada...
esses, que são de esperança,
desesperada mas firme,
deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
em que a minha alma venha
beijar de longe os teus olhos,
vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
oferecê-los às crianças
que encontrares em cada rua...

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Bartolomeo Veneto (1502-1555)

Woman Playing a Lute.

Romance da noite-chuva

Elson Farias


Tremia o trovão na terra.

Talhavam a face torva
gota a gota os seringais,
era o deus que era raivoso
e vinha nos temporais.

Bramia o rumor do rio
nas noites de escuro e chuvas,
caía a faixa da terra,
piavam surdo as corujas.

Um noturno canto-pranto
cortava o céu em dois meios,
nosso deus vinha vestido
de nós e os nossos receios.

*

– Minha mãe, onde é que eu acho
a lamparina da noite?
– Meu filho, ela deve estar
pendurada lá no alpendre.
– Minha mãe, por que a coruja
pia agora sem parar?
– Meu filho, certo que existe
um defunto a amortalhar.
– Quero dormir, minha mãe,
dentro das trevas desta hora,
mas não posso me embrulhar,
o meu lençol me apavora.
– Meu filho, dorme, não chora,
que o dia custa a vir,
reza as três ave-marias,
muda a roupa e vai dormir.

*

A terra tremia toda.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Leonid Afremov

Fishing on the Lake.

Dabacuri - amazônica 2

Zemaria Pinto


ao descer das águas
a várzea rejuvenesce
– tempo de plantar



sem fazer bulício
a jacina pousa leve
na água estagnada

terça-feira, 26 de maio de 2009

Jankel Adler (1895–1949)

(Título desconhecido.)

Urbano

Alexandre dos Santos


Meus óculos quebrados
foram perdidos.
Indiferente, meu corpo
sente fadiga.
Batendo cartão o dia
segue como uma construção
porém, operários pedem
melhor condição de trabalho.
E ainda não é fim de tarde.
E ainda não amanheceu.
Apenas meu silêncio que
desenha o movimento estático:
ele intrapenetrável
ele realiza de si
ele travesseiro dos meus olhos.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Marie Davis Samohod

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Apocalipse
Luiz Ruas (1931-2000)


Os meteoros ameaçam nossos jardins.

É hora de decolarmos
Para a infinitude do silêncio dilatado
Com nossas asas de sonho
Antes que a terra exploda
E se escancare como a fauce
De uma desmedida flor carnívora
Faminta de nossos corpos.

Não mais teremos tempo
De colher o fruto do nosso canto

Os meteoros ameaçam nossos campos.

Os mares cobrirão nossas faces;
Os vulcões ressecarão nossos ossos;
As mãos, os ventres, os sexos
Murcharão sob o fogo das estrelas
Que cairão sobre vales e colinas.

Os meteoros ameaçam nossos rios.

É tempo de partirmos para o espanto desmedido.
Do que fomos, fizemos ou cantamos,
Ficará, apenas, o invisível traço
Do voo da ave indivisível
Que se consumiu no espaço.

domingo, 24 de maio de 2009

El Greco (1541-1614)

Lady in a Fur Wrap.

Minha pátria é minha língua

Nevoeiro
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)


Quem poderá saber que estranha bruma
Brotou caladamente em minha volta
Pra que eu perdesse as horas uma a uma
Sem um gesto, sem gritos, sem revolta.

Quem poderá saber que estranhos laços
E que sabor de morte lento e amargo
Sugaram todo o sangue dos meus braços –
O sangue que era sede do mar largo.

Quem poderá saber em que respostas
Se quebrou o subir do meu pedido
Para que eu bebesse imagens decompostas
À luz dum pôr de sol enlouquecido.

sábado, 23 de maio de 2009

Johannes Vermeer (1632-1675)

The Astronomer.

Poesia em tradução

O Corvo
Edgar Allan Poe (1809-1849)

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
"É alguém" – fiquei a murmurar – "que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais".

Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo agônico animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
– essa, mais bela que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais".

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta". Escancarei então a porta:
– escuridão e nada mais.

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
"É na janela" – penso então – "Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais."

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
– é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" – então lhe digo –
"não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouca importa), empoleirada em sua porta
e que se chame “Nunca mais”.

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: "Amigos... sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora."
E disse o Corvo: "Nunca mais."

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: – o ritornelo
de "Nunca, nunca, nunca mais."

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
e, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
grasnava sempre: "Nunca mais."

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que Ela, ausente, à luz que cai suavemente,
já não repousa, ah! nunca mais ?

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
"Mísero!", exclamo. "Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,
esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta!" – brado. – "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:
Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta!", exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja isso a nossa despedida!" – ergo-me e grito, alma incendida. –
"Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está a minha alma: e, presa à sombra,
não há-de erguer-se, ai! Nunca mais!

(Trad. Milton Amado)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Hendrik van Balen (1575-1632)

The Judgement of Paris.

Metáfora

Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Willem Adriaensz Key (1515-1568)

Venus And Cupid.

Cantar de andarilho

Alencar e Silva

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.

Minhas sandálias
cobrindo o mundo
que descobriram
pé ante pé,
minhas sandálias
vão-se ficando
pelos caminhos
de minha fé.

Arde em meu rosto
o sol de todos
os continentes.

Todos os ventos
já visitaram
minhas narinas.
Todas as águas
já circularam
dentro de mim.

Em minha fala
todas as falas
se misturaram.

E nos meus olhos
os céus mais vários
se despejaram.

Não tenho pátria
determinada
nem tenho pressa
nesta jornada:

só esta sede
que têm meus olhos
de ver e ver

e este incontido
impulso de asas
sobre meus pés.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Kenyon Cox (1856-1919)

An Eclogue.

muito prazer

Zemaria Pinto

sou um dos 999.999 poetas do país
(Affonso Romano de Sant'Ana)

Manaus tem um poeta a cada esquina?
pois eu confirmo e assino embaixo
e refaço a conta affonsina:

inofensivos poetas
a olhar Manaus com olhos
de Ajuricaba louco
mergulhando no chafariz da praça
e afogando-nos em esperma
cozido pelo sol passante

como os leprosos que passeiam
sua infeliz cidade (ah, morena)
nos calcanhares da engarrafada 7

love, sandem, guaraná
as cores inebriam rútilas pupilas
sonadas pela erva-doce

e a cidade anoite/amanhece
com o estourar das flatulências cotidianas:
um escolar quebra um ônibus
um bêbado assobia o Bolero
um deputado vitupera comunistas
um ...
(indefinidamente, mediocridades diárias)

e haja hipocrisia, malária, meningite
corrupção, hepatite
paternalismo, autoritarismo
desidratação
aborto fabricado em fundo de quintal
jogo do bicho, mormaço, banca de jornal
Ulysses, Grande Sertão, Tartufo, O Capital

e

nevermore nevermore
repete como um demente
o velho urubu ianque
pousado nos meus umbrais

só depende de você, caia na real:
se você disser que eu não rimo ou metrifico
te dou um beijo na boca
e te xingo parnasiana!

(ah, antes que eu me esqueça,
esta rua tem nome de poesia:
– Tomás Antônio Gonzaga
redondilhas pra Marília –
e só aqui no D. Pedro*
há pra mais de 100 esquinas)


* Conjunto habitacional, onde funcionava o bar Ecológico, onde este poema foi lido em público pela primeira vez.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Jean Beauduin (1851-1916)

Dame tient un eventail.

Olhar de um poeta

Álvaro Smont


Ver o mundo
contemplar profundo
deixar que o silêncio
suave o envolva.

Fazer a essência
mostrar seu valor.

As palavras
transformá-las em vida
em harmonia
em sentimentos
em canções e até ironia.

Ver além
como a águia distante...

Tornar existente
o que antes não se via
fazer do silêncio
o som mais suave
compondo as mais belas melodias...

Passar pela vida
deixar pegadas
em longas marcas
saber que quem passou
é imortal.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Vasilis Bottas

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Solidão
Benjamin Sanches (1915-1978)

O pássaro de barro da saudade
Revoando no aro dos meus olhos
Repousou nos meus dedos de silêncio
Partindo para as terras ignotas.

Divaguei nos roteiros do amanhã
(Quilhas cortando o ventre do espaço
Rasparam os recifes das quimeras
Encalhando nas rochas das lembranças).

E aquela argila diluída em sombras
Incensando o meu templo de memórias
Nas alvoradas dos meus sofrimentos.

Na grande solidão do inatingível
Ancorei o coração num mar de lágrimas
E adormeci num inferno entre dois céus.

domingo, 17 de maio de 2009

Egon Schiele (1890-1918)

The Hug (The Lovers).

Minha pátria é minha língua

Balada de amor na praia
Paulo Mendes Campos (1922-1991)


Ai como sofre o corpo que se esfrega
no corpo que se entrega e não se entrega

é como a convulsão da preamar
a querer atirar o mar no ar

a onda rija bate como espada
nos musgos da mulher ensolarada

guelras arfantes pernas semifusas
grifam sombras morenas de medusas

e a verde rocha em V vê o duelo
do peixe azul fisgado no amarelo

compondo um bicho humano sobre a praia
que se desfaz em rendas e cambraia

moluscos musculares do desejo
decápode do homem – caranguejo

anêmonas e polvos complacentes
a resvalar de abismos inocentes

como se amar no mar fosse encontrar
nossa animalidade elementar

ou fosse o ser na praia (duplicado
de amor) bicho de amor do mar gerado

cujas garras fatais persuasivas
deslizam pelas angras sensitivas

pelos quadris que dançam pelos frisos
conjugais – ziguezague de mil guizos –

garras que buscam a melhor textura
no ventre no pescoço na cintura

já quase a devorar a lua cheia
no litoral do céu feito de areia

e o sol diz nomes feios para a lua
pedindo que ela entenda e fique nua

para que possa a coisa hermafrodita
mudar a vida breve em infinita

e quando enfim de amor o bicho – arraia
na confusão voraz freme e se espraia

é como a convulsão da preamar
que conseguiu jogar o mar no ar

sábado, 16 de maio de 2009

Francesco Albani (1578-1660)

Venus at her toilet.

Poesia em tradução

Pedra negra sobre uma pedra branca
Cesar Vallejo (1892-1938)

Eu morrerei em Paris com aguaceiro,
um dia que meu peito já relembra.
Morrerei em Paris, talvez – não fujo –
numa quinta de outono, igual à de hoje.

Quinta-feira há de ser. Hoje, que proso
estes versos e mal me tenho os húmeros,
é quinta e, como nunca, hoje voltei
com todo o meu caminho a me ver só.

Morreu César Vallejo, o que apanhava
de todos sem que nada lhes fizesse;
lhe davam duro com um pau e duro

com a corda também; são testemunhas
as quintas-feiras, os meus ossos húmeros,
a solidão, a chuva e os caminhos.

(Trad. Thiago de Mello)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Francesco Bacchiacca (1494-1557)

Sibyl.

A rainha arcaica – XIV

Inês: o nome
Ivan Junqueira


Inês é nome que se pronuncia
para instigar ou seduzir prodígios,
é senha que as sibilas balbuciam
ao decifrar enigmas cabalísticos.
É mais do que isto: códice da língua,
raiz da fala, bulbo do lirismo.
É gênese da raça e do suplício,
arché do amor e substância prima.
É mais ainda: tálamo do espírito,
dessa alquimia de morrer em vida
e retornar na antítese do epílogo.
E quem disser que Inês é apenas mito
– mente. E faz dela inútil pergaminho.
E da poesia um animal sem vísceras.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Gustavo Dall'Ara (1865 - 1923)

Largo da Lapa.

Terceira idade

Astrid Cabral


Poupem palavras panos mornos.
Minados fracos os ossos
cabelos ralos desbotados.
No sorriso algumas falhas
navalhas muitas na alma.
Nos órgãos sinais de falência
e a dependência se inicia:
médicos drogas e drágeas.
Por favor não falem de
maturidade e sabedoria.
Pois de que valeriam
atrasadas, sem serventia,
na instância de sufoco
do corpo em atrofia?

Nada de pseudoconsolos.
Por que tapar com peneira
as muitas perdas e danos?
Então será caridade
mascarar a subtração?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Sandro Botticelli (1445-1510)

Palas e o centauro.

poundiana

Zemaria Pinto


a essência consiste em ser medula


fluir

conter

podar:


condensar!

terça-feira, 12 de maio de 2009

José Roberto Aguilar

Carta de Goethe a Byron.

Chuva de lembranças

Carlos Tiago


Luas e madrugadas
correm em minhas veias
ventos que chegam
trazendo lembranças da chuva
terra molhada, rio correndo
a vida nascendo nos matagais.

O rio vai descendo
contando histórias.

Noites estreladas nascem em mim
com seus mistérios e lendas:
o boto quer namorar
a boiúna vai em forma de navio
há festas, sorrisos, encantamentos.

Chuvas molham o chão
de minha alma
nos igapós águas de lembranças
lavam troncos e saudades.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Lisa Russo

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Soneto
Tenreiro Aranha (1769-1819)

À mameluca Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente assassinada no caminho da Fonte do Marco, perto desta cidade de Belém, porque preferiu a morte à mancha de infiel ao seu esposo.

Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante.

Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:

Que d’um monstro inumano, lhe declara
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque à dor amara,

Lembrando-se que teve uma consorte,
Que por honra da fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.

domingo, 10 de maio de 2009

Thomas Phillips (1770-1845)

Retrato de William Blake.

Minha pátria é minha língua

Mal Secreto
Raimundo Correia (1859-1911)


Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

sábado, 9 de maio de 2009

Michael John Angel

Female Nude (unfinished).

Poesia em tradução

Lição de coisas
Octavio Paz (1914-1998)


1. Animação

Sobre a estante,
entre um músico Tang e um jarro de Oaxaca,
incandescente e vivaz,
com faiscantes olhos de papel de prata,
nos observa ir e vir
a pequena caveira de açúcar.

2. Máscara de Tláloc gravada em quartzo transparente

Águas petrificadas.
O velho Tláloc dorme, dentro,
sonhando tempestades.

3. O mesmo

Tocado pela luz
o quartzo já é cascata.
Sobre suas águas flutua, menino, o deus.

4. Deus que surge de uma orquídea de barro

Entre as pétalas de argila
nasce, sorridente,
a flor humana.

5. Deusa Olmeca

Os quatro pontos cardeais
regressam a teu umbigo.
Em teu ventre golpeia o dia, armado.

6. Calendário

Contra a água, dias de fogo.
Contra o fogo, dias de água.

7. Xochipilli

Na árvore do dia
penduram frutos de jade:
fogo e sangue na noite.

8. Cruz com sol e lua pintados

Entre os braços desta cruz
aninharam-se dois pássaros:
Adão-sol e Eva-lua.

9. Menino e pião

Cada vez que o lança,
cai, justo,
no centro do mundo.

10. Objetos

Vivem ao nosso lado,
os ignoramos, nos ignoram.
Algumas vezes conversam conosco.
(Trad. Zemaria Pinto)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Henri Matisse (1869-1954)

Large Reclining Nude or The Pink Nude.

Os poemas que não tenho escrito

Affonso Romano de Sant'Anna


Os poemas que não tenho escrito
porque

trabalhando num banco me interrompiam a toda hora
ou tinha que ir à venda e à horta
– quando o poema batia à porta,

os poemas que não tenho escrito
por temer
descer mais fundo no escuro de minhas grotas
e preferir os jogos florais
de uma verdade que brota inócua,

os poemas que não tenho escrito
porque
meu dia está repleto de alô como vai volte sempre obrigado
e eu tenho que explicar na escola o verso alheio
quando era a mim próprio
que eu me devia explicado,
os poemas que não tenho escrito
porque gritam
'
ou cochicham ao meu lado
ligam máquinas tocam disco e ambulâncias
passam carros de bombeiro e aniversários de criança
e até mesmo a natureza solerte
se infiltra entre o papel e o lápis

inutilizando com sua presença viva
minha escrita natimorta,

os poemas que não tenho escrito
porque
na hora do sexo jogo tudo para o alto
e quando volto ao papel encontro telefonemas e prantos
e exigência de afetos, planos e reencontros
me deixando lasso o pênis e um remorso brando no lápis

esses poemas que não tenho escrito
como um ladrão escapando pelas frestas
ou covarde devorado por seus medos
e persas
esses poemas que não tenho escrito
esses poemas
estão lá dentro
me espreitando
alguns já ressacados
outros ressuscitando
outros me acudindo
muitos me acenando
batendo à porta
– me arrombando
me invadindo a sala
com falas corretoras
enciclopédias e planos

esses poemas estão lá dentro
latentes
me apertando
atando
sufocando
e qualquer dia me encontrarão
roxo e acuado
senão boiando e afogado
– numa sangria de versos desatada.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Fillippo Agricola (1776-1857)

Retrato de Constance Monti Perticari.

Destino

Tenório Telles


Para te saudar
a manhã luminosa
derrama sua torrente de cores

Fiapos áureos
são tecidos pelas horas
e o tempo com seu olhar fosforescente
esculpe teu rosto terno

A vida é uma tapeçaria
de acontecimentos
e circunstâncias cotidianas

Como um quadro
que se inscreve na memória
teus dias e destino se desenrolam

Nessa travessia
em que tudo se esvai
só a lembrança que guardo de ti
há de ficar – como a borboleta amarela
que pousava nos arbustos
que margeavam os caminhos da infância

Que possas levantar
as velas do teu barco
e que os ventos protetores
te conduzam para águas calmas
e possas cumprir tua geografia de sonhos

Esperarei o retorno de tuas viagens
as notícias de um tempo
feliz para o homem
os relatos dos teus triunfos
teu canto temperado pelo mar
e as dores purgadas sob o furor dos ventos

Que o teu destino se cumpra
e possas chegar à outra margem
onde encontrarás as miragens que te seduziam

E então saberás que estão em ti
os tesouros
que buscaste.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

François Boucher (1703-1770)

Head of a Young Girl.

A canção de amor de J. Sebastião

Zemaria Pinto

Sigamos então, tu e eu,
enquanto Manaus se estende sob o céu
como um paciente anestesiado sobre a mesa.

Caminhemos pelas mesmas ruas,
quase desertas a estas horas,
sob uma bruma eliotiana,
contando as fachadas dos hotéis de conveniência,
ouvindo ao longe a doce música das sirenes.

Ah, Manaus, Manaus,
o mais vil de teus poetas
vomita sua sintaxe indefinida
arrastando-se no lodo da Cachoeira
em busca de alguma felicidade provisória
ou uma dose violenta de qualquer coisa
mergulhando a alma nessa tenra madrugada de outubro.

Abraço o poeta e o beijo que deposito em sua boca
é amargo e fedido.
Peço uma tangerina e mais outra
e o cheiro que toma o ar me embriaga
mais que toda a cerveja e toda a urina do banheiro fétido.

O poeta sussurra alguma coisa sobre
as moças assassinadas / da praia da Ponta Negra
e fala de espectros e histórias de amor
e eu mal consigo perceber o movimento de sua língua de chumbo.
Tomo suas mãos nas minhas e ele adormece
murmurando preces pelas moças assassinadas.

Ah, Manaus, Manaus,
quanta poesia desperdiçada
nas flores que o rio insiste em devolver à areia
num invólucro de espuma.
Onde estão tuas crianças, cidade?
Onde estão tuas mulheres, teus velhos?
E tuas úmidas meninas túmidas?
Em que longínqua guerra fratricida eles sucumbiram?

Ah, maninha,
não me curvo às urgências do teu sexo
ou ao discurso mudo dos teus bêbados.
Seria a poesia uma doença tropical?
A bruma cai em flocos e tem gosto de açaí.
Precisamos beber algo quente
que nos anuncie a manhã,
como um galo ou uma fábrica.

Dá-me tua mão.
Ainda há tempo.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Sebastiano Del Piombo (1485-1547)

Portrait of a girl.

O caminho que escolhi

Rafael Marques

O caminho que escolhi
É adverso dos trilhados pelos gaviões,
No entanto, me elevam aos céus
Por mim nunca pensados.
No caminho que escolhi
Encontro a mim mesmo
Na extensão limitada
De luz que carrego
No ego esgarço de carne
Condenada.
O caminho que escolhi
Não me deixou escolha
Senão o de abandonar,
Luz da tarde apodrecendo,
Ermidas e edifícios
Na corrosão feita de tempo e descaso.

Minhas mãos não podem tocar
A insaciável mudança
Que devora casas e amigos,
Que devora meu próprio rosto
Refletido no espelho.

No caminho que escolhi
Deixei a musa
E dez anos de amor
Que a eternidade reclama
Serem poucos demais.
(Posso ter trocado uma aurora inteira
Por restos pequenos de sol).

Todavia, é hora de trabalhar.
Traço forçoso que desce do braço
Constrói, passo a passo,
A imensidão do caminho...
...do meu caminho.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

John Roddam Spencer Stanhope (1829-1908)

Venus rising from the sea.

Estante do tempo

Pitiapo (canto III)
Ermano Stradelli (1852-1926)


A linda filha de Yairo conheces,
Pitiapo gentil?
Ei-la! é a primeira
daquelas moças que, no vão da porta,
bando de corças assomam, trazendo
na cabeça, com a esquerda mão seguros,
os camutis a transbordar. Do rio
voltam. Os lindos corpos água pingam
ainda e luzem ao sol que os envolve
nos matutinos raios docemente.

Que pureza de formas, que lindeza
na sua casta nudeza primitiva
aos olhos patenteiam! Véus importunos
não contendem a vista, nem deturpam
as belas formas onde a mocidade
e a natureza porfiando brilham,
e nítidas no azul puro do céu,
entre os umbrais, desenham-se em um nimbo de luz.

É aquela, a mais nova de todas.
Curtos traz os cabelos luzidios,
negra como a d’esbelta bacabeira,
mal roçam-lhe os ombros – não completa
o ano ainda que a criança em moça
transformou-se – os pequenos peitos, rijos,
mal tremem quando anda, o corpo todo
trescala mocidade; os negros olhos,
doces e ardentes, de meiguice e chamas
prometedores endoudecem; meiga
juruti, sadia e forte a palma leva
às companheiras todas nos trabalhos
do tear e da roça; não a iguala
nenhuma nas domésticas tarefas;
a caça e a pesca, se ela as trata, tornam-se
delicados manjares; as bebidas
que amassa com suas mãos, quanto o sorriso
dos seus lábios faceiros, embriagam;
debaixo de seus dedos obedientes
o barro é feito, amolda-se em vasilhas,
que em elegância vencem os trabalhos
do mais perfeito oleiro; se aparece
nas festas todas vence em gentileza,
no natural donaire e formosura,
como a Ceucy do céu, a rival da Lua,
vence as estrelas todas, quando brilha.

É aquela, que adianta-se das outras
e ao chegar onde os velhos silenciosos
estão fumando diz:
“Meu pai, um moço,
e estrangeiro parece, aportou à ilha.
Na ubá vinha sozinho. Aí vem”.
E entra,
logo dito, ligeira na maloca.

domingo, 3 de maio de 2009

Thomas Phillips (1770-1845)

Lord Byron in albanian dress.

Minha pátria é minha língua

Balada da Neve
Augusto Gil (1873-1929)


Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim...

É talvez a ventania;
Mas há pouco, há poucochinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...

Quem bate assim levemente,
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?...
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento, com certeza.

Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu,
Branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança,
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
A neve deixa inda vê-los,
Primeiro, bem definidos,
– Depois em sulcos compridos,
Porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Por que lhes dais tanta dor?!...
Por que padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
Uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza...
– E cai no meu coração.

sábado, 2 de maio de 2009

John Reinhard Weguelin (1849-1927)

Lesbia.

Poesia em tradução

Eutanásia
Lord Byron (1788-1824)


Quando o tempo trouxer, ou cedo ou tarde,
Esse sono sem sonhos para me embalar,
Sobre meu leito de agonia possa, Olvido!
Tua asa langue levemente tremular.

Nem rois de amigos nem de herdeiros lá estarão,
Para chorar, ou desejar, o que há de vir,
Nem virgem de cabelo desgrenhado
Para sentir dor decorosa, ou bem fingir.

Sem ter por perto carpidores oficiosos,
Deixai que a terra me recubra silencioso:
Que eu não tire à amizade uma só lágrima,
Que eu não estrague um só momento jubiloso.

Contudo o Amor, se o Amor em tal momento
Seus inúteis soluços nobre contivesse,
Poderia mostrar a sua força última
Na que ficasse viva ou no que então morresse.

Seria doce até o fim, ó minha Psique!
Ver as tuas feições ainda serenas;
Para ti sorriria a própria Dor,
Esquecida de suas idas penas.

Mas é vão o desejo – dado que a Beleza
Se retrairá, ao esgotar-se o último alento;
E o pranto da mulher, que rola a belprazer,
Engana em vida, abate no último momento.

Sozinho eu fique pois em minha hora final,
Sem que mostre pesar, sem um gemido;
Para milhares já não franze o cenho a Morte,
E passageira ou ignorada a dor tem sido.

“Ah! morrer todavia e ir-se para sempre!”
Aonde todos foram ou já devem ir!
Ser o nada que eu era, anteriormente
A nascer para a vida e para a dor curtir!

As alegrias conta que tuas horas viram,
Conta os teus dias sem nenhum sofrer:
E sabe, não importa o que hajas sido,
É bem melhor não ser.

(Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos)

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Robert Dampier (1800-1874)

Tetuppa, a Native Female of the Sandwitch Islands.

O sonho da água

Luís Augusto Cassas

sete anos de fartura
sete anos aziagos
sete peixes sem gordura
engolindo sete pargos

sete anos de espinhas
deixando o mar asfixiado
após sete anos as tainhas
brilharão no mar sagrado

sete anos de tubarão
devorando o mar ao rabo
após sete os peixes-pedra
crescerão multiplicados

sete anos de camarão
ausentes do pau-deitado
após sete o maranhão
por setenta saciado

o sertão vai virar mar
o mar vai virar sertão
fartura do céu virá
no mares do maranhão