Zemaria Pinto
Sigamos então, tu e eu,
enquanto Manaus se estende sob o céu
como um paciente anestesiado sobre a mesa.
Caminhemos pelas mesmas ruas,
quase desertas a estas horas,
sob uma bruma eliotiana,
contando as fachadas dos hotéis de conveniência,
ouvindo ao longe a doce música das sirenes.
Ah, Manaus, Manaus,
o mais vil de teus poetas
vomita sua sintaxe indefinida
arrastando-se no lodo da Cachoeira
em busca de alguma felicidade provisória
ou uma dose violenta de qualquer coisa
mergulhando a alma nessa tenra madrugada de outubro.
Abraço o poeta e o beijo que deposito em sua boca
é amargo e fedido.
Peço uma tangerina e mais outra
e o cheiro que toma o ar me embriaga
mais que toda a cerveja e toda a urina do banheiro fétido.
O poeta sussurra alguma coisa sobre
as moças assassinadas / da praia da Ponta Negra
e fala de espectros e histórias de amor
e eu mal consigo perceber o movimento de sua língua de chumbo.
Tomo suas mãos nas minhas e ele adormece
murmurando preces pelas moças assassinadas.
Ah, Manaus, Manaus,
quanta poesia desperdiçada
nas flores que o rio insiste em devolver à areia
num invólucro de espuma.
Onde estão tuas crianças, cidade?
Onde estão tuas mulheres, teus velhos?
E tuas úmidas meninas túmidas?
Em que longínqua guerra fratricida eles sucumbiram?
Ah, maninha,
não me curvo às urgências do teu sexo
ou ao discurso mudo dos teus bêbados.
Seria a poesia uma doença tropical?
A bruma cai em flocos e tem gosto de açaí.
Precisamos beber algo quente
que nos anuncie a manhã,
como um galo ou uma fábrica.
Dá-me tua mão.
Ainda há tempo.