Birth of Venus.
Amigos do Fingidor
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
Estante do tempo
Estudo IX
Alcides Werk (1934-2003)
Fez-se uma curta pausa. E a noite baça
estendeu seus lençóis sobre as cidades.
Ventos frios de morte andavam soltos,
e formas embuçadas destruíam
restos vagos de luz. Alguns senhores
guardaram pressurosos seus haveres
para a estranha vigília dos sonâmbulos.
Nas sombrias e extensas avenidas
as multidões dos homens deserdados
prosseguiram seus ritos no silêncio
de uma noite sem tempo. E os anciãos
das várias tribos foram convocados
para o mister pacífico das aras
e a glorificação das horas mortas.
Alcides Werk (1934-2003)
Fez-se uma curta pausa. E a noite baça
estendeu seus lençóis sobre as cidades.
Ventos frios de morte andavam soltos,
e formas embuçadas destruíam
restos vagos de luz. Alguns senhores
guardaram pressurosos seus haveres
para a estranha vigília dos sonâmbulos.
Nas sombrias e extensas avenidas
as multidões dos homens deserdados
prosseguiram seus ritos no silêncio
de uma noite sem tempo. E os anciãos
das várias tribos foram convocados
para o mister pacífico das aras
e a glorificação das horas mortas.
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Minha pátria é minha língua
A máquina do mundo
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
sábado, 26 de fevereiro de 2011
Poesia em tradução
Soneto LXXIII
William Shakespeare (1564-1616)
Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.
Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.
Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logo
Do quanto que o nutriu ora esgotado.
Sabê-lo faz o teu amor mais forte
Por quem em breve há de levar a morte.
(Trad. Ivo Barroso)
William Shakespeare (1564-1616)
Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.
Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.
Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logo
Do quanto que o nutriu ora esgotado.
Sabê-lo faz o teu amor mais forte
Por quem em breve há de levar a morte.
(Trad. Ivo Barroso)
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
Carta a um jovem poeta
Marco Catalão
Todos os jovens poetas são
ridículos.
Não seriam jovens poetas se não fossem
ridículos.
Também fui em meu tempo um jovem poeta,
como os outros,
ridículo.
Os jovens poetas, se são jovens, e ainda por cima poetas,
têm de ser
ridículos.
Mas, afinal,
só as criaturas que nunca escreveram
versos na juventude
e nunca os publicaram em revistas que nunca duravam mais que três números
é que são
ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
sem dar por isso
poemas exaltados comovidos rebeldes
e ridículos.
A verdade é que hoje
as minhas memórias
desses poemas
é que são
ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
como os sentimentos esdrúxulos,
como os quarentões cheios de escrúpulos,
são naturalmente
ridículas.)
Todos os jovens poetas são
ridículos.
Não seriam jovens poetas se não fossem
ridículos.
Também fui em meu tempo um jovem poeta,
como os outros,
ridículo.
Os jovens poetas, se são jovens, e ainda por cima poetas,
têm de ser
ridículos.
Mas, afinal,
só as criaturas que nunca escreveram
versos na juventude
e nunca os publicaram em revistas que nunca duravam mais que três números
é que são
ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
sem dar por isso
poemas exaltados comovidos rebeldes
e ridículos.
A verdade é que hoje
as minhas memórias
desses poemas
é que são
ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
como os sentimentos esdrúxulos,
como os quarentões cheios de escrúpulos,
são naturalmente
ridículas.)
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Balada das 13 Casas
Luiz Bacellar
São 13 casas unidas,
são 13 casas nascidas
no mesmo lance de rua,
com as mesmas paredes-meias,
os mesmos oitões de taipa,
a mesma fachada nua
e as mesmas janelas tristes
de 13 casas na rua.
Unidas? Bem... desunidas
nos problemas dos que habitam
suas paredes estanques;
mas juntas, pelo beiral,
pelos caibros de itaúba,
pelas telhas de canal
de 13 casas na rua.
E as famílias que moravam
(ainda algumas demoram)
nos tempos do berimbau?
Lembro: Cabelo-de-Fogo,
família Boca-Medonha,
a família Macaxeira
e a família Bacurau
das 13 casas da rua.
Das 13 só restam 11:
2 foram demolidas
pra dar lugar a um convento
de padres redentoristas
que, não contentes com isso,
de Tocos para Aparecida
mudaram o nome do bairro
das 13 casas da rua.
Numa delas eu vivi,
numa outra me criei,
e talvez venha a morrer;
quanto às outras, pelos donos
foram sendo reformadas,
gente próspera e “elegante”
como atestam as fachadas
das 13 casas da rua.
Apenas esta onde moro
de casa velha coroca
conservou a identidade:
ainda usa arandelas,
calhas, tabiques, escápulas,
com manias e pirraças
de quem “viveu” outra idade
das 13 casas da rua.
Senhora Dona Donana (Ofertório)
(Anna Henriqueta da Cunha),
ex-dona do quarteirão
irmão no estilo e argamassa,
a vós dedico e consagro
esta balada sem graça
em memória das antigas
fachadas, já derrubadas,
das 13 casas da rua.
São 13 casas unidas,
são 13 casas nascidas
no mesmo lance de rua,
com as mesmas paredes-meias,
os mesmos oitões de taipa,
a mesma fachada nua
e as mesmas janelas tristes
de 13 casas na rua.
Unidas? Bem... desunidas
nos problemas dos que habitam
suas paredes estanques;
mas juntas, pelo beiral,
pelos caibros de itaúba,
pelas telhas de canal
de 13 casas na rua.
E as famílias que moravam
(ainda algumas demoram)
nos tempos do berimbau?
Lembro: Cabelo-de-Fogo,
família Boca-Medonha,
a família Macaxeira
e a família Bacurau
das 13 casas da rua.
Das 13 só restam 11:
2 foram demolidas
pra dar lugar a um convento
de padres redentoristas
que, não contentes com isso,
de Tocos para Aparecida
mudaram o nome do bairro
das 13 casas da rua.
Numa delas eu vivi,
numa outra me criei,
e talvez venha a morrer;
quanto às outras, pelos donos
foram sendo reformadas,
gente próspera e “elegante”
como atestam as fachadas
das 13 casas da rua.
Apenas esta onde moro
de casa velha coroca
conservou a identidade:
ainda usa arandelas,
calhas, tabiques, escápulas,
com manias e pirraças
de quem “viveu” outra idade
das 13 casas da rua.
Senhora Dona Donana (Ofertório)
(Anna Henriqueta da Cunha),
ex-dona do quarteirão
irmão no estilo e argamassa,
a vós dedico e consagro
esta balada sem graça
em memória das antigas
fachadas, já derrubadas,
das 13 casas da rua.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
noturno
Zemaria Pinto
noite
o sol ilumina o oriente
a lua cheia incendeia a noite dos trópicos
a luz elétrica transborda pelas ruas
o mercúrio das praças acabou
desacatando todas as possibilidades prováveis
um disco voador pousa no alto da torre do relógio municipal
às 9 horas da noite
todos os namorados estão de línguas dadas
os casados discutem o orçamento familiar
os mais velhos contam estórias
crianças brincam de roda
homens verdes passeiam nas ruas
bebem chope, vão ao cinema
uma guerrilheira assassina um oficial da armada
no portão do cemitério cumprem-se obrigações religiosas
nos jardins do cemitério, por entre as mangueiras
casais adolescentes acariciam a noite
o tempo estaciona para os bêbados
(ontem? hoje?)
na falta de um lugar para amar
pernas entrecruzam-se nos bancos da praça escura
meia-noite
o o. v. i. levanta voo
vampiros devoram a cidade
a esta hora todas as mães estão dormindo
todos os seios estão rígidos
todas as mãos estão suadas
todos os soldados estão atentos
todos os peitos estão arfando
todas as pernas estão cansadas
todos os bêbados estão chorando
– mulheres e homens, todos de pé!
no céu constelações faíscam
uma virgem suicida-se
outra mulher chora sua insônia
um marido flagra um adultério
um vira-latas morde a perna de um guarda-noturno
um pederasta mata uma prostituta
uma missa negra é celebrada
um cientista descobre uma fórmula
um louco mastiga uma rosa
uma criança nasce na calçada
rompem da noite todos os gritos
fogem da cara todos os medos
– a humanidade quer dormir!
um galo canta
a lua já desapareceu por detrás dos armazéns do cais
as mulheres, as meninas da praça agora vão dormir
– também uma mulher insone –
os bêbados apressam-se para o trabalho
na casa funerária não houve um minuto de descanso
neste momento,
independente de todos os calendários e relógios
apenas um fato pode ser dito consumado:
o sol já voltou do oriente
(1975)
noite
o sol ilumina o oriente
a lua cheia incendeia a noite dos trópicos
a luz elétrica transborda pelas ruas
o mercúrio das praças acabou
desacatando todas as possibilidades prováveis
um disco voador pousa no alto da torre do relógio municipal
às 9 horas da noite
todos os namorados estão de línguas dadas
os casados discutem o orçamento familiar
os mais velhos contam estórias
crianças brincam de roda
homens verdes passeiam nas ruas
bebem chope, vão ao cinema
uma guerrilheira assassina um oficial da armada
no portão do cemitério cumprem-se obrigações religiosas
nos jardins do cemitério, por entre as mangueiras
casais adolescentes acariciam a noite
o tempo estaciona para os bêbados
(ontem? hoje?)
na falta de um lugar para amar
pernas entrecruzam-se nos bancos da praça escura
meia-noite
o o. v. i. levanta voo
vampiros devoram a cidade
a esta hora todas as mães estão dormindo
todos os seios estão rígidos
todas as mãos estão suadas
todos os soldados estão atentos
todos os peitos estão arfando
todas as pernas estão cansadas
todos os bêbados estão chorando
– mulheres e homens, todos de pé!
no céu constelações faíscam
uma virgem suicida-se
outra mulher chora sua insônia
um marido flagra um adultério
um vira-latas morde a perna de um guarda-noturno
um pederasta mata uma prostituta
uma missa negra é celebrada
um cientista descobre uma fórmula
um louco mastiga uma rosa
uma criança nasce na calçada
rompem da noite todos os gritos
fogem da cara todos os medos
– a humanidade quer dormir!
um galo canta
a lua já desapareceu por detrás dos armazéns do cais
as mulheres, as meninas da praça agora vão dormir
– também uma mulher insone –
os bêbados apressam-se para o trabalho
na casa funerária não houve um minuto de descanso
neste momento,
independente de todos os calendários e relógios
apenas um fato pode ser dito consumado:
o sol já voltou do oriente
(1975)
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
Angústia
Dedé Rodrigues
O que me mantém viva
é a pena que se fixou em minhas mãos
o que me impele a continuar lúcida
é a certeza de que posso ser mais
do que em verdade sou...
O início de tudo
o ventre materno
se me apresenta hoje
nestas páginas
que insisto em escrever:
– versos sem Poesia,
estilhaços da Solidão.
Porque tu és a estrada derradeira
porque és tu minha estrela, meu guia
assim eu te quero, assim:
– turbilhão de angústias
vento, tempestade!
...Confesse a si mesmo se (...)
morreria caso fosse proibido de escrever.
(R. M. Rilke)
O que me mantém viva
é a pena que se fixou em minhas mãos
o que me impele a continuar lúcida
é a certeza de que posso ser mais
do que em verdade sou...
O início de tudo
o ventre materno
se me apresenta hoje
nestas páginas
que insisto em escrever:
– versos sem Poesia,
estilhaços da Solidão.
Porque tu és a estrada derradeira
porque és tu minha estrela, meu guia
assim eu te quero, assim:
– turbilhão de angústias
vento, tempestade!
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
Estante do tempo
Papéis velhos... roídos pela traça do Símbolo
Maranhão Sobrinho (1879-1915)
Primeira folha
Velhos papéis... de versos. São pedaços
da minhalma, batidos pelo vento,
como as folhas do outono... Guardam traços
de um tempo, que passou, sem pensamento...
Preso nalgema dos teus alvos braços
teci-os; cada um lembra um momento
do nosso amor que, por eternos laços,
outrora, nos unia a um firmamento...
Se alguma glória tem, formosa, é esta:
todos o teu celeste amor perfuma,
em todos há tualma em riso e festa!
Velhos papéis, meu último conforto!
sois uma nódoa efêmera de espuma
perdida à face azul dum lago morto...
Última folha
...E o mais dos carunchosos manuscritos
não se lê, pela traça que os carcome;
são páginas, talvez, feitas de gritos,
mas ilegíveis no mais breve nome...
Vê-se, porém, que mãos e olhos aflitos
traçaram-nas chorando, à sede e à fome
de beijos e de abraços infinitos,
em qualquer folha que nas mãos se tome...
A poeira de séculos de mágoa
deu às restantes folhas a tristeza
das ravinas e córregos sem água...
E à traça a mesma antiga opacidade
da história assíria, escrita nas aspereza
dos mármores sem-fim de Khorsabad...
Maranhão Sobrinho (1879-1915)
Primeira folha
Velhos papéis... de versos. São pedaços
da minhalma, batidos pelo vento,
como as folhas do outono... Guardam traços
de um tempo, que passou, sem pensamento...
Preso nalgema dos teus alvos braços
teci-os; cada um lembra um momento
do nosso amor que, por eternos laços,
outrora, nos unia a um firmamento...
Se alguma glória tem, formosa, é esta:
todos o teu celeste amor perfuma,
em todos há tualma em riso e festa!
Velhos papéis, meu último conforto!
sois uma nódoa efêmera de espuma
perdida à face azul dum lago morto...
Última folha
...E o mais dos carunchosos manuscritos
não se lê, pela traça que os carcome;
são páginas, talvez, feitas de gritos,
mas ilegíveis no mais breve nome...
Vê-se, porém, que mãos e olhos aflitos
traçaram-nas chorando, à sede e à fome
de beijos e de abraços infinitos,
em qualquer folha que nas mãos se tome...
A poeira de séculos de mágoa
deu às restantes folhas a tristeza
das ravinas e córregos sem água...
E à traça a mesma antiga opacidade
da história assíria, escrita nas aspereza
dos mármores sem-fim de Khorsabad...
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Minha pátria é minha língua
Acrobata da dor
Cruz e Sousa (1861-1898)
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que, desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta, clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...
E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
Cruz e Sousa (1861-1898)
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que, desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta, clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...
E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
sábado, 19 de fevereiro de 2011
Poesia em tradução
Hino ao crítico
Vladimir Maiakóvski (1893-1930)
Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.
O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.
Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.
Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.
Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.
E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.
Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.
Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.
Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.
Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?
(Trad. Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)
Vladimir Maiakóvski (1893-1930)
Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.
O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.
Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.
Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.
Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.
E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.
Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.
Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.
Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.
Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?
(Trad. Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)
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Vladimir Maiakóvski
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
Arte poética
Mauricio Matos
baixei do lugar de onde vim
e dentro em mim mesmo desci
sem longe nem perto ou aqui
sem rumo princípio nem fim
eu mesmo cavalo-de-mim
baixei do lugar de onde vim
e dentro em mim mesmo desci
sem longe nem perto ou aqui
sem rumo princípio nem fim
eu mesmo cavalo-de-mim
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
Homem maduro
Cacilda Barbosa
Como eu te amo, homem
nos poucos cabelos
que o tempo te deixou
no sorriso bonito que a juventude
em ti regravou.
Homem, eu te amo tanto
quando toco teu corpo maduro
vejo o brilho em teus olhos
já um tanto apagado
me afogo em carícias
no peito cheiroso, de branco mesclado.
Sinto pecado ao olhar teu andar
majestoso e macio, de gato cansado.
As mãos ágeis buscando recantos
tirando poesia, música louca
de meus encantos.
No gozo alucinado, no abraço sensual
no urro conjunto saindo de nosso peito
no perfume molhado que deixas em meus pelos
em teu sexo que o tempo
fez mais que perfeito.
Como eu te amo, homem
nos poucos cabelos
que o tempo te deixou
no sorriso bonito que a juventude
em ti regravou.
Homem, eu te amo tanto
quando toco teu corpo maduro
vejo o brilho em teus olhos
já um tanto apagado
me afogo em carícias
no peito cheiroso, de branco mesclado.
Sinto pecado ao olhar teu andar
majestoso e macio, de gato cansado.
As mãos ágeis buscando recantos
tirando poesia, música louca
de meus encantos.
No gozo alucinado, no abraço sensual
no urro conjunto saindo de nosso peito
no perfume molhado que deixas em meus pelos
em teu sexo que o tempo
fez mais que perfeito.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
Dabacuri – da natureza das coisas 6
Zemaria Pinto
hora do néctar –
o beija-flor e a papoula
suspensos no ar
chuva de verão
esparge no meio-dia
carícias na terra
hora do néctar –
o beija-flor e a papoula
suspensos no ar
chuva de verão
esparge no meio-dia
carícias na terra
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Nua no ar
Jorge Bandeira
Sabe aquela onda que percorre teu corpo nu e que te enche de luz?
São artefatos de imagens primordiais, de tempos remotos
E brilham feito uma candeia de estrelas na galáxia de tua pele
Algo como uma transmissão que te acompanha desde teu nascimento
Quando ainda eras uma esfera que buscava um encontro de pulsar
E mesmo assim a nudez te arremessou a este planeta e entre choro e surpresa
Te acalentaram nas primeiras fontes de tua energia crescente
Nudez que te fez caminhar e se banhar e perceber que o olhar te consumiu
Por este motivo despiu-se um mundo e profundo tu o sentiu submergido
E as variações de tuas andanças te fizeram retornar ao nascedouro de Sol
Somente a felicidade não foi possível nesta visão
Nu nunca negarás teu opositor pois ele te pertence
Nus seremos algo que se completa na infinidade
De um raio de Sol que penetra os poros
E que não reflete nada além do próprio ser
Nudez não se traduz: RELUZ.
(Na inspiração da poeta Patti Smith)
Sabe aquela onda que percorre teu corpo nu e que te enche de luz?
São artefatos de imagens primordiais, de tempos remotos
E brilham feito uma candeia de estrelas na galáxia de tua pele
Algo como uma transmissão que te acompanha desde teu nascimento
Quando ainda eras uma esfera que buscava um encontro de pulsar
E mesmo assim a nudez te arremessou a este planeta e entre choro e surpresa
Te acalentaram nas primeiras fontes de tua energia crescente
Nudez que te fez caminhar e se banhar e perceber que o olhar te consumiu
Por este motivo despiu-se um mundo e profundo tu o sentiu submergido
E as variações de tuas andanças te fizeram retornar ao nascedouro de Sol
Somente a felicidade não foi possível nesta visão
Nu nunca negarás teu opositor pois ele te pertence
Nus seremos algo que se completa na infinidade
De um raio de Sol que penetra os poros
E que não reflete nada além do próprio ser
Nudez não se traduz: RELUZ.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Estante do tempo
Rio de sono
Ernesto Penafort (1936-1992)
este é um rio de sono,
senhora.
este é um rio sem barcos
e tem toda feita em arcos
sua submersa flora.
pois este mesmo rio,
senhora,
que além de ser de sono
e sentir-se inavegável
(como se fosse de outono
sua eterna bruma de cobre)
é também um rio nobre.
inobstante ser pobre
de qualquer navegação,
pulsa nele, quando cai,
o dia, no fim do olhar,
o sol – seu coração.
Ernesto Penafort (1936-1992)
este é um rio de sono,
senhora.
este é um rio sem barcos
e tem toda feita em arcos
sua submersa flora.
pois este mesmo rio,
senhora,
que além de ser de sono
e sentir-se inavegável
(como se fosse de outono
sua eterna bruma de cobre)
é também um rio nobre.
inobstante ser pobre
de qualquer navegação,
pulsa nele, quando cai,
o dia, no fim do olhar,
o sol – seu coração.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
Minha pátria é minha língua
O morcego
Augusto dos Anjos (1884-1914)
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede...”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Augusto dos Anjos (1884-1914)
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede...”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
sábado, 12 de fevereiro de 2011
Poesia em tradução
Acalanto para Deus menino
Juana Inés de la Cruz (1648?-1695)
Se meu Deus nasceu para penar,
Deixem-no velar.
Se está desvelado por mim,
Deixem-no dormir.
Deixem-no velar:
Não há pena em quem ama,
Como não penar.
Deixem-no dormir:
Sono é ensaio da morte
Que um dia há de vir.
Silêncio, que dorme.
Cuidado, que vela.
Não o despertem, não.
Sim, despertem-no, sim.
Deixem-no dormir.
Deixem-no velar.
(Trad. Manuel Bandeira)
Juana Inés de la Cruz (1648?-1695)
Se meu Deus nasceu para penar,
Deixem-no velar.
Se está desvelado por mim,
Deixem-no dormir.
Deixem-no velar:
Não há pena em quem ama,
Como não penar.
Deixem-no dormir:
Sono é ensaio da morte
Que um dia há de vir.
Silêncio, que dorme.
Cuidado, que vela.
Não o despertem, não.
Sim, despertem-no, sim.
Deixem-no dormir.
Deixem-no velar.
(Trad. Manuel Bandeira)
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
Vila Carmem
Engels Medeiros
(pra casa 7 da velha vila)No próximo segundo vai anoitecer
depois lentamente a noite
cuidará de dissipar meus sonhos
Hoje eu dormirei cedo!
Sonharei selva e rio-mar
e também com a vila carmem
do velho camilo gil
já morto fodido e fedido
como sempre foi por toda a vida
depois ainda sonharei mangas
que nunca foram vermelhas
por falta de ideologia
sonharei muros e papagaios
no maior deles
subirei aos céus
até despertar
bruscamente
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
o povo e o poema
Zemaria Pinto
sobre um poema
que não seja propriedade particular
sobre um poema/canção de guerra
a clamar
por todos esses soldados
sobre um poema de operários
camponeses, guerrilheiros
sobre um poema em que a fome
tome sua verdadeira forma de fome
sobre um poema concreto
de aço e cimento e queda
sobre um poema de enchente
de seca, de lepra
sobre um poema mendigo
sobre um poema de grito
de espanto
sobre um poema de sangue
de bomba, de pus e de raça
sobre um poema menor
de índio, de puta e de dor
sobre um poema que cale
a voz do generalato
sobre um poema oprimido
espremido, pichado
sobre um poema sem classes
é sobre esse poema que marcha o meu povo.
(1977)
sobre um poema
que não seja propriedade particular
sobre um poema/canção de guerra
a clamar
por todos esses soldados
sobre um poema de operários
camponeses, guerrilheiros
sobre um poema em que a fome
tome sua verdadeira forma de fome
sobre um poema concreto
de aço e cimento e queda
sobre um poema de enchente
de seca, de lepra
sobre um poema mendigo
sobre um poema de grito
de espanto
sobre um poema de sangue
de bomba, de pus e de raça
sobre um poema menor
de índio, de puta e de dor
sobre um poema que cale
a voz do generalato
sobre um poema oprimido
espremido, pichado
sobre um poema sem classes
é sobre esse poema que marcha o meu povo.
(1977)
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
Minha Manaus
David Almeida
Minha Manaus dormiu de touca
Mas não é louca
Tão pouco pouca
Oca de ocos
Quintal de tocos
De muitos homens poucos
Mas nem todos trôpegos
Taba de transe
Transa de lance
Trama de alcance
Minha Manaus dormiu ingênua
Acordou nua
Volúvel de lua
Nem pensar que é tua
Talvez quarto crescente
Minguando na mente
Suado corpo carente
Minha Manaus é minha e de alguém
Mas não é de ninguém
Cobra o cobre que lhe convém
Não tem culpa
Nem desculpa
A sedução lhe ocupa
Meu coração disparado
Triste amor derramado
Sangra sua dor calado
Minha Manaus dormiu de touca
Mas não é louca
Tão pouco pouca
Oca de ocos
Quintal de tocos
De muitos homens poucos
Mas nem todos trôpegos
Taba de transe
Transa de lance
Trama de alcance
Minha Manaus dormiu ingênua
Acordou nua
Volúvel de lua
Nem pensar que é tua
Talvez quarto crescente
Minguando na mente
Suado corpo carente
Minha Manaus é minha e de alguém
Mas não é de ninguém
Cobra o cobre que lhe convém
Não tem culpa
Nem desculpa
A sedução lhe ocupa
Meu coração disparado
Triste amor derramado
Sangra sua dor calado
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Estante do tempo
Da noite do rio
Alcides Werk (1934-2003)
Nesta noite sem medida
eu todo banhado em sombras
fugi de casa, fugi
para o branco desta praia,
como se a aurora que busco
neste rio se afogou.
Preciso acordar o rio
que está cansado de viagens
para ver se me alivio
da morte que trago em mim
com falas de cobras-grandes
e de mortos pescadores
que fazem parte do rio
e estão assim como estou.
No céu repleto de nuvens
há nuvens cheias de chuva:
por que não chove? Quisera
molhar-me dentro da noite,
tremer de fome e de frio
por remissão dos meus males
deixar meu corpo vazio
guardando o castelo inútil
e partir buscando a aurora
para que venha depressa
banhar as águas do rio
e minha face marcada
dos ventos com que lutei.
Alcides Werk (1934-2003)
Nesta noite sem medida
eu todo banhado em sombras
fugi de casa, fugi
para o branco desta praia,
como se a aurora que busco
neste rio se afogou.
Preciso acordar o rio
que está cansado de viagens
para ver se me alivio
da morte que trago em mim
com falas de cobras-grandes
e de mortos pescadores
que fazem parte do rio
e estão assim como estou.
No céu repleto de nuvens
há nuvens cheias de chuva:
por que não chove? Quisera
molhar-me dentro da noite,
tremer de fome e de frio
por remissão dos meus males
deixar meu corpo vazio
guardando o castelo inútil
e partir buscando a aurora
para que venha depressa
banhar as águas do rio
e minha face marcada
dos ventos com que lutei.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Minha pátria é minha língua
Se acaso uma alma se fotografasse
Euclides da Cunha (1866-1909)
Se acaso uma alma se fotografasse
De modo que nos mesmos negativos
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;
E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos.
Poeta! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando, deste grupo bem no meio,
Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente
Destes sujeitos, é precisamente
O mais triste, o mais pálido e o mais feio...
[Manaus, 2 de fevereiro de 1905]
Euclides da Cunha (1866-1909)
Se acaso uma alma se fotografasse
De modo que nos mesmos negativos
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;
E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos.
Poeta! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando, deste grupo bem no meio,
Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente
Destes sujeitos, é precisamente
O mais triste, o mais pálido e o mais feio...
[Manaus, 2 de fevereiro de 1905]
(Este poema foi escrito sobre uma fotografia, onde Euclides posa com o grupo de trabalho que iria explorar o rio Javari. O poema tem pelo menos quatro versões, com sutis variantes. Escolhemos a que foi remetida a Rodrigo Octavio, diretor da revista Renascença, que o publicou, juntamente com a foto, em 1906.)
sábado, 5 de fevereiro de 2011
Poesia em tradução
Quatro haicais
Matsuo Bashô (1644-1694)
Quatro horas soaram.
Levantei-me nove vezes
para ver a lua.
Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me.
Prazer de estar só...
A cigarra... Ouvi:
nada revela em seu canto
que ela vai morrer.
Quimonos secando
ao sol. Oh aquela manguinha
da criança morta!
(Trad. Manuel Bandeira)
Matsuo Bashô (1644-1694)
Quatro horas soaram.
Levantei-me nove vezes
para ver a lua.
Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me.
Prazer de estar só...
A cigarra... Ouvi:
nada revela em seu canto
que ela vai morrer.
Quimonos secando
ao sol. Oh aquela manguinha
da criança morta!
(Trad. Manuel Bandeira)
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
Romance
Marcos Ferreira
Hoje eu me sinto imensamente triste,
e triste tudo em minha vida eu sinto.
Já não mais canto como já me ouviste
cantar feliz o meu querer distinto...
Nada mais resta e nada mais existe
além das cinzas desse amor extinto.
O tempo agora, com seu dedo em riste,
é tão diverso quanto mais sucinto.
Não há mais nada para nos dizermos.
A nossa história se resume agora
a um calhamaço de sonhos enfermos.
E assim se acaba tudo o que vivemos.
Nós dois que fomos tanta coisa outrora,
nada mais somos, nada mais seremos.
Hoje eu me sinto imensamente triste,
e triste tudo em minha vida eu sinto.
Já não mais canto como já me ouviste
cantar feliz o meu querer distinto...
Nada mais resta e nada mais existe
além das cinzas desse amor extinto.
O tempo agora, com seu dedo em riste,
é tão diverso quanto mais sucinto.
Não há mais nada para nos dizermos.
A nossa história se resume agora
a um calhamaço de sonhos enfermos.
E assim se acaba tudo o que vivemos.
Nós dois que fomos tanta coisa outrora,
nada mais somos, nada mais seremos.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
De longe
Renato Augusto Farias de Carvalho
Todos os dias
navego a meninice baré
molhado de um sol ardente
feito pimenta-murupi.
Renovo o velho berço da paz,
nas coxas quentes que profanei.
Não existe no meu canto
nada mais falso que o recato,
libelo inocente,
canto caboclo de amor.
Aqui me navego por inteiro
num imenso amazonas de saudade.
Todos os dias
navego a meninice baré
molhado de um sol ardente
feito pimenta-murupi.
Renovo o velho berço da paz,
nas coxas quentes que profanei.
Não existe no meu canto
nada mais falso que o recato,
libelo inocente,
canto caboclo de amor.
Aqui me navego por inteiro
num imenso amazonas de saudade.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
Dabacuri – da natureza das coisas 5
Zemaria Pinto
a rã mitológica
já não quer saber de tanques
no azul da piscina
rã bashoniana
não percebe meu espanto:
brinca na piscina
a rã mitológica
já não quer saber de tanques
no azul da piscina
rã bashoniana
não percebe meu espanto:
brinca na piscina
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Retratos em preto e branco da primeira infância – Retrato n° 2
Inácio Oliveira
Quando chovia, as árvores
(em silêncio e secretamente)
iniciavam o milagre
das frutas.
Nós, os moleques, jogávamos bola
na grama molhada do pasto.
As cigarras encompridavam as tardes.
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