Amigos do Fingidor

sábado, 31 de outubro de 2009

Auguste Leloir (1809-1892)

Homère.

Poesia em tradução

Correspondências
Charles Baudelaire (1821-1867)


A Natureza é um templo onde vivos pilares
Podem deixar ouvir confusas vozes: e estas
Fazem o homem passar através de florestas
De símbolos que o vêem com olhos familiares.

Como os ecos além confundem seus rumores
Na mais profunda e mais tenebrosa unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Harmonizam-se os sons, os perfumes e as cores.

Perfumes frescos há como carnes de criança
Ou oboés de doçura ou verdejantes ermos
E outros ricos, triunfais e podres na fragrância

Que possuem a expansão do universo sem termos
Como o sândalo, o almíscar, o benjoim e o incenso
Que cantam dos sentidos o transporte imenso.

(Trad. Jamil Almansur Haddad)

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Paul Sortet (1905-1966)

Female nude.

Atabaques, violas e bambus

Paulo César Pinheiro


Foi depois de cruzar todo o oceano,
De chapéu, borzeguim e arcabuz,
Que pisava no chão de Santa Cruz
O aventureiro povo lusitano.
Veio junto com ele o africano,
Com seus cantos e danças e tabus,
Mestiçando-se, aqui, com os índios nus
Que cruzaram com o branco desumano.
Todos eles tocavam, todo ano,
Atabaques, violas e bambus.

Terra bela de araras e tucanos,
Capivaras e antas e tatus,
Papagaios, macacos e nhambus,
E outros tantos milhares de bichanos,
Fascinando zulus e alentejanos,
Sob um sol tropical de céus azuis.
E eram jongos, torés e caxambus
Pra afastar a tristeza e os desenganos,
Cantos religiosos e profanos,
Atabaques, violas e bambus.

Era duro o trabalho cotidiano
Com os negros cortando os babaçus,
Índios caçando as pacas e os jacus,
Sob o chicote do branco tirano,
Mas por cima de todo e qualquer dano
Os escravos chamavam seus vudus,
Com seus sambas e seus maracatus,
Capoeira, ijexá, coco praiano,
Esse som primitivo e quase insano,
Atabaques, violas e bambus.

Caravelas chegando, a todo pano,
Com gente arrebanhada em randevus,
Só demônios, satãs e belzebus,
Toda a corja pior do subumano,
Matador de aluguel, ladrão, cigano,
Pra cruzar por aqui os seus Exus
Com Iracemas, Cecis, Paraguaçus,
Alastrando doenças de mundano,
Tudo no ritmo afro-brasiliano,
Atabaques, violas e bambus.

Se vestiam no mato, salvo engano,
Os crioulos de bata e camisus,
os nativos de penas de ajurus,
invasores de bota a meio-cano,
Pra regalo do rei palaciano
Que, distante, lotava os seus baús,
Mas nas serras os uirapurus
Entoavam seu canto soberano,
Até mesmo pondo em segundo plano
Atabaques, violas e bambus.

Estou quase ficando veterano,
E ao Brasil já estou fazendo jus.
Todos esses poemas que eu compus,
Cada vez mais por eles eu me ufano.
Sou filho de um caboclo paraibano,
Macho da terra dos mandacarus,
E, era minha mãe, que deu-me à luz,
Filha de um pescador, rei do oceano.
Quer, portanto, meu canto, em vez de piano,
Atabaques, violas e bambus.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Frederic Henri Schopin (1804-1880)

Allégorie L'Age D'Or.

Rock and roll

Almir Graça

Olho nas cartas
elas me mostram reis
que eu nunca fui nunca serei

Olho na prata, no ouro,
no ferro, na bola, na lata,
até na fumaça,
onde está você,
que eu não sei?

Traduzo dos astros
meu destino eu escapo
nos meus sapatos
caminhos que não tracei

Chove na rua
na calçada
minha alma molhada
foge de mim
uma lágrima
não sei se chorei

Búzios, I ching, florais
guias, cristais
cadê o amor?
Eu não reconheço mais
Não me reconheço mais

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

James Carroll Beckwith (1852-1917)

Portrait of Evelyn Nesbitt.

Cenas da vida banal 4

(para o Engels Medeiros)


mais que a calva insinuante

mais que a barriga disforme

o que mais me mete medo

na voraz fome do tempo

vem sob a forma inocente

de um branco fio de cabelo

florescendo entre os pentelhos

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Frédéric Soulacroix (1858-1933)

Spring.

Poetaprendiz

Celestino Neto


Eu escrevo torto
por linhas tortas
meus versos rotos
minhas rimas amorfas
eu escrevo torto
por linhas tortas
amante das trevas
devoto da luz
saio da linha
saio da minha
saio da rima
saio de mim
meu lirismo se escondeu atrás do fim
versos meus, confessionários
perdoai as agruras
deste pretenso poeta
sem itinerário
versos meus, guias
acasalai a brandura
deste aprendiz da poesia

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Rich Buckler

The birth of Venus.

Estante do tempo

Morto vivo
Antísthenes Pinto (1929-2000)


fronte caída:
lágrima lavrada
no pedestal da fonte.

além o sobreposto
mar de ossos
esgarçando rastros

– fuzis de gritos!

de bruços:

reencontrar a rota
do meu mapa branco.

fazer-me bala,
deslocar-me uníssono
como um cão de aço.

morto

mais vivo. ___________morto pensante

de bruços:

grave loucura clara:
vivo morto morto vivo.

domingo, 25 de outubro de 2009

Jean-Baptiste Santerre (1658-1717)

Suzanne au bain.

Minha pátria é minha língua

Soneto 20
Diogo Bernardes (1530?-1605?)


Um firme coração posto em ventura,
Um desejar honesto, que se enjeite
De vossa condição, sem que respeite
A meu tão puro amor, a fé tão pura:
Um ver–vos de piedade, e de brandura
Imagem sempre, faz–me que suspeite
Que alguma brava fera vos deu leite,
Ou que nascestes de uma pedra dura.
Ando buscando causa que desculpe
Crueza tão estranha; porém quanto
Nisso trabalho mais, mais mal me trata,
Donde vem que não há quem nos não culpe;
A vós, porque matais quem vos quer tanto;
A mim, que tanto quero a quem me mata.

sábado, 24 de outubro de 2009

Robert Fowler (1853-1926)

Aphrodite.

Poesia em tradução

Annabel Lee
Edgar Allan Poe (1809-1849)


Há muitos anos, há distantes, longos anos,
______Num certo reino à beira-mar,
Vivia alguém, – uma donzela, – Annabel Lee,
______(Vocês se devem recordar)
Alguém que só pensava em mim, e a quem eu tinha
______Amor imenso, amor sem par.

Eu era criança, e ela era criança, – Annabel Lee! –
______Naquele reino à beira-mar!
Mas nos amávamos com um amor que era, na terra, mais que Amor:
______(Não o podeis avaliar!)
Amor que os anjos, seus irmãos, de asas de neve,
______Olhavam do alto, a cobiçar.

Por isso foi que há muito tempo, há muito tempo,
______Naquele reino à beira-mar,
Soprou um vento, – um vento frio, – e Annabel Lee
______Sentiu-se, aos poucos, esfriar...
E então vieram seus parentes de alta estirpe,
______Vieram para m'a levar;
E a enclausuraram num sepulcro, – ó dor! ó dor! –
______Naquele reino à beira-mar.

Não eram, os anjos, tão felizes como nós,
______Viviam a nos invejar.
Sim! Foi por isso (toda gente bem o sabe,
______Naquele reino à beira-mar)
Que um vento frio me roubou Annabel Lee,
______Que um vento frio a fez gelar.

Mas nosso amor era mais forte, mais profundo
______Do que o dos outros, neste mundo,
______De mais idade e mais pensar.
E nem os anjos, lá das rútilas estrelas,
______Nem os demônios sob o mar,
Hão de, jamais, em dia algum, as nossas almas
______Uma da outra separar.

Pois nunca, – ó bela Annabel Lee! – sem me trazer sonhos de ti,
______Fulge, de noite, a luz do luar!
Nunca as estrelas, meu amor, despontam no alto, – que o fulgor
______Não sinta, em mim, do teu olhar!
E toda a noite, enamorado, eu vou dormir aí a teu lado,
Ó benquerida! – ó benquerida! – ó minha noiva e minha vida!
______Aí nessa campa à beira-mar,
______Onde ressoa voz do mar!


(Trad. Gondin da Fonseca)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

François-Xavier Fabré (1766-1837)

Oedipus and the Sphinx.

Onda

Antonio Cicero


Conheci-o no Arpoador,
garoto versátil, gostoso,
ladrão, desencaminhador
de sonhos, ninfas e rapsodos.

Contou-me feitos e mentiras
indeslindáveis por demais:
eu todo ouvidos, tatos, vistas,
e pedras, sóis, desejos, mares.

E nos chamamos de bacanas
e prometemo-nos a vida:
Comprei-lhe um picolé de manga

e deu-me ele um beijo de língua
e mergulhei ali à flor
da onda, bêbado de amor.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Charles-Joseph Natoire (1700-1777)

Awakening of Venus.

10 haicais inéditos

Luiz Bacellar


Meus haicais –
voando como satélites
pelo mundo…


As teias de aranha
(rotas bandeiras de guerra)
voam no vasculho.


Grande estardalhaço:
o ouriço da castanheira
estronda no chão.


A porta arrombada…
e os ladrões levaram
toda a vaidade.


Céu pentagramado –
na pauta das nuvens
a clave de sol.


E a bolinha de ping
pong dança no topo
do chafariz da pracinha.


Topo do repuxo –
borboletinha amarela
tenta em vão pousar.


Tentando pousar
no topo do chafariz
a borboleta amarela.


E o Jacques Costeau?
Afrescalhou o nosso
bravo delfim roxo…


Com o ipê florido
uma chuva (e de ouro)
entope a sarjeta.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Philippe Parrot (1831-1894)

Le jugement de Paris.

Cenas da vida banal 3

Zemaria Pinto


a secretária passeia

sua bundinha de louça

entre fones, faxes, ais.

num transe de transamor

fecho os olhos e contemplo

por baixo da pele jeans

a carne dura da moça

manga, manguita, mangaba

delírios frutropicais.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Andrea Schiavone (1515-1563)

Venus and Cupid.

Cenário Primaveril

Gracinete Felinto


No comando da beleza
tomam as rédeas, todas as flores
é o nobre prenúncio
da estação das cores

No contínuo processo néctar
os seres de sabedoria nata
transportam o pólen ao estigma
glorificando, assim, a polinização

E com o murchar das flores
não encerra a trajetória
existe ainda no ovário, o fruto
que, às vezes, substitui o pão

Neste cenário primaveril
espelha-se o ciclo notório
do mecanismo da natureza
que encadeia a vida.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Kazuya Akimoto

Birth of Venus.

Estante do tempo

O Desterrado
Francisco Gomes de Amorim (1827-1891)

Na foz do rio Negro, em 1842

Como são brancas as flores
Deste verde laranjal!
É doce a sua fragrância,
Como a deste roseiral;
Mas têm mais suave aroma
As rosas de Portugal.

O solo destas florestas
O brilhante e o oiro encerra;
São imensos estes rios,
Imensos o vale e a serra;
Porém não têm a beleza
Dos campos da minha terra.

Estes astros são mais belos?
É mais belo o seu fulgor?
Mas luzem no céu do exílio
Não lhes tenho igual amor.
Ai! astros da minha terra
Quem me dera o vosso alvor!

De amores embriagada
A rola suspira aqui;
Com estes vivos perfumes
Tudo ama, folga, e ri!
Mas oh! que tem mais encantos
A terra aonde eu nasci!

Lá era a lua mais linda,
Mais para os olhos as flores;
As noites da primavera
São ali mais para amores;
E nos bosques de salgueiros
Também há meigos cantores.

Oh! não; não é belo o sítio
Do meu desterro infeliz
Onde tudo – a toda a hora –
Que sou proscrito me diz.
Não, não há terras formosas
Senão as do meu país!

domingo, 18 de outubro de 2009

Franz Eybl (1806-1880)

Girl Reading.

Minha pátria é minha língua

Dizendo-me uma pessoa que eu nunca havia de ser feliz
Marquesa de Alorna (1750-1839)


Esperanças de um vão contentamento,
Por meu mal tantos anos conservadas,
É tempo de perder-vos, já que ousadas
Abusaste de um longo sofrimento.

Fugi; cá ficará meu pensamento
Meditando nas horas malogradas,
E das tristes, presentes e passadas,
Farei para as futuras argumento.

Já não me iludirá um doce engano,
Que trocarei ligeiras fantasias
Em pesadas razões de desengano.

E tu, sacra Virtude, que anuncias,
A quem te logra, o gosto soberano,
Vem dominar o resto dos meus dias.

sábado, 17 de outubro de 2009

Alfred Tripet (1861-1882)

Apparition de Vinvela a Shilric-Le-Chasseur.

Poesia em tradução

San Juan de la Cruz (1542-1591)


Um pastor solitário e contristado
distante do prazer e do contento,
em sua pastora posto o pensamento,
o peito tem do amor muito magoado.

E não chora por tê-lo o amor ferido,
nem pela dor de ver-se maltratado,
mesmo que o coração tenha magoado;
mas chora por pensar que está esquecido.

Eis que só de julgar-se esquecido
pela bela pastora, de dor cheio
deixa-se maltratar em solo alheio,
o peito pelo amor muito ferido.

Disse então o pastor: “Fui ofendido
por quem de meu amor aceita a ausência,
e já gozar não quer minha presença,
o meu peito de amor muito ferido!”

Após longo momento ei-lo erguido
na árvore onde abriu seus belos braços,
e morto lá ficou com fortes laços,
o peito pelo amor muito ferido.

(Trad. Maria Salete Bento Cicaroni)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Paul Delaroche (1797-1856)

Hemicycle of the Ecole des Beaux-Arts.

Nunca mais serei eu mesmo

Luís Antonio Cajazeira Ramos


Cada último poema é o último, pois
nada há mais a dizer depois, pra nunca mais,
que sempre, se me entrego ao verso, é totalmente
— mais nada sobra em mim, vazado, mais que sempre.

Toda em cada verso, a poesia (que mistério)
nunca se esgota ou esvai, pois, com seu próprio lastro,
está pra sempre inteira, pronta a um novo verso
— e cada novo poema é o novo! ...e eu sou o resto.

Se me dou por inteiro, o que sobra de mim?
Se me fluí no verso, perdi-me de vez...
— vez que, na alma do verso, só está quem o lê.

Sendo assim (que destino, esse meu!), pra me ter,
devo ler-me a mim mesmo no verso que fiz
— eu, que tenho essa imensa poesia a viver!...

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

François Gérard (1770-1837)

Madame Récamier.

Diurno

Jacob Ohana


Na multidão meus múltiplos se afligem
roçam na valsa torta que os empurra.
O pirata já foi o alienígena,
a colombina dança taciturna.

A máscara de osso, o pé de vidro,
a gola prende o ar de arlequim.
Solta-se a fantasia, o seu ruído,
na mímica de cada alegoria.

Bebemos. Nossa orgia é uma lacuna,
de onde saímos para abrir espaço
ao estandarte hostil da nossa fauna.

Passamos uns aos outros a ironia
das cores mutiladas nesse encontro
na transfiguração da fantasia.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Emile Vernon (1872-1919)

Among the blossoms.

Cenas da vida banal 2

Zemaria Pinto


depois de afogar as mágoas

em alcalóides diversos

dispostos em vário grau

exorcizo a depressão

tomando guaranamel

com hóstias de sonrisal

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Rodolfo Amoedo (1857-1941)

Marabá.

Senhora devastada

Dâmea Mourão


De amarelas nuvens em diáspora
faço pungente a minha alvorada
em toques tortos de pés alados
faço serpente minha caminhada

Sou amarelo ser sem diástole
diante da mata queimada
Há troncos sem seiva, cortados
diante da muda levada

E segue a vida derrubada
E segue a morte levantada
da verde senhora, nossos ombros

Sombras na verdadeira riqueza
atacam a derradeira beleza
que ainda resta dos escombros

Sob esse seio
sou serva em sístole
Sigo sentindo
o sussurro sofredor:

Salvem o grito de socorro
sai sangue quando
cega serra assalta
a senhora
seiva deste mundo
– surdo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

William Etty (1787-1849)

The birth of Venus.

Estante do tempo

Últimos momentos de D. Quixote
Paulino de Brito (1858-1919)
Morir cuerdo y vivir loco...
Cervantes – El Quijote

À cabeceira o bacharel e o cura;
Sancho, todo choroso, aos pés da cama;
o barbeiro, a sobrinha e a velha ama
além um pouco, em lúgubre postura.

Despojado de lança e de armadura,
eis como aquele herói de eterna fama,
já vendo a Morte, que a terreiro o chama,
vai dar fim à sua última aventura.

Lembra-se então do tempo em que ansioso
de acometer gigantes, pavoroso
procurava-os montado em Rocinante.

Lembra e sorri: por fim reconhecera
que no mundo de anões, em que vivera,
ele só, D. Quixote, era o gigante!

domingo, 11 de outubro de 2009

François Léon Benouville (1821-1859)

Esther.

Minha pátria é minha língua

Dois impossíveis
Laurindo Rabelo (1826-1864)


Jamais! quando a razão e o sentimento
Disputam-se o domínio da vontade,
Se uma nobre altivez nos alimenta
Não se perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe
Quase nas ânsias do lutar terrível;
A paixão o devora quase inteiro,
Devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! a chama crepitante lastra,
Em curso impetuoso se propaga;
Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
É inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto,
Em que não queima já, mas martiriza,
Em que tristeza branda e não loucura
À razão se sujeita e se harmoniza.

É nesse ponto de indizível tempo,
Onde por misterioso encantamento,
O sentir à razão vencer não pode,
Nem a razão vencer ao sentimento.

No fundo de noss’alma um espetáculo
Se levanta de triste majestade:
Se de um lado a razão seu facho acende
Do outro os lírios seus planta a saudade.

Melancólica paz domina o sítio,
Só, da razão o facho bruxuleia,
Quando por entre os lírios da saudade
Do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dois limites então na atividade
Conhece o ser pensante, o ser sensível:
Um impossível – a razão escreve,
Escreve o sentimento outro impossível!

Amei-te! os meus extremos compensaste
Com tanta ingratidão, tanta dureza,
Que assim como adorar-te foi loucura,
Mais extremos te dar fora baixeza.

Minh’alma nos seus brios ofendida
De pronto a seus extremos pôs remate,
Que, mesmo apaixonada, uma alma nobre,
Desespera-se, morre, não se abate.

Pode queixar-se inteira f’licidade
De teu olhar de fogo inextinguível,
Acabar minha crença, meu futuro,
Aviltar-me? jamais! É impossível!

Mas a razão, que salva da baixeza
O coração depois de idolatrar-te,
Me anima a abandonar-te, a não querer-te:
Mas a esquecer-te, não: sempre hei de amar-te!

Porém amar-te desse amor latente,
Raio de luz celeste e sempre puro
Que tem no seu passado o seu presente,
E tem no seu presente o seu futuro;

Tão livre, tão despido de interesse,
Que para nunca abandonar seu posto,
Para nunca esquecer-te, nem precisa
Beber, te vendo, vida no teu rosto;

Que, desprezando altivo quantas graças
No teu semblante, no teu porte via,
Adora respeitoso aquela imagem
Que delas copiou na fantasia.

sábado, 10 de outubro de 2009

Hendrik van Balen (1575-1632)

Minerva among the Muses.

Poesia em tradução

In limine
Eugenio Montale (1896-1981)


Folga se o vento sopra no pomar e o
faz tremer na ondulação da vida;
aqui se afunda um morto
urdume de memórias,
que horto já não é, mas relicário.

Não é um voo este adejar ao sol
e sim a comoção do eterno seio;
vê como se transforma um pobre veio
de terra solitário num crisol.

Ímpeto desta parte do árduo muro.
Se avanças, tens contatos
(tu talvez) com o fantasma que te salva;
aqui vão-se compondo histórias, atos
riscados pelo jogo do futuro.

Procura a malha rota nesta rede
que nos estreita, e pula fora, escapa!
Vai, por ti faço votos — minha sede
será leve, a ferrugem menos áspera...

(Trad.: Ivo Barroso)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Edward Dufner (1872-1957)

Summer evening.

XI

Pedro Cardoso (1890-1952)


A minha Pátria é uma montanha
Olímpica, tamanha!
Do seio azul do Atlântico brotada
E aos astros com vigor arremessada
Pelo braço potente do Criador,
Sobranceia cem léguas em redor.

E tão alta que acima do seu cume
Só o plaustro de Apolo coruscante,
Só o bando estelar de águias de lume
E a mente ousada de um Camões ou Dante!
Como é formosa
E majestosa
A minha amada
Terra natal!

Quer do Sol sob a clâmide doirada,
Quer da Lua sob a lúcida cambraia,
é tão formosa que não tem rival!

Além das nuvens alevantada,
O bravo Oceano a seus pés desmaia!

Para a gloria do mando fê-la Deus
Altiva e forte, generosa e brava:

Assim foram outrora os filhos seus!

Se lhe palpita o coração robusto,
Em derredor tudo estremece logo:

Pálida e fria de pavor a Brava,
E, em ânsias, Santiago e o Maio adusto.
Fala... e as palavras fluem em torrentes
De lavas rugidoras e candentes...

Na verdade, escutai! — chama-se Fogo!

.......................................................
Quando vier, Pátria amada,
A morte p'ra me levar,
Deixa-me a fronte cansada
Em teu seio repousar!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Elisabeth Vigée-Lebrun (1755-1842)

Portrait of Madame de Staël as Corinne.

Onde estão?

Donaldo Mello


Todos os meus, todos.
Encantados roseanamente.

Séculos, perdidos no palácio
do esquecimento
: mortos!

Eles todos, Manuel Bandeira
perguntava, onde estão?

E respondia no poema:
dormindo. Profundamente.

Foi um sonho ou, lúcido,
terei vivido com os meus?

Saltam do caleidoscópio
da memória, vívidos.

Evanescidos nomes
“que se fizieron las
llamas de los fuegos
encendidos”
[1] da amizade.

Clamam, do irreversível,
e inflamam o suplício
da feliz recordação “as
vozes daquele tempo”[2], então.

Hamlet, “sozinho
como só ele”, a
recitar – Ubi sunt?[3]
Ouvindo o sussurro, sente

no interior da consciência,
a voz “daquele
tempo”, a imitar
também nossa voz.

Todos os nossos, todos.
Cantados, ternamente.



[1] Manrique, Jorge, “Coplas” in Augusto Meyer (1902-1970) Ensaios escolhidos (no texto “Pergunta sem resposta”)
[2] Bandeira, M., Profundamente (poema)
[3] Onde estão?

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

George Owen Wynne Apperley (1884-1960)

El espíritu de la viña.

Cenas da vida banal 1

Zemaria Pinto


rito da simples manhã:

entre o mijo e o dentifrício

a noite evola-se amarga

na overdose de hortelã

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Rebecca Alzofon

Hecuba's Child.

Definitivamente...

Catarina Lemes


A raiva me invade
A cólera me consome
O abismo vem e me chama
Sinto o mal, vejo o fim
Está gélido, está suave
Não gosto de viver

Estou amarga, puro fel
A solidão que me persegue
Me alcança, me abraça
Dormir já não consigo
Sinto tão perto o perigo
Irreconhecível no prazer
Não gosto de viver

Me disseram que a vida já foi bela
Me disseram que há quem não sinta dor
Mas o que eu vejo é feiúra, são destroços
Já não sinto frio nem calor,
Pois de mim me abstraí, permaneço no horror
E por nada, e por tudo
Não gosto de viver

Sou o asco, sou fiasco
Nada tenho e nada sou
Sou paradoxo, sou inverdade
E a cruz que carrego
Está repleta de fúria
De penitência e amargor
Sou o medo e a luxúria
E por essas e outras coisas
Não gosto de viver

Tudo já se foi
Até de mim já me perdi
Encerraram as estações
O vazio já se alastrou
Nem vida, nem morte
Azar, castigo ou sorte
O elo se quebrou
Não gosto de viver

A vida é solidão
É dor, é descontrole
A vida é sofrimento, são lágrimas – desaforos.
A vida é injustiça, é pequenez e malandragem
É esperteza, é doença, é uma pseudoliberdade
Entre máscaras a entorpecer
Não gosto de viver

Sou um ser humano aprisionado
E eternamente julgado
Pelos passos de um falso livre arbítrio
...
Cada sorriso é uma mentira,
Cada palavra uma ilusão
É vida é um engano
E com tantos desenganos, preciso logo ir
Pois, definitivamente,
Não gosto de viver.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Salvador Dalí (1904-1989)

Birth of Venus.

Estante do tempo

Pôr-do-sol no Amazonas
Paulo Monteiro de Lima (1925-1951)


O sol pendurado no azul do infinito
– Qual lâmpada enorme que Deus colocou –
Vai lento expirando... morrendo nas sombras
Tal como uma donzela que o noivo enganou.

O sol vai morrendo! Na crina das matas
– Lá onde o pampeiro mil vezes desceu –
A rola soluça carpindo a saudade
Do amante que a bala nos ermos colheu.

O sol vai morrendo! Seus raios vermelhos
Divagam no espaço perdidos... à toa...
Às vezes doirando no espelho das águas
A sombra formosa da garça que voa.

O sol vai morrendo! Nas matas sombrias
Um grande mistério parece cair
E a "Mãe da Seringa" de certo vagueia
Na imensa planície que aguarda o porvir.

O sol vai morrendo! Quem pode no mundo
Tal quadro soberbo com gênio pintar?
São estas as cenas que os olhos divisam
E à alma só resta sentir e calar.

O sol vai morrendo! E a noite formosa
Estende na terra seu cândido véu
E a lua divina – qual pálida virgem –
Já brinca de "manja" com as nuvens do céu.

E agora de todo seus raios se apagam
E um grande silêncio nos ermos desceu;
As aves da noite soluçam nos galhos
Talvez com saudades do sol que morreu.

domingo, 4 de outubro de 2009

Alessandro Allori (1535-1607)

Portrait of a Florentine Lady.

Minha pátria é minha língua

Formosa
Maciel Monteiro (1804-1868)


Formosa, qual pincel em tela fina
Debuxar jamais pôde ou nunca ousara;
Formosa, qual jamais desabrochara
Na primavera rosa purpurina;

Formosa, qual se a própria mão divina
Lhe alinhara o contorno e a forma rara;
Formosa, qual jamais no céu brilhara
Astro gentil, estrela peregrina;

Formosa, qual se a natureza e a arte,
Dando as mãos em seus dons, em seus lavores,
Jamais soube imitar no todo ou parte;

Mulher celeste, oh! anjo de primores!
Quem pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem pode amar-te, sem morrer de amores?!

sábado, 3 de outubro de 2009

Frans Floris (1516-1570)

The Judgement of Paris.

Poesia em tradução

Teoria dos conjuntos
Mario Benedetti (1920-2009)


Cada corpo tem
sua harmonia e
sua desarmonia.
Em alguns casos
a soma das harmonias
pode ser quase
repugnante.
Em outros
o conjunto
de desarmonias
produz algo maior
que a beleza.

(Trad. Zemaria Pinto)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

William Blake Richmond (1842-1921)

The Crown of Peace.

Última vontade

Millôr Fernandes


Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson (1767-1824)

Pygmalion and Galatea.

Lembranças

Anisio Mello


Na lembrança ficaste de permeio
a momentos de amor com que te vi.
Foste rosa em meu peito e com receio
a primavera augusta então vivi.

Nos teus lábios agora me tonteio
e na luz dos teus olhos refleti
todo um sonho feliz e agora creio
que o amor é como o beijo que senti.

Este amor que flutua mansamente
e encandece a manhã tão de repente,
mais parece o delírio de um adeus.

Um dia partirei, quem sabe quando?
Lembranças levarei sempre cantando,
com teus lábios impressos sobre os meus...