Amigos do Fingidor

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Gerald Griffin

Black Venus.

Estante do tempo

A Garça

J. Ferreira Sobrinho (1888-?)
Ao velho bardo coestaduano
Quintino Cunha


Por entre capinzais, entre um juncal florido,
defrontei, cismarenta, uma garça alvadia...
Agora, contemplava o espaço indefinido...
Depois, no espelho-d’água, a quieta imagem via...

Perto em perto, em seu bico, a piaba luzidia,
nos espasmos da morte, o dorso bipartido,
traspassada de dor, coitada! estremecia,
para não volver mais ao lago seu querido...

Enublou-se a atmosfera. Um rouco vendaval
soprou do Norte ao Sul. Veio a tarde, de manso...
E a garça, sempre ali, no plácido remanso

do lago, a refletir, no alvíssimo cristal,
a impecável brancura, evocada, esquecida,
a alma humana enfrentando os temporais da vida...

domingo, 30 de maio de 2010

Sebastiano Ricci (1659-1734)

Venere con due putti.

Minha pátria é minha língua

A Cristo S. N. Crucificado estando o Poeta na última hora de sua vida.
Gregório de Matos (1633?-1696?)



Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta piedade* me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada,
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


*Em algumas edições, está anotado clemência.

sábado, 29 de maio de 2010

Jean Cousin, the Elder (1495-1560)

The Rape of Europa.

Poesia em tradução

Carmina Burana – CXCI
(Autor desconhecido)



Arde no meu coração
um fogo permanente,
uma amarga obsessão
domina minha mente;
o homem foi tirado da cinza,
é meu elemento,
a toda hora sou levado,
tal a folha no vento.

Quando o sábio fundamenta
sua nova morada,
na pedra dura a assenta,
a areia não lhe agrada.
Já disseram que me pareço
com as águas do rio,
no mesmo lugar não permaneço,
flutuo anos a fio.

Vagueio feito uma nave
sem leme ou marujo,
sou também igual a uma ave,
pra cá, pra lá, eu fujo;
não me prende uma grade,
não me segura chave,
acho sempre um comparsa
que comigo conchave.

Já sou triste de nascença
vivo atormentado;
mas tudo isso se compensa
no riso debochado.
Vênus tomando o comando,
a luta é atraente,
mas a deusa não empolga
gente indolente.

Gente jovem é outro papo!
A virtude esqueço,
dela sempre me escapo,
ao vício me apresso.
Eu adoro o prazer,
não procuro o bem;
até na hora de morrer
prazeres me retêm.

Distintíssimo prelado,
imploro o seu perdão.
Eu serei um feliz finado,
morro com satisfação
se puder namorar
umas lindas donzelas,
não podendo as afagar,
me resta sonhar com elas.

Não se pode imaginar,
é contra a natureza:
para uma mulher olhar
sem perder a pureza;
o jovem não pode observar
uma lei tão dura,
assim seu corpo irá murchar:
amor é sua cura.

Quem em brasa ardente pisar
não será queimado?
É possível em Pádua morar
sem ficar tarado?
Com o dedo Vênus acena;
jovens, ela caça,
seu olhar os enreda,
seu rosto os enlaça.

Se Hipólito fosse morar
em Pádua, um só dia,
tornar-se-ia o espanto
de toda a freguesia:
é que Vênus deita e rola
ali em toda cama,
à Virtude, todavia,
falta boa fama.

Outra culpa levo ainda:
de ser um jogador.
Mas quando entrego até a roupa,
sendo perdedor,
por fora quase morro de frio,
por dentro me inflamo;
faço belos poemas a fio
lindos versos declamo.

Quero ainda relembrar
minha taberna querida,
sempre quero aqui ficar
agora e toda vida,
até os anjos trazerem do alto,
sua ajuda fraterna
entoando aquele canto:
“Requiem eternam.”

Quero morrer, chegando o dia,
na taberna minha,
ao moribundo não deve faltar
caneca bem cheinha;
o coro dos anjos então trará
esta celeste canção:
“Deus tenha piedade
deste beberrão!”

A lamparina da minha alma
com vinho se acende,
esse néctar ela sorve,
da terra ela ascende;
este vinho da taberna
não tem nenhum rival,
nada a ele se compara
na mesa episcopal.

Muitos poetas querem fugir
longe da multidão,
eles preferem trabalhar
em plena solidão;
noites em branco, em labuta,
não param de trabalhar,
o resultado desta luta
é poesia vulgar.

Fazem jejum e abstinência
esses bandos de rimadores,
eles não sabem das questões,
dos processos, dos rumores;
eles sabem produzir
uma obra imortal
só depois de agonia
e servidão mental.

A Natureza oferece
talentos a cada um;
quanto a mim, não escrevo
um verso em jejum;
pois assim, qualquer moleque
pode me vencer;
fome, sede e jejum odeio
tanto quanto morrer.

A Natureza oferece
a cada um seu dom:
quanto a mim, escrevo versos
bebendo vinho bom;
somente a melhor bebida
que caiba num tonel,
essa sim me inspira
poemas a granel.

Todos os versos que componho
valem o vinho que tomo,
poema bom eu nunca faço
senão depois que como;
o que rimo sem beber
não vale um tostão,
mas após algumas doses
deixo atrás Nasão.

Tão-somente me assiste
a musa da literatura
quando como numa mesa
onde haja fartura;
somente quando o deus Baco
minha sede cura,
é que Febo me inspira
poemas à altura.

Eu mesmo tinha confessado
todos os meus pecados
de que agora me acusam
aqueles seus criados;
mas a si mesmo não acusam
esses delatores,
embora sejam viciados,
ferrenhos jogadores.

Nesta corte, em presença
do senhor prelado
lembro aquele mandamento
por Cristo promulgado:
“Quem nenhuma culpa tiver,”
– não poupe este vate –
“jogue a primeira pedra!”;
peço que me mate.

Todos os crimes que cometi
eu os revelei,
os pecados que nutri
esses já vomitei;
está morto o velho homem,
em casa nova entro,
se os homens julgam a cara,
Deus julga por dentro.

As virtudes, eu cultivo,
o vício me irrita
minha alma renovada
agora ressuscita;
igual a um recém-nascido
o leite puro desejo,
do vão prazer agora fujo
todo mal despejo.

Senhor Bispo de Colônia,
perdoe meu coração,
não se mostre inclemente
a quem lhe pede perdão;
uma penitência imponha
a este confitente,
pode impor um desagravo,
aceito-o contente.

Aos súditos sempre absolve
o rei dos animais,
de algum rancor antigo
não se lembra mais.
Vocês, ajam igualmente,
príncipes da terra,
somente aquele que é clemente
julga e não erra.


(Trad. Maurice van Woensel)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Amedeo Modigliani (1884-1920)

Nu couché les bras croisés derrière la tête.

Sampa

Caetano Veloso



Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
da dura poesia concreta de tuas esquinas
da deselegância discreta de tuas meninas
ainda não havia para mim Rita Lee
a tua mais completa tradução
alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
chamei de mau gosto o que vi
de mau gosto o mau gosto
é que Narciso acha feio o que não é espelho
e à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
nada do que não era antes quando não somos mutantes
e foste um difícil começo
afasto o que não conheço
e quem vem de outro sonho feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te de realidade
porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
da força da grana que ergue e destrói coisas belas
da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
panaméricas de áfricas utópicas, túmulo do samba, mais possível novo quilombo de Zumbi
e os Novos Baianos passeiam na tua garoa
e novos baianos te podem curtir numa boa

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Knut Ekvall (1843-1912)

The Fisherman And The Siren.

Viceversando

Donaldo Mello



Fogem as palavras do poema

quando ele vem por inteiro.

A escrita, como um puçá,

colhe suavemente as ideias

com um jeito matreiro.

Mas o rumor, como uma

gargalhada de humor,

extrai do inteiro um pé.

Fica às vezes capenga

aquilo que fora poema.

Um verso somente

sem trema

o canto da seriema.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Igor Samsonov

Duet.

Dabacuri – amazônica 14

Zemaria Pinto



barcos enfeitados,

bandeirinhas coloridas

– festa de São Pedro



cidade dividida:

boi pra cá, boi pra lá

– junho em Parintins

terça-feira, 25 de maio de 2010

Fred Appleyard (1874-1963)

Pearls for kisses.

Velho pássaro

Miguel Ferreira de Souza
Para Sr. Willian Archer Smith


Um dia, no fim de um voo
pousou em nosso solo
um velho pássaro cansado.
Ele tinha a sapiência dos velhos

a humildade dos simples
e a virtude dos bons...

Foi aprochegando-se de mansinho
para não assustar
e com o dom da experiência
adquirida com o tempo
aterrissou em nossos corações
tão suave que mal sentimos.

Nosso istmo guru do saber
vórtice que a vida trouxe
na hélice do tempo voraz.

E nos levou sem despedida
como deve ser a travessia
no mar negro!

Nosso velho pássaro cansado
virou mistério! Voa com asas
de sonhos nas retinas do impalpável.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Claude Noel

La naissance de Vénus et de la belle Hélène.

Estante do tempo

O beija-flor
Nonato Pinheiro (1922-1994)



Maravilha sem par da natureza,
Que nas plumas ostenta o colorido
Mais belo, mais brilhante e mais sortido
Dentre as aves de mais rara beleza.

Avezinha de grande sutileza,
Outra não há, que tenha conseguido
O equilíbrio do voo interrompido,
Para beijar a flor, suntuosa mesa...

Buffon com suas tintas primorosas
Colocou-o com arte e com fulgor
Entre as flores e as pedras preciosas...

Se a inspiração me desse o ouro e a cor,
Soltaria entre rimas gloriosas,
Azul ou verde, um lindo beija-flor!...

domingo, 23 de maio de 2010

Marc Chagall (1887-1985)

Self-portrait.

Minha pátria é minha língua

Vandalismo
Augusto dos Anjos (1884-1914)




Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas,
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a Imagem dos meus próprios sonhos!

sábado, 22 de maio de 2010

Jean-Léon Gérôme (1824-1904)

Bathseba.

Poesia em tradução

Balada da linda menina do Brasil
Rubén Darío (1867-1916)



Existe um país encantado
No qual as horas são tão belas
Que o tempo desliza calado
Sobre diamantes, sob estrelas.
Odes, cantares ou querelas
Derramaram-se pelo ar sutil
Em gloria de perpétuo abril.
Pois ali a flor preferida
Do canto é Ana Margarida,
Linda menina do Brasil.

Existe um mágico Eldorado
(E Amor como seu rei lá está)
Onde há a Tijuca e o Corcovado
E onde gorjeia o sabiá.
O tesouro divino dá
Ali mil feitiços e mil
Sonhos; mas nada tão gentil
Como o broto de alva incendida
Que se chama Ana Margarida,
Linda menina do Brasil.

Doce, dourada e primorosa
Infanta de lírico rei,
É urna princesa cor-de-rosa
Que amara Kate Greenaway.
Buscará pela eterna lei
O pássaro azul de Tiltyl?
Eia, aboé, sistro, harpa, anafil:
Que hoje Aurora a viver convida
A essa rosa Ana Margarida,
Linda menina do Brasil.

            OFERTA

Princesa em flor, nada na vida,
Por mais gracioso ou senhoril,
Iguala a esta joia querida:
A pequena Ana Margarida,
Linda menina do Brasil.


(Trad. Manuel Bandeira)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Eugène Fromentin (1820-1876)

Centaurs and Centauresses Exercising by Shooting with the Bow.

O lavrador

Hélio Pellegrino (1924-1988)



Se o som do arado em tudo afeito a arar-te
permito que emudeça, é por querer-te
a terra que és alheia, e por amar-te,
ao invés de semear-te, fico a ver-te.

E só por ver-te apalpo o que seria
o lavrar este campo, esta colina,
coroada de orvalho onde, menina,
és mulher de anca rude e lábio frio.

Deixo-te ser quem és, e o deixo tanto,
e com tanto e contido sentimento
que a madura fluência do meu pranto

é o salário do meu contentamento.
E fico a olhar-te, e neste olhar seguimos:
e estando separados nos unimos.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Victor Honoré Janssens (1658-1736)

Io Recognised by Her Father.

O navio

Renato Augusto Farias de Carvalho




Às vésperas e nas tardes longas
cobre-me a fantasiosa imagem do
embarque.
Estou pronto.
O sonho figurado é entregue ao barco dogmático.
Taciturnos gestos de partida e viemos nós,
rio-e-mar...
espalmados na mala e na cabeça pueril
a fábula romanesca do convite: te vejo, grande
cidade, metáfora enigmática ao encontro de
todos os machucados. E contorno a difícil messe
dos tempos sem compasso. Repetem, em mim,
o oráculo e as sílabas do primeiro fado.
Meu navio? Naufragou?
Sobrevive a nostalgia do cais refletindo, em mim,
o entardecer do contrito mar.
E do Negro – rio que ficou,
emoldurando contornos
da minha terra.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Hans Brasen (1849-1930)

Morning Greetings.

sonhando cinema

Zemaria Pinto




deserto
e não havia sol

sépia –
teu vestido azul de sexta era um peixinho de aquário

as nuvens
confundidas com a poeira e a solidão
eram uma paisagem do texas

procurávamos algo e éramos cúmplices. havia em teu rosto uma sombra de medo, mas um frêmito de luzes te percorreu quando chegamos à torre.

àquela sórdida confusão de tons
resultantes dos trabalhos dos ventos
opunha-se a fortaleza de meus músculos:
                                             teu sorriso

uma vez no cume,
                             contemplamos a tempestade

e éramos donos de nosso segredo

terça-feira, 18 de maio de 2010

Eugenio Hermoso (1883-1963)

Estalagmita.

Das dores ou sublingual

Grace Cordeiro




Não, não compreendo a minha lida
Sina algoz, feroz, fútil
Não é túnel nem fuzil
Nem fósforo aceso na escuridão
(lembrança de Érico Veríssimo)

Caminha-se só
Caminha-se nó
Na garganta, o som disfarçado de flecha
No pescoço, o alvo da ideia retilínea

E aquela luz é doce e seca e morta
E aquela escuridão é luz morta
Luzes apagadas, afogadas
Luzes que se foram

Por que entender se nada faz sentido
Por que ser, se somos todos um
Anil, anis, anéis

Sei da lima que corta
O ferro velho:
Enferrujado, enrugado, servil
A guilhotina,
Ferro novo:
Mente aberta, cabeça caída

Luz, escuridão, luz
Descansando no caos
Não há motivo óbvio
Para se descansar
– manter coração e razão –

Há sim...Carmim, jasmim, curumim
Há...Sobrevivência, subversão, subvenção

Subir a escada e não cair
Descer carregando a amada
(Ah! Das Dores)
E voltar íntegro, com as lavas
Eternas da inquietude que lambe
O mel da juventude

Sobreviver para sobreviver
Não para amar, odiar, ler
Escrever, apenas sobreviver
O resto, o reto, o gesto são consequências.

O canto do galo ao meio-dia.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

J. M. Veron

La Naissance de Vénus.

Estante do tempo

O Mestre
Jonas da Silva (1880-1947)



Bato um dia, cansado, à porta da oficina,
No Pont-Vieux, em Florença, uma tarde de maio:
Cinzelando, escandindo uma obra ou um ensaio
Vi B. Lopes. Cellini e Bilac e Bartrina.

Havia em torno a unção da Capela Sistina.
Cruz e Sousa, orgulhoso, olhou-me de soslaio;
Vi Cervantes, cantor do berço de Pelayo,
Victor Hugo – o albatroz, o condor, a águia alpina.

Vi Dante, que desceu do Inferno a funda gorja
E os revéis encontrou nas fogueiras terríveis...
Castro Alves temperava uma espada na forja.

Antero de Quental dialoga com a Glória...
Só B. Lopes me ouviu, dos deuses impassíveis,
– O Mestre dos Brasões, de eviterna memória!

domingo, 16 de maio de 2010

Henri Fantin-Latour (1836-1904)

Le Soir.

Minha pátria é minha língua

Fragmentos sobre Heleura
Sousândrade (1833-1902)




Desde a noite funérea, de tristeza
Heleura está doente. Ara, morrendo,
Nunca perdera as cores do semblante,
Um formoso defunto: “vivo! vivo!”
Gritava a filha p’ra que o não levassem:
“Vivo! vivo!” Prenúncios maus, diziam.
Mas para Ut era crença que, dos túmulos,
Corvos de Odin mandando pelo mundo,
Os mortos melhor cumprem seu desígnios.
Ora, a chorar no tum’lo (Ia, em violetas
Mudada pelo amor), perpétuas meigas
Tornara-se Ut-allah, que o amortalharam.

Fundo silêncio estava dia e noite
Na sombria mansão: de longe em longe,
Como rasgam-se as brisas açoitadas
Por vergônteas, manhãs d’esto, etérea aura
Parecia chamando: Heleura!… Heleura!…
Que ela escutava; e nuns baixinhos ecos
A febre arremedando: He – lê – u – rous…
Heliéiou-urion… Súbito saltava,
Pesar d’Ut e as Armênias vigilantes,
E as seráficas fraldas apanhando,
Nuzinhos pés, a rir toda, irradiava
No aposento a estelífera carreira
Atalanta de luz. E viam nela
A luzente visão dos cintilados
Limões de luz, de luz níveos triângulos
Nessa da cal mortal brancura, o rosto,
O riso, a boca, os olhos brancos, brancos:
E o maternal diamante em pó desfeito
Que vivifica ao cândido diamante,
Torna-a ao leito Ut-allah: “Heleura! Heleura!”

                      ***

                   Heleura

Mirou-se toda; uma áspide a mordera,
Ela o sentiu; fugiu para o aposento
Alcatifado de cravina e de ouro
E onde sonhos levianos não entravam,
Cheiro sentindo de jacintos, vendo
Lábios-luz, verdejantes laranjeiras,
Flores-noivas grinaldas agitando
Sobre um abismo venturoso, em vagas
Como espelhos levando-a, combanidas,
À cristalina limpidez, reférvida
A epiderme num fosfor’ luminoso -
Triângulos! triângulos! Semíramis!
A alvura e o sentimento! anéis da trança,
Quando as faces beijavam-lhe, incendiam.
……………………………………………………….

                     ***

                       Porém, já prontinha
Co’as alvoradas estava Heleura, vendo:
Alta amarela estrela brilhantíssima;
Cadentes sul-meteoros luminosos
Do mais divino pó de luz; véus ópalos
Abrindo ao oriente a homérea rododáctila
Aurora! e ao cristalino firmamento
Cygni – esse par de sóis unidos sempre,
Invisíveis; e que ela via claros
Dadas mãos, em suas órbitas eternas
Qual num lago ideal as belas asas
Por essa imensidade………………

sábado, 15 de maio de 2010

Maurice Denis (1870-1943)

Cupid In Flight Is Struck By The Beauty Of Psyche.

Poesia em tradução

Guitarras desconjuntadas
Kóstas Karyotákis (1896-1928)



Somos guitarras desconjuntadas
por onde o vento, ao passar, desperta
versos, sons de afinação incerta,
nas cordas, cadeias penduradas.

Somos dedos, antenas levantadas
para o caos, incrivelmente alerta.
Suas pontas, ao infinito abertas,
ressoam, mas rompem-se no nada.

Somos difusas sensações vadias
sem esperança de encontrar-se. Temos
nervos em que a natureza se extravia.

No corpo, na memória padecemos.
As coisas nos repelem e a poesia
é o refúgio a que não ascendemos.



(Trad. José Paulo Paes)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Giovanni Demin (1789-1859)

Solomon and the Queen of Sheba.

Visão de Antônio Frederico de Castro Alves numa tarde de maio na rua do Lima

Luiz Carlos Duarte



Depois do mar, o cume das espumas,
Flutuantes espumas da memória
Rasgando o bojo do negreiro imundo.

Antônio Frederico eu te revejo,
O verbo ardente paira permanente
Nesta rua que amaste naufragado
Nos lábios e nos braços de Eugênia.

Tudo é lenda, tudo, nesta hora:
A mesma rua caminho e tua glória
Rebrilha na vidraça da janela,
Na cal das paredes, nada mais.

Uma placa de bronze te assinala,
Um cão vadio urina no asfalto,
Uma menina passa, uma menina
E teu canto me chega lá do alto,
O teu canto me chega luz e paz.

Adormece, Antônio, do teu sono
Estrelas fulgurantes iluminam
O sublime destino do teu povo,
De quem cativo foste, e a liberdade,
Por ti clamada em Deus e agonia,
Agora em nuvens rubras transformou-se.

Depois do mar, no cume das espumas,
Dorme teu sono, Antônio Frederico:
Aqui, comigo, sei: é tarde.
Mas o verbo refaz a liberdade
Nas imagens brotando ao fim da tarde
E nas mãos em trabalho permanece.
E não se esvai, não parte: prevalece,
Na multidão se amplia e se refaz.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Hermann Fenner Behmer (1866-1913)

Reclining Odalisque.

Provérbio

Aldisio Filgueiras




O sol

Não dá mais para ninguém

Risque uma estrela

Acenda

Faça alguma coisa

As facas brilham

As balas

Defenda a sua vida

Defenda a sua vida

O sol

Não dá mais para ninguém

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Hendrik van Balen (1575-1632)

Diana Turns Actaeon into a Stag.

Dabacuri – amazônica 13

Zemaria Pinto



casas submersas,

criação sobre a maromba

– tempo de esperar



latas de cerveja,

corpos estranhos ao rio,

na trilha dos homens

terça-feira, 11 de maio de 2010

Hendrick de Clerck (1570-1629)

The Nuptials of Thetis and Peleus.

Recorrências

Dedé Rodrigues




          I


No sonho submisso
voltavas maculado
e tentávamos recompor
o nosso passado:

– cúmplices do mesmo fracasso.


          II


O abraço que não veio
a mensagem que não recebi:

– aniversário de ausências!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Turi Volanti

La Nascita di Venere.

Estante do tempo

Flor de pedra
Heliodoro Balbi (1876-1918)
Ó voi ch’avete gl’intelletri sani
Mirate la dottrina che s’ascende
Sotto il velame delli versi strani.
Dante


Esta, por ser talhada em pedra fria,
Talvez, senhora, menos vos agrade,
– Talhou-a o fogo ideal da fantasia
No mármore pagão da egrégia Helade.

Um dia o artista, olhando um bloco, sente
A alva cisma dos sonhos a segui-lo,
E, sem pensar, alucinadamente,
Pega do bloco e crava-lhe o anfismilo.

Primeiro, a mão nervosa rasga e aviva
O traço, que o circunda e cinge em torno,
E vê, pasmado, a curva de uma ogiva
Na branca cinzeladura de um contorno.

De novo o bloco escinde e, pontilhando
O centro, ergue o pistilo à luz radiosa,
E exulta, ao ver um sol agonizando
No áureo cariz de um cinto de rosa...

Além, já solta a fibra, o caule desce
Sutil, rolando em balbucio de onda,
E, entre pompas, viceja e transfloresce –
O mais rijo do bloco se arredonda.

Aí, brunindo a aresta branca e lisa
Das folhas (que as talhara iguais a trevo),
Levanta a mão, graciosamente, e frisa
A linha dos relevos num relevo.

E salta à luz, estonteante e presa
Da brancura do mármore risonho,
A flor, que encerra em si toda a beleza
Das nevroses do céu e ânsias do sonho...

– Losna ou meimendro, venenosa ou santa,
Flor! carquísio da vida e urna da morte
(Exclama), teu primor meu braço espanta...
Nunca meu braço mais a pedra corte.

Mas, furioso, o artista nesse instante
Quebra a flor e do mármore renega,
Pois não lhe dera a natureza amante
O estuoso aroma da giesta grega.

A flor de pedra é como o verso: toma
O supremo lavor que o fere e anima,
Mas neste, o sentimento é como o aroma:
Foge rindo e cantando à flor da rima.

Pedis, senhora, um canto... e o plectro firo.
Quero a emoção suprema na beleza...
Por isso o plectro despedaço e atiro
Ao céu o grito de – ÓDIO À NATUREZA!

domingo, 9 de maio de 2010

Karoly Brocky (1807-1855)

Mother and Child.

Minha pátria é minha língua

Ser Mãe
Coelho Neto (1864-1934)




Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
O coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra,
Sobre um berço dormindo! É ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

sábado, 8 de maio de 2010

Lucas Cranach, o Velho (1472-1553)

Charity.

Poesia em tradução

As duas mães
Josephin Soulary (1815-1891)




Numa igreja se encontraram
Duas mães, em certo dia;
Uma entrava, e nesse instante,
Toda cheia de alegria,
Orgulhosa e triunfante,
Levava, chegando ao peito,
Um filhinho a batizar.
Outra, a infeliz que saía,
Levava um filho também...
Oh! mas essa pobre mãe
Levava um filho a enterrar!

Cruzaram-se, a poucos passos,
A que trazia nos braços,
Cheio de vida e conforto,
O filho dos seus encantos,
E a triste, lavada em prantos,
Que seguia o filho morto!

Trocaram ambas o olhar...
Nisto a mãe afortunada
Foi que rompeu a chorar;
Enquanto a desventurada
Que o filho tinha perdido,
– Oh maravilhas do amor! –
No meio da sua dor
Sorriu ao recém-nascido!


(Trad. Bulhão Pato)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Károly Markó, the Elder (1791-1860)

The Toilet of Venus.

Com açúcar, com afeto

Chico Buarque





Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é operário
Vai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê

Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar

Quando a noite enfim lhe cansa
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Auguste Glaize (1807-1893)

The Bath of Venus.

A Coroa de Anunciação XXI

Max Carphentier




A cada pena o amor nos multiplica,

o Senhor, que na fé nos dá repouso.

E como a fé me falta apenas ouso

cantar do que se acaba a luz que fica.

Eu vivo e a selva reina sobre escombros,

e ao nos matarmos desse pó de encantos,

uma ave infinita em nossos ombros

nos ressuscita lázaros de prantos.

Irmãos, a selva salvaremos, quando

nos amarmos primeiro. Eis por que agora,

que de amor falo, acreditais na hora

de amor e selva renascer cantando.

          E porque Deus só por amor nos guia,

          chegas, Amada, e és toda a alegria.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Diego Velázquez (1599-1660)

The Forge of Vulcan.

exercício nº 6

Zemaria Pinto




marandarilho, Januário molda
o passo reticente de insulado
ao marulho pelágio unissonante
– lençóis de sol, de sal, sargaçomar

o olhar marítimo de Januário
mareia a caravela em marrevolto
o quarto soçobrado, o catre imundo
sondando velas, ventos, vendavais

(ó náufrago da navetempo, despe
de tua face hirta de pierrô
as sombras esculpidas pelas horas
de abandono, torpor e negridão)

da etérea gávea o marinheiro brada
um canto sufocado sob as vagas

terça-feira, 4 de maio de 2010

Jean François Bernard (1829-1894)

Fortuna.

Livro mater

Nelson Castro

Para William Archer Smith



Quem sou a resposta
está escrita no livro mater perdido
do tempo perdido que não se perdeu
no universo submerso de mim.

Sou corpo fractal...
componho-me do divisível e do invisível
elemento uno e verso
ao mesmo tempo substantivo verbo
e singular plural.
Sou um e quantum
núcleo de energia vital
partícula da parte orgânica
protoplasma da consciência cósmica.

Mas o que mais gosto de ser...
é ser metáfora de mim.

Sou do mesmo átomo de uma gota d’água
de um grão de areia
de uma folha
de um sopro
de um fio de teia
de um risco de giz.

Assim sou...
Eu-lírico de quem só quer ser feliz.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

J. G. Bertrand

 The rebirth of Venus 2.

Estante do tempo

Mater
Aníbal Teófilo (1873-1915)




Mãe! Doce afeto a cuja sombra venho
Buscar a luz do bem de que me inundo;
Pobre mártir, exemplo alto e profundo
Que em vão quer definir meu fraco engenho;

De outra não sei que traga neste mundo,
Pelos calvários que subido tenho,
Nos frágeis ombros, um tão rude lenho
Dentro de noite de negror tão fundo.

Do que esperavas pelo nascimento,
Do lar sonhado – todo calma e brilho –
Que vazio e tristonho isolamento!

Mãe resignada a quem me curvo e humilho,
Como orgulhoso pago em sofrimento
A pura glória de nascer Teu filho!

domingo, 2 de maio de 2010

Henrietta Rae (1859-1928)

Venus Enthroned.

Minha pátria é minha língua

Chão de estrelas

Orestes Barbosa (1893-1966)



Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações

Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje quando do sol a claridade
Forra meu barracão sinto saudade
Da mulher, pomba-rola que voou

Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
Parecia um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros malvestidos
É sempre feriado nacional

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

sábado, 1 de maio de 2010

Paula Modersohn-Becker (1876-1907)

Portrait of Rainer Maria Rilke.

Poesia em tradução

Mark Alexander Boyd (1563-1601)



De areia a areia, selva a selva eu ando,
Presa da minha frágil fantasia,
Como o vime que o vento vai dobrando
Ou a folha a vogar na ventania.

Um cego pela mão me está levando,
Que uma criança fútil tem por guia
E uma mulher esguia atrai, nadando,
Nada do mar, mais ágil que uma enguia.

Triste de quem, a vida toda a arar,
Só ara a areia e semeia no ar.

Porém mais triste é aquele que se lança,
Movido pelo ímã do mal amar.
No fogo, atrás de uma mulher de mar,
Guiado por um cego e uma criança.


(Trad. Augusto de Campos)