Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de março de 2011

O último post / El último mensaje / Le dernier message / The last post


Bem, espero que o título, afinal, não seja definitivo. Mas, por enquanto, e não sei por quanto tempo, as postagens do blog estarão suspensas. Obrigado a todos que nos visitaram e aos que ainda visitarão.


Bueno, espero que el título no sea definitivo. Pero por ahora, y no sé cuánto tiempo, las entradas de blog serán suspensas. Gracias a todos.


Eh bien, j'espère que le titre n'est pas définitif. Mais pour l'instant, et ne sais pas combien de temps, le blog sera suspendu. Merci à vous tous.


Well, I hope the title is not definite. But for now, and do not know how long, the blog posts will be suspended. Thank you all.


(Trad. Google Translator)



Vincent Van Gogh (1853-1890)

Road With Cypress And Star.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Katsushika Hokusai (1760-1849)

Hakone Lake in Sagami Province.

Antes o mundo não existia

Zemaria Pinto
(para Umúsin Panlõn Kumu e Tolamã Kenhíri)



Quando o mundo inda era nada
Yebá-Buró, não criada
do nada fez os trovões
e os rios e a luz foram feitos
mas o universo perfeito
a humanidade pedia
foi então que ela criou
Yebá-Gõãmu, o criador

Umukosurã-Panami, Umukosurã

Das entranhas da serpente
em canoa transformada
fez-se então a humana gente
e a terra foi povoada

Tukano, Tapuia, Desana
Baniwa, Maku, Siriana
entre si distribuíram
as riquezas do Trovão

Umukosurã-Panami, Umukosurã

Quando o branco apareceu
tendo ao lado o missionário
cumpriu-se o ciclo esperado
inventou-se o tal pecado
e nunca mais houve paz
nos caminhos da canoa

Com o lento passar do tempo
toda forma se transforma:
o um no todo se enforma
e o todo se enforma em um
– o um do nada criado
ao todo um dia retorna
fundindo a fôrma com a forma
e o todo se torna um

Umukosurã-Panami, Umukosurã

terça-feira, 1 de março de 2011

Alex Alemany

Sueños de adolescente.

A primeira vez que nos amamos

João Sebastião
(para Angélica de Lis, doce memória)



A primeira vez que nos amamos
senti vibrar teu corpo de alegria
apesar de uma lágrima furtiva
e do teu rosto contraído
numa singela expressão de dor.

A primeira vez que nos amamos
havia música barroca no ar
pontuando a estranha melancolia
e a fortuita liberdade
que nem tu nem eu sabíamos explicar.

A primeira vez que nos amamos
e que nossos corpos se envolveram com paixão
nem a dor nem o sangue ou o suor
macularam a inocência de um encontro
forjado pela febre do desejo mútuo.

A primeira vez que nos amamos
havia pássaros nos laranjais
trilando melodias merencórias
um tom acima do coro de anjos
que em nossa cela nos abençoava.

A primeira vez que nos amamos
um poema em teu corpo eu tatuei
com minhas mãos meus lábios e meu sexo
e te amei como nunca amei ninguém
e tu me amaste como Eva amou Adão.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Billy Nunez

Birth of Venus.

Estante do tempo

Estudo IX
Alcides Werk (1934-2003)




Fez-se uma curta pausa. E a noite baça
estendeu seus lençóis sobre as cidades.
Ventos frios de morte andavam soltos,
e formas embuçadas destruíam

restos vagos de luz. Alguns senhores
guardaram pressurosos seus haveres
para a estranha vigília dos sonâmbulos.
Nas sombrias e extensas avenidas

as multidões dos homens deserdados
prosseguiram seus ritos no silêncio
de uma noite sem tempo. E os anciãos

das várias tribos foram convocados
para o mister pacífico das aras
e a glorificação das horas mortas.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Domenico di Michelino (1417-1491)

Dante and the Three Kingdoms.

Minha pátria é minha língua

A máquina do mundo

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)



E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Lambert Sustris (1515?-1584?)

Venus and Cupid.

Poesia em tradução

Soneto LXXIII
William Shakespeare (1564-1616)




Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.
Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.
Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logo
Do quanto que o nutriu ora esgotado.
      Sabê-lo faz o teu amor mais forte
      Por quem em breve há de levar a morte.


(Trad. Ivo Barroso)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Otto Lingner (1856-1917)

Reclining Nude Woman.

Carta a um jovem poeta

Marco Catalão



Todos os jovens poetas são
ridículos.
Não seriam jovens poetas se não fossem
ridículos.

Também fui em meu tempo um jovem poeta,
como os outros,
ridículo.

Os jovens poetas, se são jovens, e ainda por cima poetas,
têm de ser
ridículos.

Mas, afinal,
só as criaturas que nunca escreveram
versos na juventude
e nunca os publicaram em revistas que nunca duravam mais que três números
é que são
ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
sem dar por isso
poemas exaltados comovidos rebeldes
e ridículos.

A verdade é que hoje
as minhas memórias
desses poemas
é que são
ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
como os sentimentos esdrúxulos,
como os quarentões cheios de escrúpulos,
são naturalmente
ridículas.)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Ivar Kamke (1882-1936)

Nude models.

Balada das 13 Casas

Luiz Bacellar




São 13 casas unidas,
são 13 casas nascidas
no mesmo lance de rua,
com as mesmas paredes-meias,
os mesmos oitões de taipa,
a mesma fachada nua
e as mesmas janelas tristes
de 13 casas na rua.

Unidas? Bem... desunidas
nos problemas dos que habitam
suas paredes estanques;
mas juntas, pelo beiral,
pelos caibros de itaúba,
pelas telhas de canal
de 13 casas na rua.

E as famílias que moravam
(ainda algumas demoram)
nos tempos do berimbau?
Lembro: Cabelo-de-Fogo,
família Boca-Medonha,
a família Macaxeira
e a família Bacurau
das 13 casas da rua.

Das 13 só restam 11:
2 foram demolidas
pra dar lugar a um convento
de padres redentoristas
que, não contentes com isso,
de Tocos para Aparecida
mudaram o nome do bairro
das 13 casas da rua.

Numa delas eu vivi,
numa outra me criei,
e talvez venha a morrer;
quanto às outras, pelos donos
foram sendo reformadas,
gente próspera e “elegante”
como atestam as fachadas
das 13 casas da rua.

Apenas esta onde moro
de casa velha coroca
conservou a identidade:
ainda usa arandelas,
calhas, tabiques, escápulas,
com manias e pirraças
de quem “viveu” outra idade
das 13 casas da rua.

Senhora Dona Donana                                                 (Ofertório)
(Anna Henriqueta da Cunha),
ex-dona do quarteirão
irmão no estilo e argamassa,
a vós dedico e consagro
esta balada sem graça
em memória das antigas
fachadas, já derrubadas,
das 13 casas da rua.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Manoel Santiago (1897-1987)

O curupira.

noturno

Zemaria Pinto



noite
o sol ilumina o oriente
a lua cheia incendeia a noite dos trópicos
a luz elétrica transborda pelas ruas
o mercúrio das praças acabou

desacatando todas as possibilidades prováveis
um disco voador pousa no alto da torre do relógio municipal

às 9 horas da noite
todos os namorados estão de línguas dadas
os casados discutem o orçamento familiar
os mais velhos contam estórias
crianças brincam de roda
homens verdes passeiam nas ruas
bebem chope, vão ao cinema

uma guerrilheira assassina um oficial da armada
no portão do cemitério cumprem-se obrigações religiosas
nos jardins do cemitério, por entre as mangueiras
casais adolescentes acariciam a noite
o tempo estaciona para os bêbados
(ontem? hoje?)
na falta de um lugar para amar
pernas entrecruzam-se nos bancos da praça escura

meia-noite
o o. v. i. levanta voo
vampiros devoram a cidade

a esta hora todas as mães estão dormindo
todos os seios estão rígidos
todas as mãos estão suadas
todos os soldados estão atentos
todos os peitos estão arfando
todas as pernas estão cansadas
todos os bêbados estão chorando
– mulheres e homens, todos de pé!

no céu constelações faíscam
uma virgem suicida-se
outra mulher chora sua insônia
um marido flagra um adultério
um vira-latas morde a perna de um guarda-noturno
um pederasta mata uma prostituta
uma missa negra é celebrada
um cientista descobre uma fórmula
um louco mastiga uma rosa
uma criança nasce na calçada
rompem da noite todos os gritos
fogem da cara todos os medos
– a humanidade quer dormir!

um galo canta
a lua já desapareceu por detrás dos armazéns do cais
as mulheres, as meninas da praça agora vão dormir
– também uma mulher insone –
os bêbados apressam-se para o trabalho
na casa funerária não houve um minuto de descanso

neste momento,
independente de todos os calendários e relógios
apenas um fato pode ser dito consumado:
o sol já voltou do oriente

                                         (1975)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Shaun Ferguson

Blue room.

Angústia

Dedé Rodrigues
...Confesse a si mesmo se (...)
morreria caso fosse proibido de escrever.
(R. M. Rilke)


O que me mantém viva
é a pena que se fixou em minhas mãos
o que me impele a continuar lúcida
é a certeza de que posso ser mais
do que em verdade sou...

O início de tudo
o ventre materno
se me apresenta hoje
nestas páginas
que insisto em escrever:

versos sem Poesia,
estilhaços da Solidão.

Porque tu és a estrada derradeira
porque és tu minha estrela, meu guia
assim eu te quero, assim:

turbilhão de angústias
vento, tempestade!

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Hananiah Harari (1912-2000)

Birth of Venus.

Estante do tempo

Papéis velhos... roídos pela traça do Símbolo
Maranhão Sobrinho (1879-1915)



Primeira folha


Velhos papéis... de versos. São pedaços
da minhalma, batidos pelo vento,
como as folhas do outono... Guardam traços
de um tempo, que passou, sem pensamento...

Preso nalgema dos teus alvos braços
teci-os; cada um lembra um momento
do nosso amor que, por eternos laços,
outrora, nos unia a um firmamento...

Se alguma glória tem, formosa, é esta:
todos o teu celeste amor perfuma,
em todos há tualma em riso e festa!

Velhos papéis, meu último conforto!
sois uma nódoa efêmera de espuma
perdida à face azul dum lago morto...



Última folha


...E o mais dos carunchosos manuscritos
não se lê, pela traça que os carcome;
são páginas, talvez, feitas de gritos,
mas ilegíveis no mais breve nome...

Vê-se, porém, que mãos e olhos aflitos
traçaram-nas chorando, à sede e à fome
de beijos e de abraços infinitos,
em qualquer folha que nas mãos se tome...

A poeira de séculos de mágoa
deu às restantes folhas a tristeza
das ravinas e córregos sem água...

E à traça a mesma antiga opacidade
da história assíria, escrita nas aspereza
dos mármores sem-fim de Khorsabad...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Manoel Santiago (1897-1987)

Autorretrato.

Minha pátria é minha língua

Acrobata da dor
Cruz e Sousa (1861-1898)




Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que, desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta, clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Hendrick Goltzius (1558-1617)

Lot and his daughters.

Poesia em tradução

Hino ao crítico
Vladimir Maiakóvski (1893-1930)



Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.

O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.

Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.

Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.

Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.

E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.

Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.

Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Púchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.

Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.

Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?


(Trad. Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Jacopo Bertoia (1544?-1574?)

 Venus Led by Cupid to the Dead Adonis.

Arte poética

Mauricio Matos


baixei do lugar de onde vim

e dentro em mim mesmo desci

sem longe nem perto ou aqui

sem rumo princípio nem fim


eu mesmo cavalo-de-mim

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Henry Pierre Picou (1824-1895)

Andromeda Chained to a Rock.

Homem maduro

Cacilda Barbosa


Como eu te amo, homem
nos poucos cabelos
que o tempo te deixou
no sorriso bonito que a juventude
em ti regravou.

Homem, eu te amo tanto
quando toco teu corpo maduro
vejo o brilho em teus olhos
já um tanto apagado
me afogo em carícias
no peito cheiroso, de branco mesclado.

Sinto pecado ao olhar teu andar
majestoso e macio, de gato cansado.
As mãos ágeis buscando recantos
tirando poesia, música louca
de meus encantos.
No gozo alucinado, no abraço sensual
no urro conjunto saindo de nosso peito
no perfume molhado que deixas em meus pelos
em teu sexo que o tempo
fez mais que perfeito.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Felix Labisse (1905-1982)

La revolte des Anges.

Dabacuri – da natureza das coisas 6

Zemaria Pinto




hora do néctar –

o beija-flor e a papoula

suspensos no ar





chuva de verão

esparge no meio-dia

carícias na terra

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Charles Chaplin (1825-1891)

Two girls bathing.

Nua no ar

Jorge Bandeira
(Na inspiração da poeta Patti Smith)



Sabe aquela onda que percorre teu corpo nu e que te enche de luz?
São artefatos de imagens primordiais, de tempos remotos
E brilham feito uma candeia de estrelas na galáxia de tua pele
Algo como uma transmissão que te acompanha desde teu nascimento
Quando ainda eras uma esfera que buscava um encontro de pulsar
E mesmo assim a nudez te arremessou a este planeta e entre choro e surpresa
Te acalentaram nas primeiras fontes de tua energia crescente
Nudez que te fez caminhar e se banhar e perceber que o olhar te consumiu
Por este motivo despiu-se um mundo e profundo tu o sentiu submergido
E as variações de tuas andanças te fizeram retornar ao nascedouro de Sol
Somente a felicidade não foi possível nesta visão
Nu nunca negarás teu opositor pois ele te pertence
Nus seremos algo que se completa na infinidade
De um raio de Sol que penetra os poros
E que não reflete nada além do próprio ser
Nudez não se traduz: RELUZ.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Jeremy Johnson

Birth of Venus.

Estante do tempo

Rio de sono
Ernesto Penafort (1936-1992)




este é um rio de sono,
senhora.
este é um rio sem barcos
e tem toda feita em arcos
sua submersa flora.

pois este mesmo rio,
senhora,
que além de ser de sono
e sentir-se inavegável
(como se fosse de outono
sua eterna bruma de cobre)
é também um rio nobre.

inobstante ser pobre
de qualquer navegação,
pulsa nele, quando cai,
o dia, no fim do olhar,
o sol – seu coração.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Leon Kroll (1884-1974)

Summer.

Minha pátria é minha língua

O morcego
Augusto dos Anjos (1884-1914)


Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Tarsila do Amaral (1886-1973)

Autorretrato ou Le manteau rouge.

Poesia em tradução

Acalanto para Deus menino
Juana Inés de la Cruz (1648?-1695)




Se meu Deus nasceu para penar,
Deixem-no velar.
Se está desvelado por mim,
Deixem-no dormir.
Deixem-no velar:
Não há pena em quem ama,
Como não penar.
Deixem-no dormir:
Sono é ensaio da morte
Que um dia há de vir.
Silêncio, que dorme.
Cuidado, que vela.
Não o despertem, não.
Sim, despertem-no, sim.
Deixem-no dormir.
Deixem-no velar.


(Trad. Manuel Bandeira)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Jean-François Millet (1814-1875)

The Goose Girl.

Quase/quase

Euclides Amaral


(pro Cacaso)


Passou por mim

era um verso

      ou passarim?

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Claude Lorrain (1600-1682)

Judgement of Paris.

Vila Carmem

Engels Medeiros
(pra casa 7 da velha vila)



No próximo segundo vai anoitecer
depois lentamente a noite
cuidará de dissipar meus sonhos

Hoje eu dormirei cedo!

Sonharei selva e rio-mar
e também com a vila carmem
do velho camilo gil
já morto fodido e fedido
como sempre foi por toda a vida
depois ainda sonharei mangas
que nunca foram vermelhas
por falta de ideologia
sonharei muros e papagaios
no maior deles
subirei aos céus
até despertar
bruscamente

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976)

Venus.

o povo e o poema

Zemaria Pinto



sobre um poema
que não seja propriedade particular

sobre um poema/canção de guerra
a clamar
por todos esses soldados

sobre um poema de operários
camponeses, guerrilheiros

sobre um poema em que a fome
tome sua verdadeira forma de fome

sobre um poema concreto
de aço e cimento e queda

sobre um poema de enchente
de seca, de lepra

sobre um poema mendigo

sobre um poema de grito
de espanto

sobre um poema de sangue
de bomba, de pus e de raça

sobre um poema menor
de índio, de puta e de dor

sobre um poema que cale
a voz do generalato

sobre um poema oprimido
espremido, pichado

sobre um poema sem classes

é sobre esse poema que marcha o meu povo.


                                                               (1977)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Annie Louise Swynnerton (1844-1933)

Cupid and Psyche.

Minha Manaus

David Almeida



Minha Manaus dormiu de touca
Mas não é louca
Tão pouco pouca
Oca de ocos
Quintal de tocos
De muitos homens poucos
Mas nem todos trôpegos
Taba de transe
Transa de lance
Trama de alcance
Minha Manaus dormiu ingênua
Acordou nua
Volúvel de lua
Nem pensar que é tua
Talvez quarto crescente
Minguando na mente
Suado corpo carente
Minha Manaus é minha e de alguém
Mas não é de ninguém
Cobra o cobre que lhe convém
Não tem culpa
Nem desculpa
A sedução lhe ocupa
Meu coração disparado
Triste amor derramado
Sangra sua dor calado

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Max Ernst (1891-1976)

Le Jardin de la France.
La naissance de Vénus d'Alexandre Cabanel revisitée par Max Ernst.

Estante do tempo

Da noite do rio
Alcides Werk (1934-2003)



Nesta noite sem medida
eu todo banhado em sombras
fugi de casa, fugi
para o branco desta praia,
como se a aurora que busco
neste rio se afogou.

Preciso acordar o rio
que está cansado de viagens
para ver se me alivio
da morte que trago em mim
com falas de cobras-grandes
e de mortos pescadores
que fazem parte do rio
e estão assim como estou.

No céu repleto de nuvens
há nuvens cheias de chuva:
por que não chove? Quisera
molhar-me dentro da noite,
tremer de fome e de frio
por remissão dos meus males
deixar meu corpo vazio
guardando o castelo inútil
e partir buscando a aurora
para que venha depressa
banhar as águas do rio
e minha face marcada
dos ventos com que lutei.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Antônio Parreiras (1860-1937)

A conquista do Amazonas.

Minha pátria é minha língua

Se acaso uma alma se fotografasse
Euclides da Cunha (1866-1909)





Se acaso uma alma se fotografasse
De modo que nos mesmos negativos
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos.

Poeta! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando, deste grupo bem no meio,

Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente
Destes sujeitos, é precisamente
O mais triste, o mais pálido e o mais feio...


[Manaus, 2 de fevereiro de 1905]

(Este poema foi escrito sobre uma fotografia, onde Euclides posa com o grupo de trabalho que iria explorar o rio Javari. O poema tem pelo menos quatro versões, com sutis variantes. Escolhemos a que foi remetida a Rodrigo Octavio, diretor da revista Renascença, que o publicou, juntamente com a foto, em 1906.)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Karl Ludwig Adolf Ehrhardt (1813-1899)

The Muse of Music.

Poesia em tradução

Quatro haicais

Matsuo Bashô (1644-1694)



Quatro horas soaram.
Levantei-me nove vezes
para ver a lua.



Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me.
Prazer de estar só...



A cigarra... Ouvi:
nada revela em seu canto
que ela vai morrer.



Quimonos secando
ao sol. Oh aquela manguinha
da criança morta!



(Trad. Manuel Bandeira)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Erika Meriaux

Adam and Eve II.

Romance

Marcos Ferreira



Hoje eu me sinto imensamente triste,
e triste tudo em minha vida eu sinto.
Já não mais canto como já me ouviste
cantar feliz o meu querer distinto...

Nada mais resta e nada mais existe
além das cinzas desse amor extinto.
O tempo agora, com seu dedo em riste,
é tão diverso quanto mais sucinto.

Não há mais nada para nos dizermos.
A nossa história se resume agora
a um calhamaço de sonhos enfermos.

E assim se acaba tudo o que vivemos.
Nós dois que fomos tanta coisa outrora,
nada mais somos, nada mais seremos.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Marcantonio Franceschini (1648-1729)

O nascimento de Apolo e Diana.

De longe

Renato Augusto Farias de Carvalho



Todos os dias
navego a meninice baré
molhado de um sol ardente
feito pimenta-murupi.
Renovo o velho berço da paz,
nas coxas quentes que profanei.

Não existe no meu canto
nada mais falso que o recato,
libelo inocente,
canto caboclo de amor.
Aqui me navego por inteiro
num imenso amazonas de saudade.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Olga Khorosheva

Lucky Morning.

Dabacuri – da natureza das coisas 5

Zemaria Pinto




a rã mitológica

já não quer saber de tanques

no azul da piscina





rã bashoniana

não percebe meu espanto:

brinca na piscina

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

François-Emile Barraud (1899-1934)

Les songes creux.

Retratos em preto e branco da primeira infância – Retrato n° 2

Inácio Oliveira



Quando chovia, as árvores

(em silêncio e secretamente)

iniciavam o milagre

das frutas.

Nós, os moleques, jogávamos bola

na grama molhada do pasto.

As cigarras encompridavam as tardes.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

La Naissance de Vénus.

Estante do tempo

Bolero das águas
Anibal Beça (1946-2009)





O passo no compasso dois por quatro
acode meu suplício de afogado
afastando de mim sedento cálice
em submerso bolero de águas tantas.
A sede dança seca na garganta
curtindo signos, fala ressequida
para a língua de couro, lixa tântala,
alisando palavras rebuçadas.
Quanto alfenim no alfanje que se enfeita
para montar as ancas de égua moura.
Lábia flamenca lambe leve as oiças,
é rito muezim ditando a dança:
no dois pra cá me levo em dois pra lá,
nas águas do regaço vou-me e lavo-me.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Valentin Serov (1835-1911)

Portrait of Ida Rubinstein.

Minha pátria é minha língua

Conclusão

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)




Os impactos de amor não são poesia
(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.

Que é poesia, o belo? Não é poesia,
e o que não é poesia não tem fala.
Nem o mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.

Então, desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?

sábado, 29 de janeiro de 2011

Cristiane Campos

Amazônia.

Poesia em tradução

Visões de Akira Kurosawa
Ana Mercedes Vivas






Milhares de homens
caminham
pelo túnel do silêncio.

Arcanjos da vida galopam
sobre cavalos azuis
desalados?

Um beija-flor desce
pelo raio de luz
até um girassol
enamorado ao vento.

Máscara de sonho,
sombras enlutadas,
pombas brancas
estrelas
para beber o dia
passos de solidão
entre os mortos.


(Trad. Thiago de Mello)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Walter Shirlaw (1838-1909)

Water Lilies.

Mar e lua

Chico Buarque



Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
– Todo mundo conta –
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar

E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E à beira-mar

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Frank Frazetta (1928-2010)

Nude.

Cuia

Simão Pessoa

(Poema feito a partir de um quadro do artista plástico Turenko Beça)



De longe como Matisse
Que a desnudando vestisse
Ela revela a natureza
Que a esconde por inteiro

E a esconde por inteiro
Do olho que a devassa:
O vão desdobrado em quilha
Recoberto por limalha

De luz é sua textura
Que ao toque se adivinha
Como as bordas da pupila
Refletindo água-marinha

Tem a aparência furtiva
De uma fruta adocicada
Daquela que nos convida
Na a comer – a olhá-la.

De luminosos cristais
Sua curvatura se veste:
O gosto de qualquer fruta
Nela é as dobras da pele

É fruta de carne e osso
Silêncio sonho e medula.
É fruta de mil desejos
Na língua mais que na gula.

É uma paisagem de dunas
Com casulos emborcados.
É uma ópera intestina
De conchas no alagado

É uma onda sem mistério
Tirando arestas da areia.
É uma maçã que mordida
O baixo ventre incendeia

É o ovo da serpente
Como que moldado em pedra.
É a cúpula do teatro
Na sua forma geodésica

No mais não é uma cuia
Arquitetada por Gaudí.
É uma cuia (mas nativa)
De tacacá e açaí.

Que uma bunda não é nunca
O silêncio de uma tela:
É uma vontade profunda
De se perder dentro dela.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

William Bouguereau (1825-1905)

La Vague.

legado

Zemaria Pinto



eis um pedaço de mim,
exposto
feito carne putrefata

eis um pedaço de mim,
ferida
aberta em pus, necrosada

eis um pedaço de mim,
retrato
de todo o horror do passado

eis um pedaço de ti,
devolvido
para que não esqueças de mim


                                              (1978)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898)

Hope.

Avarias

Francisco Calheiros




Não continua sendo útil minha espera.

Conquanto não valha a pena fazê-lo,

dou-me por realizado e sem mágoas.

Faz-se mister, porém, que as mágoas

não me exijam passaporte

nem me façam misantropo

das avarias que deixaste.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Erika Meriaux

Birth of Venus.

Estante do tempo

Estudo XII
Alcides Werk (1934-2003)




Impossível voltar. A caminhada
já foi longe demais, e não me encontro.
Há marcas fundas do caminho antigo,
mas não posso sentir, vivo agitado.

Vejo em volta de mim alguns pedaços
do meu ser dividido. E tento, às vezes,
fraco e mesquinho como um delinquente,
redescobrir a minha identidade.

Impossível voltar, e continuo.
Elaboro miragens e as persigo
com a determinação dos suicidas.

E, passo a passo, cada dia cumpro
a função de votar o que me resta
em sacrifício a ti, num rito amargo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Edward Cucuel (1875-1954)

Woman reclining by a lake.

Minha pátria é minha língua

Fanatismo
Florbela Espanca (1894-1930)




Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”

sábado, 22 de janeiro de 2011

François Boucher (1703-1770)

La toilette de Venus.

Poesia em tradução

O amor transido
Anacreonte (Século VI a.C.)





A noite passada,
à hora em que a Ursa
mais perto discursa
da mão do Boieiro;
e o sono profundo
no grêmio fagueiro
por todo esse mundo
restaura os mortais,
em meio era a noite;
o exemplo dos mais
no leito eu seguia;
sereno dormia . . .
À porta imprevisto
Cupido me bate!
À pressa me visto;
redobra o rebate;
acudo a correr.
“Sou eu, – diz de fora, –
não tens que temer;
sou um pequenino
que vaga, a tal hora,
molhado e sem tino,
perdido no escuro,
pois lua não há.”
Ouvi-lo gemendo
de mágoa me corta;
a lâmpada acendo,
franqueio-lhe a porta. . .
em casa me está!
Descubro (em verdade
mentido não tinha)
gentil criancinha
com arco e carcás.
Remexo nas brasas
da minha lareira;
restauro a fogueira;
as mãos, que são gelo,
lhe aqueço nas minhas,
lhe espremo o cabelo,
lhe enxugo as asinhas;
já frio não faz.
“Vejamos se a chuva
(dizia e sorria)
a corda do arco
me não danaria!”
Levanta-o do chão;
recurva-o, dispara
no meu coração.
A frecha que o vara
parece um tavão.
Eu, dores danadas,
e o doido às risadas,
de gosto a pular!
“– Meu caro hospedeiro,
(me diz prazenteiro)
agora é folgar.
Permite me ausente;
meu arco está são...
Quem fica doente
é teu coração!”


(Trad. Antônio Feliciano de Castilho)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901)

The two girlfriends.

I don’t like myself

Geraldo Carneiro


queria ser outro, perambular

entre as bandeiras enfunadas de pasárgada

bailar no bas-fond de Baudelaire

navegar no barco de Rimbaud

às vezes veranear nos subúrbios do Inferno

na selva selvagem de Dante

sempre argonauta de ultramares

sem o terror narcísico do espelho:

o mesmo círculo a mesma escrita o mesmo rosto

o mesmo animal confinado

em sua ridícula circunstância

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Michelangelo da Caravaggio (1571-1610)

Lute Player.

O salto

Moacir Andrade
À memória de João Crisóstomo



Sob o céu calmo à luz do ocaso,
a flor se abre.
Pura transparência
dentre pétalas de ouro e prata,
líquidas estrelas.
Surge o peixe – esguio – gracioso salto,
sob o brumoso sol de brilho flutuando.
De volta ao rio,
o nauta num mergulho eriça a água
de véus e suaves
círculos concêntricos,
e reintegra-se às sombras abissais.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Amedeo Modigliani (1884-1920)

Nude Looking Over Her Right Shoulder.

Dabacuri – da natureza das coisas 4

Zemaria Pinto




à beira do lago,

o lírio branco floresce

– manhã de novembro




ploóp... ploóp... ploóp...

no silêncio da manhã,

a rã na piscina

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Eliseu Visconti (1866-1944)

Inocência.

É quase de manhã

Cândida Alves



É quase de manhã
ainda sinto teu cheiro
no meu travesseiro
levanto com raiva
pra lavar a cara
e escovar o cabelo
não dá pra esquecer
mil vezes te odeio
grito pra não enlouquecer
desgraçado, só quer me comer
mas quando chega a tarde
e o vazio me invade
ninguém telefona
além de você
tudo bem, “vamo vê”
mesmo papo, só cama
dessa vez pode ser
me arrumo e perfumo
pra esperar você
de agora em diante
eu que vou te comer

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Micah Doron

Birth of Venus.

Estante do tempo

A lucidez da pedra
Antísthenes Pinto (1929-2000)




A lucidez é a loucura plena
como a pedra é água desde o início.
O amor, essa coisa mítica e terrena
é o fruir da ave – um artifício.

A loucura há de me levar acima,
amplamente, além das convenções,
há de retornar também em implosões
de seres e paisagens, aquém da rima.

O retorno é sempre um passo à frente
porque indescobrível como a aurora.
E é por isso que, hirto ou indolente,
perscruto o universo a toda hora.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Isidore Pils (1813-1875)

Nude Woman.

Minha pátria é minha língua

Soneto de Quarta-feira de Cinzas
Vinicius de Moraes (1913-1980)




Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Georges Seurat (1859-1891)

Les Poseuses.

Poesia em tradução

Da prisão
Adrienne Rich





Sob minhas pálpebras outro olho se abriu
e olha cruamente
a luz

que penetra vindo do mundo da dor
mesmo enquanto durmo

Fixamente ele encara
tudo que eu enfrento

e mais

ele vê os cassetetes e as coronhas
levantando e baixando
ele vê

o detalhe que a TV não mostra

os dedos da polícia feminina
esquadrinhando a boceta da jovem prostituta
ele vê

as baratas caindo dentro da panela
onde preparam carne de porco
no presídio

ele vê
a violência
encravada no silêncio

Este olho
não é para chorar,
sua visão
deve ser nítida

apesar das lágrimas em meu rosto

seu objetivo é a lucidez
nada deve ser esquecido


(Trad. Olga Savary)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Lambert Sustris (1515?-1584?)

Liggende Venus.

Se eu tiver que partir...

Antonio Lazaro de Almeida Prado
(Para Themis)



Se eu tiver que partir, que seja à noite,
Quando inda restam a esperança e o anseio
De, cedo, reencontrar-me nos teus sonhos.
Se eu tiver que partir, que seja à noite...

De noite, tu dirás que apenas durmo,
Que após rápido sono, curta ausência,
Hei-de voltar para o marcado encontro...
Se eu tiver que partir, que seja à noite...

De dia, não será, porque de dia
Sabemos que o navio parte, e não volta...
Se eu tiver que partir, que seja à noite...

Então, tu poderás fechar-me os olhos,
Beijar-me o rosto, minha doce amada,
Porque te deixarei somente à noite...

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Man Ray (1890-1976)

Five Figures.