Amigos do Fingidor

domingo, 31 de outubro de 2010

Paul Cézzane (1839-1906)

Sel-portrait.

Minha pátria é minha língua

Maracatu
Ascenso Ferreira (1895-1965)




Zabumbas de bombos,
estouros de bombas,
batuques de ingonos,
cantigas de banzo,
rangir de ganzás...

– Loanda, Loanda, onde estás?
– Loanda, Loanda, onde estás?

As luas crescentes
de espelhos luzentes,
colares e pentes,
queixares e dentes
de maracajás...

– Loanda, Loanda, onde estás?
– Loanda, Loanda, onde estás?

A balsa no rio
cai no corrupio,
faz passo macio
mas toma desvio
que nunca sonhou...

– Loanda, Loanda, onde estou?
– Loanda, Loanda, onde estou?

sábado, 30 de outubro de 2010

Gustave Courbet (1819-1877)

Le Sommeil.

Poesia em tradução

Ganhando dinheiro
James Laughlin (1914-1997)




O homenzinho sentado ao
piano no bar ganha seu

dinheiro para sorrir o
tempo todo que toca e

a loura cintilante no
vestido de Dior recebe

dinheiro para dar-se por
satisfeita quando tem de

dormir com o gordo & feio
que ganhou dinheiro para

trair os sócios naquele
famoso negócio & eu que

dinheiro ganho quem paga
o poeta por um poema?


(Trad. Mário Faustino)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Andre Lhote (1885-1962)

La Négresse.

Em busca da flor, além

Domingos Florentino



Porque procuras o Sol
no infinito
irei contigo às estrelas
à procura do Sol

Porque sentes o aroma da flor
no cimo da montanha
irei contigo além
em busca da flor

Porque vives na noite
de um dia para nascer
esperarei contigo
pela vinda da aurora

Porque morres sozinho
sonhando
viverei contigo
na morte pela vida

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Anita Malfatti (1889-1964)

Mário de Andrade.

Boiúna

Astrid Cabral



Na preamar do meu sonho
bóia essa baita boiúna
a negra pele inconsútil
rente ao veludo da treva.
Jeito de inócua jibóia a
boiúna se arrasta dócil
no espaço azul do meu sono
mas o ímpeto do bote
fermenta-lhe o corpo enorme
e a qualquer piscar de hora
o porte de pura cauda
sacode o caudal do rio
e a centelha de seus olhos
logo incendeia-me o leito.
Medonha, a qualquer hora
derrama o fel da peçonha
e zás se arremessa às bordas
da cama onde vaga navego
e me afunda nas profundas
de um inferno feito d’água.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901)

Donna dai capelli rossi.

Dabacuri – amazônica 25

Zemaria Pinto




por trás da cidade,

o sol, imensa laranja,

se põe mansamente



finda a luz da tarde,

a flor da vitória-régia

abre-se às estrelas

terça-feira, 26 de outubro de 2010

William Sergeant Kendall (1869-1938)

Psyche.

Segredos

Ketlen Nascimento




Será ...
Que a gente escolhe uma paixão
Ou não?
Deixa fluir no coração
não sei se é loucura ou tentação
mas não posso deixar
escapar essa emoção.
Sonhar... é encontrar a minha dor.
Porque... nesse segredo do amor
Te procuro nas estrelas
E encontro o teu olhar
E me perco em um
Desejo de te amar

Segredo é poder te amar
E ter que resistir
Ao brilho desse olhar
Que inspira e pulsa em mim
Acordes vou poder tocar
E te fazer entender
Que o meu coração, inspiração,
Meu segredo... é você!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Gregorio Vitale

La nascita di Venere.

Estante do tempo

Ofício
Farias de Carvalho (1930-1997)



Ruir-me e sem contudo haver ainda
sequer simples começo construído,
saber-me morto e nunca ter vivido
além do gesto que não foi. A infinda

flagelação do instante pressentido
(e só) é o postilhão dessa berlinda
onde o ir-se já sabe mais a vinda
e onde me instalo lúcido e perdido.

Ruir-me e sem poder cantar na queda
o pânico do abismo. Não poder
legar o sonho em ruína para os salvos.

Ruir-me. Como súbito o silêncio
estraçalhado por um grito. E ir-me
ruindo nesse afã de construir-me.

domingo, 24 de outubro de 2010

Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875)

El baño de Diana - La fuente (detalle).

Minha pátria é minha língua

Alegoria do crepúsculo
Athos Damasceno Pereira (1902-1975)




Quem andará, dentro da tarde triste e fria,
perlustrando, em silêncio, as aleias de sombra,
e deixando, ao cair de um vago fim de dia,
o apressado rumor de leves pés na alfombra?...

Quem andará, dentro da tarde, triste e erma,
dentro da tarde, de olhos raros e distantes,
enchendo o Parque de volúpia morna e enferma
de dedos longos e de lábios balbuciantes?...

Quem andará, dentro da tarde triste e fria,
quase roçando o espelho azul do lago raso?...
Quem andará dentro da tarde triste e fria?...

Quem andará perto do céu, nesta hora sombria,
desfolhando do azul, sobre as cinzas do ocaso,
grinaldas cor de luar, dentro da tarde fria?...

sábado, 23 de outubro de 2010

Joseph Karl Stieler (1781-1858)

Johann Wolfgang von Goethe.

Poesia em tradução

Dias
Ralph Waldo Emerson (1803-1882)




Prole do Tempo, Dias hipocríticos,
Tampados, mudos, dervixes descalços,
Seguindo sós em fila sem mais fim,
Com diademas e adornos nas mãos.
Oferecem regalos para todos,
Pão, reinos, astros e céu que os sustém.
Eu, em meu jardim curvo, olhava a pompa,
Esquecia os desejos matinais,
Na pressa, peguei ervas e maçãs,
E saiu e voltou, silente, o Dia.
Vi tarde, em seu solene aro, o desdém.


(Trad. José Lino Grünewald)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Cícero Dias (1907-2003)

Sem título.

Soneto da palavra sem flor

Alaor Tristante



Neste momento de silêncio
já não ouço palavras
só as penso, caladas,
levadas ao vento.

Falaria sem dúvida
tanta coisa escondida
tanta coisa perdida
tanta coisa da vida.

Mas o silêncio da voz
deixa o grito da mente
cada minuto mais só.

E assim se faz pó
a palavra que calo
só penso e não falo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Pierre Bonnard (1867-1947)


Nu a Contre-Jour Ou l'Eau de Cologne.

Confraria

Simão Pessoa



O pássaro metálico ilumina
o grande pórtico
em que circunavegam poetas absurdos
na elétrica comunhão irrevelada
Gestos guardando segredos
tristeza
cinzelando
transitiva
os rumores adivinhados por presságio
Nenhum pássaro alçando vôo novamente
nenhum centauro perseguindo
o impossível:
Apenas náufragos
inflamados pelo ócio
quebrando a vida e seus cacos reluzentes
na transparência do sorriso estagnado

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Auguste Mambour (1896-1968)

 Portrait of Mambole Woman.

Dabacuri – amazônica 24

Zemaria Pinto




as nuvens vermelhas,

o sol sumindo no rio

– silêncio noturno




hora de voltar –

a noite chega nas luzes

refletidas n’água

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Carolus-Duran (1837-1917)

Hebe.

Beija-flor

Franciná Lira




Voo livre.

Bicada frenética.

Procura constante
De outros jardins
De outras flores
Outras rosas
Outros sabores.

Quando paras no ar
Na busca de novo alvo
Petrifico.
Meu coração palpita
O ar cessa
Calafrios percorrem
Meu corpo...

Peço a Deus que me cegue
Para que eu
Não mais presencie
O desejar de outros lábios
Do meu amado.

E assim...
Uma rosa jaz.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Roberto Ferri

Nascita di Venere.

Estante do tempo

Das águas grandes
Alcides Werk (1934-2003)




O barco passando e a onda molhando
o menino molhado, na porta da frente.
O homem doente
deitado na rede
com os olhos cansados de espanto e de mágoa
de ver tanta água
de ver tanta água
bebendo do sangue, roendo as raízes
de tudo o que fez.
Na estreita maromba,
os bichos chorando de fome e de frio,
com medo do rio
com medo do rio que cresce outra vez.

(Quando eu for Presidente,
de amplos e amorosíssimos poderes,
decretarei,
sem visto do congresso,
nem processo,
canonizando santos nacionais
os mártires da enchente.
Convocarei um exército de anjos
para domar o rio e o desvario
dos prováveis dilúvios anuais.

Mesmo assim, por razões de previdência,
visto que temos mártires demais
e precisamos de gente,
levarei meus irmãos pra terra firme,
onde casa não pode ser navio,
nem se esteja sujeito
às caprichosas emoções do rio.)

O barco passando, e meus olhos sofrendo
da mesma miséria da mesma miséria
que veem.

E, de repente,
me vem uma vontade provisória
de encher os bolsos de demagogia,
entrar em cada casa com uma estória,
qualquer que seja – que não seja séria,
falar de tudo – menos de miséria,
prometer coisas que não cumprirei,
como se faz em tempo de eleições,
para que sejam menos infelizes
(enquanto o rio esconde as roças podres),
mastigando ilusões.

domingo, 17 de outubro de 2010

Sandro Botticelli (1445-1510)

Portrait of a Young Woman.

Minha pátria é minha língua

O prazer (rondó XXIV)
Silva Alvarenga (1749-1814)



Sobre o feno recostado,
Descansado afino a lira,
Que respira com ternura
Na doçura do prazer.

Amo a simples Natureza:
Busquem outros a vaidade
Nos tumultos da cidade,
Na riqueza e no poder.

Desse pélago furioso
Não me assustam os perigos,
Nem dos ventos inimigos
O raivoso combater.

Sobre o feno recostado,
Descansado afino a lira,
Que respira com ternura
Na doçura do prazer.

Pouca terra cultivada
Me agradece com seus frutos;
Mas os olhos tenho enxutos,
Quanto agrada assim viver!

O meu peito só deseja
Doce paz neste retiro;
Por delícias não suspiro,
Onde a inveja faz tremer.

Sobre o feno recostado,
Descansado afino a lira,
Que respira com ternura
Na doçura do prazer.

Pelas sombras venturosas
De fecundos arvoredos
Ouve Glaura os meus segredos,
Quando rosas vai colher.

Já o Amor com ferro duro
Não me assalta, nem me ofende:
Já suave o fogo acende,
E mais puro o sinto arder.

Sobre o feno recostado,
Descansado afino a lira,
Que respira com ternura
Na doçura do prazer.

Entre as graças e os Amores
Canto o Sol e a Primavera,
Que risonha vem da Esfera
Tudo em flores converter.

A inocência me acompanha;
Oh que bem! oh que tesoiro!
Vejo alegre os dias de oiro
Na montanha renascer.

Sobre o feno recostado,
Descansado afino a lira,
Que respira com ternura
Na doçura do prazer.

sábado, 16 de outubro de 2010

Paula Modersohn-Becker (1876-1907)

Autorretrato.

Poesia em tradução

Fim do mundo
Else Lasker-Schüler (1869-1945)



Há um choro no mundo,
Como se o bom Deus Chegasse ao final,
E a nuvem plúmbea cai ao fundo,
Em peso sepulcral.

Vem, escondamo-nos juntos em plenitude...
A vida está no coração de todos
Como em ataúdes.

Tu! Profundamente nos beijemos –
No mundo palpita uma saudade,
Da qual morreremos.


(Trad. Claudia Cavalcanti)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Palma Vecchio (1480-1528)

Venus.

Litania do Corpo

Daniel Mazza




O corpo assim como é salso
É doce assim como é gozo
É assim também doloroso
É do homem o cadafalso.

É o estômago empacotado,
É o pênis enrijecido,
É o intestino retorcido,
É o sêmen ejaculado.

É o rim no dorso empedrado,
É a vagina umedecida,
É a vulva aberta, florida,
É o pulmão todo manchado.

É também a axila e a mão,
As viscosas reentrâncias
Que recendem as fragrâncias
Com aroma de excreção.

É também a messalina,
Boca cheia de saliva.
A êmese copulativa
Perfumada de endorfina.

É também a febre ardente,
O frio calor nos ossos.
E o bombear dos remorsos
Do coração fervescente.

É também o suor frio
E os artelhos putrefatos.
O nojo em olhar os pratos
E os enjoos do fastio.

O corpo é um cadafalso
É um gozo que é doloroso
É um limpo que é asqueroso
É um doce que é também salso.

É a morada dos covardes,
Das vísceras traiçoeiras,
Caladas, mas sempre arteiras,
Planejando enfermidades.

É a morada dos suplícios
Dos temores, das fraturas,
Dos tumores, das agruras,
Das tormentas e dos vícios.

É também o combustível
Dos caules e das raízes.
E o sangue das hemoptises
É um adubo imprescindível.

É também a lauta mesa
Dos vermes intestinais,
Das larvas dos funerais:
Empregados da limpeza.

O corpo assim como é salso
É doce assim como é gozo
É assim também doloroso
É do homem o cadafalso.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Catherine Abel

Seated Nude.

Sobre um tema de W. Irving

Sergio Luiz Pereira
Para Zemaria Pinto



Chorar não é fraqueza – é força apenas.
Porque na doce lágrima aparente
Há algo de sagrado e de eloquente
Pois falam dez mil línguas em tais cenas.

E nas sequências mostram suas penas:
O lado mais real do ser vivente
E quanto ao pranto derramado, quente
Mais força vós tereis, almas pequenas!

Que as verdadeiras lágrimas retratam
Os arrependimentos mais profundos
Ou as dores que ferem e que matam.

Também são mensageiras de sabores
Que se não medem nesses vários mundos:
Indescritíveis lágrimas de amores.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Arthur Braginsky

Adams Rib.

exercício nº 16

Zemaria Pinto




Setembro não tem sentido,
                                          nas mãos
encanecidas e nas cãs vibráteis
à força do vento,
                           nós invisíveis
de forcas plantadas
                               sobre o caminho.

Setembro não tem sentido,
                                          nas pedras
que o tempo acumulou com precisão
sob nossas retinas
                             tão fatigadas
e nossos pés vegetais,
                                   tão inúteis.

Os dias fastos são lembranças fúteis
forjadas na temperança
                                     do ocaso
de nossas últimas desesperanças.

A nós nos resta agora esse torpor
mal encoberto em raras alegrias:
                                                  nonadas.
Setembro não tem sentido.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Charles Chaplin (1825-1891)

A Song Silenced.

Almas afins

Ivana Botelho




Quantas vezes teremos
Que ficar assim:
Distanciados,
Solitários,
Tristes,
A despeito de nossas almas
Estarem
Unidas,
Entrelaçadas?
Quantas vezes teremos de
Nos acariciar com o olhar,
Por efeito de nossas mãos,
Nossos corpos
Estarem,
Momentaneamente,
Proibidos de se tocarem uníssonos?
Serão inúmeras as vezes
Que nossas bocas sôfregas
Terão que calar,
A fim de não revelarem o
Incomensurável amor
A emanar dos nossos corações.
Não importa, alma afim,
Se nossos olhos dizem tudo,
Unidas em pensamento
Saibamos esperar.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Jason Chan

Birth of Venus.

Estante do tempo

Aspiração
Violeta Branca (1915-2000)




Eu quisera que meu corpo fosse feito de flores...

Que minha carne tivesse
o reflexo de rosas claras ao clarão do luar.
             E assim,
quando chegasses para o calor de meu beijo,
aspirarias no meu hálito o fresco perfume
             de um jardim florido.
Eu quisera que meu corpo fosse feito de flores...

Que meus cabelos tivessem a morna fragrância
                        das relvas tenras.

E assim,
quando cerrasses os olhos
e, sorrindo, afagasses meu corpo ardente e jovem
tuas mãos teriam
a deliciosa volúpia
de acariciarem a primavera...

Eu quisera que meu corpo fosse feito de flores...

E assim,
quando meus braços brancos,
como uma coroa de louros
envolvessem a tua cabeça de deus pagão,
sentirias a sensação embriagante
de seres um fauno novo
perdido numa selva de lírios.

domingo, 10 de outubro de 2010

Miguel Cabrera (1695-1768)

Soror Juana Inés de la Cruz.

Minha pátria é minha língua

Ventura

João de Deus (1830-1896)



O sol na marcha luminosa voa
Lançando à terra majestoso olhar;
Passa cantando quem o ar povoa,
E a praia abraça venturoso o mar.

No bosque o vento doce canto entoa,
Ouvem-se em coro a multidão cantar;
Que a um só triste o coração lhe doa,
Que eu seja o único a sofrer, penar!

Por ti, saudade... de quem vai tão perto
E a quem dos olhos e das mãos perdi
Neste tão ermo, lúgubre deserto!

Por ti, ventura... que uma vez senti;
Por ti que às vezes a meu peito aperto
E... o peito sem ti ver a ti!

sábado, 9 de outubro de 2010

Annibale Carracci (1560-1609)

Jupiter and Juno.

Poesia em tradução

O instinto

Cesare Pavese (1908-1950)




O homem velho e já sem esperança nas coisas,
da soleira de casa ao sol morno da tarde,
olha o cão e a cadela aplacando o instinto.

Em sua boca sem dentes as moscas passeiam.
Sua mulher já morreu há um bom tempo, e não é
que gostasse de sexo – tampouco as cadelas –,
mas o instinto era vivo. O homem velho fungava
– tinha ainda seus dentes –, a noite caía,
se metiam na cama. O instinto era belo.

O que agrada no cão é a total liberdade.
De manhã e de noite vagueia nas ruas;
e ora come, ora dorme, ora cruza as cadelas:
não espera sequer pela noite. Reflete
com o faro, e os cheiros que sente são seus.

O homem velho recorda uma vez de manhã
em que fez como os cães, em um campo de trigo.
Esqueceu a cadela, mas lembra o sol alto
e o suor e a vontade de nunca ter fim.
Era como na cama. Se os anos voltassem,
gostaria de sempre o fazer num trigal.

Uma mulher desce a rua e detém-se a olhar;
passa o padre e se volta. Mas no meio da praça
qualquer ato é possível. E até a mulher,
que receia virar para o homem, detém-se.
Só um rapaz, entre todos, não quer ver o jogo
e recorre a pedradas. O homem velho se irrita.

                                                                       Janeiro de 1936


(Trad. Maurício Santana Dias)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Édouard Manet (1832-1883)

Olympia.

Contrariando os impulsos do relógio

Antônio Lázaro de Almeida Prado


De noite, de arcana luz eu me alimento,
De dia, busco sempre a luz discreta;
De noite, a Esperança é meu sustento
De dia, a sombra esquiva é a predileta.

Vejo na noite a precessão da aurora,
Nas tardes o fulgor é recessivo,
Anseio pela noite, que demora,
E o meridiano sol sinto excessivo.

Se ao sono entrego este meu corpo lasso,
Ganho no sonho luz túrgida e clara,
E em toda treva luz sempre devasso.

A meia-noite vem e a noite passa,
E subitânea luz, logo me aclara
Os sonhos, já libertos de fumaça...

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Domenico Pellegrini (1759-1840)

Portrait of a lady.

Sorvete de pitanga

Renato Augusto Farias de Carvalho




Pitanga congelada.
Discute-se, na Universidade de Boston: se o elemento
básico da pitangocelomitina é,
assim, substância tão remota.

(o vinho e o vinagre
a gente
pensa que sim.)

Desisto.
Não vou mais a
Boston. Faço doutorado
aqui mesmo
na praia de São Conrado.
Há clima bom e restam
pitangas frescas
a apanhar no pé.
Reservas, pra
enriquecer a
tese...

                                                 As tardes de sábado
                                         estiveram reservadas para
                                         deliberar
                                                   o deleite do nosso
                                                   sorvete.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

George Owen Wynne Apperley (1864-1960)

Título desconhecido.

Dabacuri – amazônica 23

Zemaria Pinto




garça branca pousada


sobre a vitória-régia

– o lago em silêncio



nuvens entre as árvores,

paisagem estranha e bela

– prenúncio de frio?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Adolphe Jourdan (1825-1889)

Innocence.

Tua ausência

Tainá Vieira




Onde estás agora? Esqueceu-me?
como pode ter me esquecido!
preciso muito te ti neste momento.

Meu corpo está aqui, clamando teu nome,
pedindo teu toque, tuas caricias,
minha boca necessita da tua,
traz teu beijo, meus lábios estão adormecidos
com a tua ausência.

Meu corpo está inerte e gélido,
quando tu estás aqui ele transforma-se
num vulcão em erupção.

Hoje estou em estado de lamúria,
clamando por você,
se não vieres logo,
certamente morrerei.

Eu preciso. Não. Eu necessito do teu corpo,
pra aquecer o meu,
dos teus beijos, pra alimentar minh’alma,
do teu cheiro, pra perfumar meu ar,
do teu amor, pra viver.

Não demores!

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Antonio Nunziante

Nascita di Venere.

Estante do tempo

Epitáfio
Benjamin Sanches (1915-1978)




Quando meu barco imergir

no profundo lago desconhecido,

não construam sobre o local

outros mastros e chaminés.

Que a superfície fique limpa

e tranquila, para refletir

a beleza do firmamento.

domingo, 3 de outubro de 2010

Raphael (Raffaello Sanzio) (1483-1520)

The Three Graces.

Minha pátria é minha língua

Balada das três mulheres do sabonete Araxá
Manuel Bandeira (1886-1968)



As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!
São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?

Meu Deus, serão as três Marias?

A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse... Oh, então nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!
Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei? queres uma ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Teresópolis, 1931.

sábado, 2 de outubro de 2010

Salvador Dalí (1904-1989)

Dali Nude in Contemplation Before the Five Regular Bodies.

Poesia em tradução

O puro não
Oliverio Girondo (1891-1967)



o não
o não inóvulo
o não nonato
o innão
o não póslodocosmos de pésteos zeros que nãoam nãoam nãoam
e nãoãoam
e pluriuno noam ao morbo amorfo innão
não dêmono
não deo
sem som sem sexo nem órbita
o hirto inósseo innão no uníssolo amódulo
sem poros já sem nódulo
nem eu nem cova nem fosso
o macro não não pó
o não mais nada tudo
o puro não
sem não


(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Elsie Russell

Celebração da vida.

Cântico dos cânticos

Renata Pallottini




O meu amor é meu e eu sou dele.
O linho horizontal é nossa casa
e eu me aninho a dormir sob sua asa;
amo-o com minha boca e minha pele.

Ele é quem vela e não me diz que vele
porque sua é a chama e minha a brasa.
O seu fervor ao meu fervor se casa,
clara coma de luz que nos impele.

Desci ao campo raso: ele é meu campo
onde me deito e a erva se derrama;
é meu olhar que voa, pirilampo.

Sem terra, irei por terra; ele me chama.
Vou sem saber por onde, ao mar ou monte.
Sem sua boca eu já não sei ser fonte.