Retrato de Antônio Vieira.
Amigos do Fingidor
terça-feira, 31 de agosto de 2010
Cenas de infância
Abraão Benacon
Lembro de ser criança
Na casa de vovó.
Havia pernas altas por todos os lados.
Havia o amor, inamovível.
Crianças correndo,
Velhas árvores cercando a casa.
E vovó...
A casa era grande e calma.
Havia um gato, sempre perto da janela
E o vento que soprava e trazia o som do coração dela.
A proteção
Nos seus olhos cor de âmbar.
A luz das manhãs,
Que penetrava sorrateiramente a sala.
Pureza de criança
Tristes tempestades.
O calor de minha avó,
Que me aquecia.
E a felicidade
Perto de nós.
Lembro de ser criança
Na casa de vovó.
Havia pernas altas por todos os lados.
Havia o amor, inamovível.
Crianças correndo,
Velhas árvores cercando a casa.
E vovó...
A casa era grande e calma.
Havia um gato, sempre perto da janela
E o vento que soprava e trazia o som do coração dela.
A proteção
Nos seus olhos cor de âmbar.
A luz das manhãs,
Que penetrava sorrateiramente a sala.
Pureza de criança
Tristes tempestades.
O calor de minha avó,
Que me aquecia.
E a felicidade
Perto de nós.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Estante do tempo
Estudo VI
Alcides Werk (1934-2003)
O amargo deste sal que me alimenta
agora, eu mesmo o consegui catando
abismos nesse mar desconhecido
que o tempo me mostrou depois de mim.
Este sabor estranho de distância
que vivo a cada hora e que me envolve,
vem da vida que vi nessa voragem.
Sei, agora, que após a ronda inútil
por além dos limites do meu nada,
voltamos mais vazios, eu e o barco
que construí para guardar tesouros.
No regresso noturno, cumpro o gesto
de buscar o local, em cada porto
onde possa esconder um sonho morto.
Alcides Werk (1934-2003)
O amargo deste sal que me alimenta
agora, eu mesmo o consegui catando
abismos nesse mar desconhecido
que o tempo me mostrou depois de mim.
Este sabor estranho de distância
que vivo a cada hora e que me envolve,
vem da vida que vi nessa voragem.
Sei, agora, que após a ronda inútil
por além dos limites do meu nada,
voltamos mais vazios, eu e o barco
que construí para guardar tesouros.
No regresso noturno, cumpro o gesto
de buscar o local, em cada porto
onde possa esconder um sonho morto.
domingo, 29 de agosto de 2010
Minha pátria é minha língua
Banho ao luar
Luís Delfino (1834-1910)
Foi uma noite à límpida lagoa,
Que para recebê-la se enfeitara:
Não é que o Olimpo ainda hoje se esboroa,
E dele cai um deus, que lá ficara?
E ao saber que ele iria ao banho, voa,
E forra o lago, e acende-o, como uma ara;
Azuis lá dentro, e os astros arranjara,
E clarões moles, que por selvas coa.
Ela nas margens deixa a roupa: nua,
Como quem entra numa festa lauta,
Lasciva, entre o tinir dos sóis, flutua,
Com um e outro correndo inerme e incauta;
Cai-lhe aos pés Pã, lacera-a a unha da lua,
E há uns ais pelo céu de sons de flauta...
Luís Delfino (1834-1910)
Foi uma noite à límpida lagoa,
Que para recebê-la se enfeitara:
Não é que o Olimpo ainda hoje se esboroa,
E dele cai um deus, que lá ficara?
E ao saber que ele iria ao banho, voa,
E forra o lago, e acende-o, como uma ara;
Azuis lá dentro, e os astros arranjara,
E clarões moles, que por selvas coa.
Ela nas margens deixa a roupa: nua,
Como quem entra numa festa lauta,
Lasciva, entre o tinir dos sóis, flutua,
Com um e outro correndo inerme e incauta;
Cai-lhe aos pés Pã, lacera-a a unha da lua,
E há uns ais pelo céu de sons de flauta...
sábado, 28 de agosto de 2010
Poesia em tradução
Soneto ao Amor
Manuel González Prada (1844-1918)
Serás um bem dos céus ou simples dolo?
Se és um bem, por que as dúvidas e o pranto,
a desconfiança, o remoedor quebranto,
longas noites febris de desconsolo?
E se és um mal neste terrestre solo,
por que os gozos, então, o riso, o canto,
as esperanças, o glorioso encanto,
visões ternas de paz e de consolo?
Se és neve, por que tens tão vivas chamas?
Se és chama, por que gelas como o Norte?
Se és noite, por que a luz do Sol derramas?
Por que esta sombra, se tens luz, querida?
Se és a vida, por que me dás a morte?
Se és a morte, por que me dás a vida?
(Trad. Ivo Barroso)
Manuel González Prada (1844-1918)
Serás um bem dos céus ou simples dolo?
Se és um bem, por que as dúvidas e o pranto,
a desconfiança, o remoedor quebranto,
longas noites febris de desconsolo?
E se és um mal neste terrestre solo,
por que os gozos, então, o riso, o canto,
as esperanças, o glorioso encanto,
visões ternas de paz e de consolo?
Se és neve, por que tens tão vivas chamas?
Se és chama, por que gelas como o Norte?
Se és noite, por que a luz do Sol derramas?
Por que esta sombra, se tens luz, querida?
Se és a vida, por que me dás a morte?
Se és a morte, por que me dás a vida?
(Trad. Ivo Barroso)
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Mínima
Nydia Bonetti
Rímel. Lápis. Blush. Batom
Agenda. Aspirina. Espelho
Chaves. Talão de cheques
Carteira. Calculadora
Cartão de crédito
Lixa de unha. Desodorante
Creme hidratante
Um terço. Uma oração. Medalhas
E uma fita azul da Mãe Aparecida
(Que a casa do Senhor do Bonfim
Ficou distante)
Um canivete artesanal de estimação
Herança de meu pai
3 x 4 daqueles que amo
Lentes de contato. Óculos de sol
Lenços de papel. CIC. RG. CREA SP
Canetas. Cartão de visita. Celular
Escovas. Filtro solar
E a imprescindível folha de papel
Em branco
À espera dos versos
Deus,
Como sou pequena!
Quase tudo que sou e preciso
Cabe dentro da minha bolsa.
Rímel. Lápis. Blush. Batom
Agenda. Aspirina. Espelho
Chaves. Talão de cheques
Carteira. Calculadora
Cartão de crédito
Lixa de unha. Desodorante
Creme hidratante
Um terço. Uma oração. Medalhas
E uma fita azul da Mãe Aparecida
(Que a casa do Senhor do Bonfim
Ficou distante)
Um canivete artesanal de estimação
Herança de meu pai
3 x 4 daqueles que amo
Lentes de contato. Óculos de sol
Lenços de papel. CIC. RG. CREA SP
Canetas. Cartão de visita. Celular
Escovas. Filtro solar
E a imprescindível folha de papel
Em branco
À espera dos versos
Deus,
Como sou pequena!
Quase tudo que sou e preciso
Cabe dentro da minha bolsa.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Aos confrades e amigos do Chá do Armando
Jorge Tufic
Ao Chá do Armando a taça que faltara
quando, sem mim, quiseram-me presente;
e aos oitenta que sou, alegremente,
um dia a mais tão logo acrescentara.
Laços comuns, saudades, uma rara
força nos une transcendentalmente;
pois, sendo longe, o perto se consente
anular a distância que separa.
Fica-me bem ser lágrimas e rosas.
Mas como agradecer aos meus amigos
pelos brindes, com rimas fastidiosas?
Contudo, a gratidão me transfigura.
Sou-lhes grato, meus últimos abrigos,
companheiros da luz em noite escura.
Ao Chá do Armando a taça que faltara
quando, sem mim, quiseram-me presente;
e aos oitenta que sou, alegremente,
um dia a mais tão logo acrescentara.
Laços comuns, saudades, uma rara
força nos une transcendentalmente;
pois, sendo longe, o perto se consente
anular a distância que separa.
Fica-me bem ser lágrimas e rosas.
Mas como agradecer aos meus amigos
pelos brindes, com rimas fastidiosas?
Contudo, a gratidão me transfigura.
Sou-lhes grato, meus últimos abrigos,
companheiros da luz em noite escura.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
vereda de pássaros
(para Carol, Paloma e Amanda – pássaros)
paisagem de luz e harmonia
de sonho e éter construída
assombro da dor, fantasia
paixão, muito mais que amor: vida
um viajante de alva plumagem
vai deslizando no azul
e na seda infinita do espaço
melodias, notas raras
explodem num canto de amor
revelando a rota da viagem:
uma chegada sem ida
um adeus sem despedida
sorrisos pra quem se vai
canções, gorjeios, sinais
araras e jaburus
juritis e japiins
patativas, bem-te-vis
rouxinóis e jacamins
bacuraus, uirapurus
inhambus e colibris
palomas brancas, morenas
amandas e carolinas
cantos de dor, de alegria
quadros de encanto e magia
o poema revela o mito:
a procura do destino
é feito o vôo dos pássaros
– o caminho é o infinito...
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Ausência & Perda
João Sebastião
não te ter fisicamente
sentir tua pele
tua língua
teus dentes
não poder tocar tuas mãos
teus seios
tuas coxas
não ter teu sexo
– que se realiza em cada nanômetro do teu corpo nu
não é nada – não será nada
se há a mais infinitésima possibilidade de te ter de novo
(ainda que sobre cada encontro
paire a terrível ameaça
de ser a última vez)
a perda é o nada
é o caos
o mundo em desordem
o império do medo
o horror o horror
te perder será voltar às trevas
em que – eu não sabia – sempre vivi?
não te ter fisicamente
sentir tua pele
tua língua
teus dentes
não poder tocar tuas mãos
teus seios
tuas coxas
não ter teu sexo
– que se realiza em cada nanômetro do teu corpo nu
não é nada – não será nada
se há a mais infinitésima possibilidade de te ter de novo
(ainda que sobre cada encontro
paire a terrível ameaça
de ser a última vez)
a perda é o nada
é o caos
o mundo em desordem
o império do medo
o horror o horror
te perder será voltar às trevas
em que – eu não sabia – sempre vivi?
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Estante do tempo
Em tom de old-blues para piano, sax, contrabaixo, guitarra e bateria*
Anibal Beça (1946-2009)
Quem saberia de mim
se me visse assim como estou
rendido ao aço das manhãs
pastoreando esse meu cão
por essas ruas tão tranquilas
Que gemelar seria eu
linha paralela de vida
e tão parelha dessas ruas
fagulha dupla de mão única
bifurcada e sem retorno
nos afazeres do meu sonho
Em mim eu sou o que não fui
comigo fui o que não era:
o derrotado nominado
o nominado vencedor
e resta só o testemunho
do cão que me acompanha agora
e dessas ruas que me sabem antes
Anibal Beça (1946-2009)
Quem saberia de mim
se me visse assim como estou
rendido ao aço das manhãs
pastoreando esse meu cão
por essas ruas tão tranquilas
Que gemelar seria eu
linha paralela de vida
e tão parelha dessas ruas
fagulha dupla de mão única
bifurcada e sem retorno
nos afazeres do meu sonho
Em mim eu sou o que não fui
comigo fui o que não era:
o derrotado nominado
o nominado vencedor
e resta só o testemunho
do cão que me acompanha agora
e dessas ruas que me sabem antes
(*) Poema musicado por Armando de Paula e Célio Cruz, foi gravado pelo próprio poeta com o título Raio-X
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Segunda-feira
domingo, 22 de agosto de 2010
Minha pátria é minha língua
Tua frieza aumenta o meu desejo
Eugenio de Castro (1869-1944)
Tua frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.
Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.
Sei que jamais hei de possuir-te, sei
Que “outro”, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.
Meu coração no entanto não se cansa:
Amam metade os que amam com esp’rança,
Amar sem esp’rança é o verdadeiro amor.
Eugenio de Castro (1869-1944)
Tua frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.
Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.
Sei que jamais hei de possuir-te, sei
Que “outro”, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.
Meu coração no entanto não se cansa:
Amam metade os que amam com esp’rança,
Amar sem esp’rança é o verdadeiro amor.
sábado, 21 de agosto de 2010
Poesia em tradução
Canção-do-destino de Hiperião
Friedrich Hölderlin (1770-1843)
Afortunados gênios, que pairais
Na luz acima, pelos prados férteis!
Leves, divinas brisas reluzentes
Vos acalentam
Como dedos de artista
Sobre cordas sagradas.
Despidos de destino, tal dormente
Recém-nascido, assim eles respiram,
Os celestiais: castamente aninhados
Em pétalas sensíveis
Florescem para sempre seus espíritos
E seus olhos benditos
Contemplam sempiterna
Claridade serena.
Ai de nós! que recanto
De repouso nos toca?
Desgraçados humanos
Tombamos e murchamos
Às cegas, de hora a hora
Como de fraga em fraga
A torrente se atira,
Anos abaixo, rumo
Do Desconhecido.
(Trad. Mário Faustino)
Friedrich Hölderlin (1770-1843)
Afortunados gênios, que pairais
Na luz acima, pelos prados férteis!
Leves, divinas brisas reluzentes
Vos acalentam
Como dedos de artista
Sobre cordas sagradas.
Despidos de destino, tal dormente
Recém-nascido, assim eles respiram,
Os celestiais: castamente aninhados
Em pétalas sensíveis
Florescem para sempre seus espíritos
E seus olhos benditos
Contemplam sempiterna
Claridade serena.
Ai de nós! que recanto
De repouso nos toca?
Desgraçados humanos
Tombamos e murchamos
Às cegas, de hora a hora
Como de fraga em fraga
A torrente se atira,
Anos abaixo, rumo
Do Desconhecido.
(Trad. Mário Faustino)
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
Canção para um rapaz de oitenta
Francisco Carvalho
Poeta Jorge Tufic,
pastor dos meridianos,
ergo a taça dos meus versos
pelos teus oitenta anos.
A vida passa depressa,
passam meses, passam anos.
Passa o vento nas janelas
pelos teus oitenta anos.
Pelas portas das esferas
passam vinhos lusitanos,
passa o verso pela ode
pelos teus oitenta anos.
Passa a chuva pelo vidro,
passam as águas pelos canos.
Passa a onda pela espuma
pelos teus oitenta anos.
Passa a rima pelo remo,
o engano por desenganos.
Cantam vinhos nas garrafas
pelos teus oitenta anos.
Poeta Jorge Tufic,
pastor dos meridianos,
ergo a taça dos meus versos
pelos teus oitenta anos.
A vida passa depressa,
passam meses, passam anos.
Passa o vento nas janelas
pelos teus oitenta anos.
Pelas portas das esferas
passam vinhos lusitanos,
passa o verso pela ode
pelos teus oitenta anos.
Passa a chuva pelo vidro,
passam as águas pelos canos.
Passa a onda pela espuma
pelos teus oitenta anos.
Passa a rima pelo remo,
o engano por desenganos.
Cantam vinhos nas garrafas
pelos teus oitenta anos.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Inconstância
Jacob Ohana
Dizem-me os linces,
foste ver gravuras
no teu deserto de pêlos ao vento,
clara tulipa a celebrar o vinho.
Branca, arredia fímbria
em que decoro um hino.
Banho de sais que às vezes tomo
atento à gota que entre os dedos cai.
Dizem-me os linces,
foste ver gravuras
no teu deserto de pêlos ao vento,
clara tulipa a celebrar o vinho.
Branca, arredia fímbria
em que decoro um hino.
Banho de sais que às vezes tomo
atento à gota que entre os dedos cai.
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Dabacuri – amazônica 20
Zemaria Pinto
ianomami canta
“falemos de coisas boas”
– raízes caboclas
tarde em calmaria:
onde as águas mais se encrespam
se encontra um cardume
ianomami canta
“falemos de coisas boas”
– raízes caboclas
tarde em calmaria:
onde as águas mais se encrespam
se encontra um cardume
terça-feira, 17 de agosto de 2010
Catarse
Rayder Coelho
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que vieram
antes de nós
predestinados à vida, à morte
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que vieram
antes de nós
predispostos ao bem, ao mal
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que vieram
antes de nós
que com asas de anjo
mas um coração profano
que nos remete ao Hades
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que
crucificaram a Jesus
e absolveram a Barrabás
Quem somos?
Senão a nós mesmos
os mesmos que virão
depois de nós
deuses? Anjos?
Homens e nada mais.
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que vieram
antes de nós
predestinados à vida, à morte
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que vieram
antes de nós
predispostos ao bem, ao mal
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que vieram
antes de nós
que com asas de anjo
mas um coração profano
que nos remete ao Hades
Quem somos?
Senão nós mesmos
os mesmos que
crucificaram a Jesus
e absolveram a Barrabás
Quem somos?
Senão a nós mesmos
os mesmos que virão
depois de nós
deuses? Anjos?
Homens e nada mais.
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
Estante do tempo
Coreto
Aurolina de Castro (1933-2004)
Onde estão agora os coretos
com a banda de música, nossas
algazarras e brincadeiras?
Ainda se encontram alguns
pelos subúrbios distantes.
Sem mais aquela significação,
lá estão eles, vultos manietados,
sem qualquer movimento,
da vida nova marginalizados.
Lembrá-los é trazer de volta
um tempo sem televisão.
É retornar à grande espiral
que em torno de seu eixo se fazia.
É circular lado a lado
de inquieta criançada. É rever
a gente simples, que buscava alegria
na banda de música que ali tocava,
nas tardes domingueiras.
Remanso de descontração,
de despretensiosa alegria,
ao jeito da primavera,
em torno do coreto
se desfrutava prazerosa atmosfera.
Aurolina de Castro (1933-2004)
Onde estão agora os coretos
com a banda de música, nossas
algazarras e brincadeiras?
Ainda se encontram alguns
pelos subúrbios distantes.
Sem mais aquela significação,
lá estão eles, vultos manietados,
sem qualquer movimento,
da vida nova marginalizados.
Lembrá-los é trazer de volta
um tempo sem televisão.
É retornar à grande espiral
que em torno de seu eixo se fazia.
É circular lado a lado
de inquieta criançada. É rever
a gente simples, que buscava alegria
na banda de música que ali tocava,
nas tardes domingueiras.
Remanso de descontração,
de despretensiosa alegria,
ao jeito da primavera,
em torno do coreto
se desfrutava prazerosa atmosfera.
domingo, 15 de agosto de 2010
Minha pátria é minha língua
Ânsia múltipla
Gilka Machado (1893-1980)
Beija-me, Amor,
beija-me sempre, e mais, e muito mais,
– em minha boca esperam outras bocas
os beijos deliciosos que me dás!
Beija-me ainda,
ainda mais!
Em mim sempre acharás
à tua vinda
ternuras virginais.
Beija-me mais, põe o mais cálido calor
nos beijos que me deres,
pois viva em mim a alma de todas as mulheres
que morreram sem amor!...
Gilka Machado (1893-1980)
Beija-me, Amor,
beija-me sempre, e mais, e muito mais,
– em minha boca esperam outras bocas
os beijos deliciosos que me dás!
Beija-me ainda,
ainda mais!
Em mim sempre acharás
à tua vinda
ternuras virginais.
Beija-me mais, põe o mais cálido calor
nos beijos que me deres,
pois viva em mim a alma de todas as mulheres
que morreram sem amor!...
sábado, 14 de agosto de 2010
Poesia em tradução
À morte de Nise
Francesc Fontanella (1615?-1680?)
Oh duras flechas do meu fado extraídas,
extraídas por ferir tão dolorosas,
que, levando-me as plumas amorosas,
deixam no peito as plumas mais compridas!
Flamas mais eclipsadas que vencidas,
auroras algum dia luminosas,
sombras de minha vista tenebrosas,
tenebrosas, mortais, porém queridas.
Triste início de penas desumanas,
término tão feliz da alma afligida,
que por alívio sua dor adora;
flechas serão e flamas soberanas
se ao coração me levam triste vida
para aos olhos me dar eterna aurora.
(Trad. Fábio Aristimunho Vargas)
Francesc Fontanella (1615?-1680?)
Oh duras flechas do meu fado extraídas,
extraídas por ferir tão dolorosas,
que, levando-me as plumas amorosas,
deixam no peito as plumas mais compridas!
Flamas mais eclipsadas que vencidas,
auroras algum dia luminosas,
sombras de minha vista tenebrosas,
tenebrosas, mortais, porém queridas.
Triste início de penas desumanas,
término tão feliz da alma afligida,
que por alívio sua dor adora;
flechas serão e flamas soberanas
se ao coração me levam triste vida
para aos olhos me dar eterna aurora.
(Trad. Fábio Aristimunho Vargas)
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sexta-feira, 13 de agosto de 2010
Infância
Mauricio Matos
Todos os militares eram apenas uma cabeça inútil
a ditar incoerente os limites de tudo;
e eu os ouvia através da ignorância infantil,
e o fascismo fazia-me sentido, sem que sequer o dissessem.
À noite, confuso, eu dormia com nossa senhora,
sedutora, despidos os seios rosados
ante o próprio filho moribundo,
esticado pelos braços na parede branca,
mantida a posição em que morreu, sob tortura,
em pregos milenares pendurado, portanto,
ainda agora a consagrar os mesmos lares
dos mesmos que o mataram noutro tempo,
e que o podendo o farão inda agora,
talvez inda mais lentamente,
que nada mudou, afinal,
em dois mil longos anos de muita conversa.
Eram os primeiros sinais de um inferno sensível,
da primavera macabra que têm sido os meus passos;
esquartejada a vida à maldição divina,
por dentro de mim, repartida em pedaços.
Enquanto as ordens resvalavam bêbadas,
e nada lhes poderia garantir a verossimilhança do sen,
à noite, sempre longa e sempre tão macabra,
eu pensava em torturas para não desejar a virgem,
para não sentir, maior ainda e mais afiada,
a longa culpa de ter, simplesmente, sentido.
Crescia-me na alma a árvore do ódio,
a estender seus galhos, como cigarros acesos,
através da retina, circunspecta e triste,
de um olhar que revelava, ensimesmado,
meu desejo prematuro de morrer.
Então, expunha meus pulsos à faca divina,
mas deus não cortava os meus braços
e ria, profundamente ria,
cercado de insetos por todos os lados.
Edificava-se-me, por dentro, uma senzala imensa,
e os escravos-de-mim formavam filas, de medo,
labirintos macabros para o tronco dos outros,
onde estalava a chibata
ao gosto do grande carrasco.
Poder: eletrochoque, estupro, pau-de-arara,
pérolas e champanhe,
o regimento, afinal, sobretudo,
e tudo, por dentro de mim,
era tortura em minha casa, enquanto a festa.
Latejava-me, então, nervosamente o cérebro,
esticava-se-me, nele, a parte da alma,
a tornar-se, talvez, estridente demais,
aguda, talvez, como a dor simplesmente
ou, mais simplesmente talvez,
como a corda primeira, em desafino já,
daquele mais íntimo violino-de-mim,
comigo desavindo, talvez, desde então,
para sempre perdido,
parecia-me enfim.
Todavia, alguém lhes derrubou o rei
no tabuleiro-em-regimento,
onde jogavam, quadriculados, há tanto tempo,
a breve festa da ilustríssima rapina;
e, dentro em breve, ouvir-se-lhes-ia, logo, o pranto,
ruir-se-lhes-ia o castelo, a prata e a lei;
que, por fim, era tudo ruína.
Edificar-se-me-ia, então, um tabuleiro sem casas,
onde eu seria o décimo sétimo peão,
a ver, pelas costelas, nascendo, em contra-ícaro,
um alvíssimo par de asas negras demais,
como as pernas de augusto, dos anjos; e, enfim,
o tabuleiro-de-mim ser-me-ia o chão,
para nele voar, da memória de então,
ao profundo que existe entre o não e o sim.
Os netos e as netas dos grão-generais,
perdemo-nos todos, que o mal foi político.
Sobrou-nos fugir, uns menos outros mais:
maconha, cocaína, álcool, ansiolítico.
Calaram-se as ordens. Ladraram: Sentido!
Já não os ouvia. Pensava na morte.
A morte não vinha. A cabeça era um grito,
dizendo-me: Vive! A ideia é mais forte!
Qual fosse uma Ideia, abria-se-me em pernas
a virgem senhora, que, enfim, me sorria,
dizendo-me: Vem! Que, de pernas abertas,
apenas Maria, Maria, Maria...
Findou-se o regime, de dentro pra fora,
a festa era finda, e ninguém percebeu.
Desfruta, Maria, meu Corpo de agora,
que, agora, Maria, o Demônio-sou-Eu.
Enfim, num sarcasmo, dedico estes versos
aos dias que tive quando era criança,
que, agora, despido de um luto sem nexo,
minh’Alma respira, meu Cérebro dança.
a Helder Macedo
Todos os militares eram apenas uma cabeça inútil
a ditar incoerente os limites de tudo;
e eu os ouvia através da ignorância infantil,
e o fascismo fazia-me sentido, sem que sequer o dissessem.
À noite, confuso, eu dormia com nossa senhora,
sedutora, despidos os seios rosados
ante o próprio filho moribundo,
esticado pelos braços na parede branca,
mantida a posição em que morreu, sob tortura,
em pregos milenares pendurado, portanto,
ainda agora a consagrar os mesmos lares
dos mesmos que o mataram noutro tempo,
e que o podendo o farão inda agora,
talvez inda mais lentamente,
que nada mudou, afinal,
em dois mil longos anos de muita conversa.
Eram os primeiros sinais de um inferno sensível,
da primavera macabra que têm sido os meus passos;
esquartejada a vida à maldição divina,
por dentro de mim, repartida em pedaços.
Enquanto as ordens resvalavam bêbadas,
e nada lhes poderia garantir a verossimilhança do sen,
à noite, sempre longa e sempre tão macabra,
eu pensava em torturas para não desejar a virgem,
para não sentir, maior ainda e mais afiada,
a longa culpa de ter, simplesmente, sentido.
Crescia-me na alma a árvore do ódio,
a estender seus galhos, como cigarros acesos,
através da retina, circunspecta e triste,
de um olhar que revelava, ensimesmado,
meu desejo prematuro de morrer.
Então, expunha meus pulsos à faca divina,
mas deus não cortava os meus braços
e ria, profundamente ria,
cercado de insetos por todos os lados.
Edificava-se-me, por dentro, uma senzala imensa,
e os escravos-de-mim formavam filas, de medo,
labirintos macabros para o tronco dos outros,
onde estalava a chibata
ao gosto do grande carrasco.
Poder: eletrochoque, estupro, pau-de-arara,
pérolas e champanhe,
o regimento, afinal, sobretudo,
e tudo, por dentro de mim,
era tortura em minha casa, enquanto a festa.
Latejava-me, então, nervosamente o cérebro,
esticava-se-me, nele, a parte da alma,
a tornar-se, talvez, estridente demais,
aguda, talvez, como a dor simplesmente
ou, mais simplesmente talvez,
como a corda primeira, em desafino já,
daquele mais íntimo violino-de-mim,
comigo desavindo, talvez, desde então,
para sempre perdido,
parecia-me enfim.
Todavia, alguém lhes derrubou o rei
no tabuleiro-em-regimento,
onde jogavam, quadriculados, há tanto tempo,
a breve festa da ilustríssima rapina;
e, dentro em breve, ouvir-se-lhes-ia, logo, o pranto,
ruir-se-lhes-ia o castelo, a prata e a lei;
que, por fim, era tudo ruína.
Edificar-se-me-ia, então, um tabuleiro sem casas,
onde eu seria o décimo sétimo peão,
a ver, pelas costelas, nascendo, em contra-ícaro,
um alvíssimo par de asas negras demais,
como as pernas de augusto, dos anjos; e, enfim,
o tabuleiro-de-mim ser-me-ia o chão,
para nele voar, da memória de então,
ao profundo que existe entre o não e o sim.
Os netos e as netas dos grão-generais,
perdemo-nos todos, que o mal foi político.
Sobrou-nos fugir, uns menos outros mais:
maconha, cocaína, álcool, ansiolítico.
Calaram-se as ordens. Ladraram: Sentido!
Já não os ouvia. Pensava na morte.
A morte não vinha. A cabeça era um grito,
dizendo-me: Vive! A ideia é mais forte!
Qual fosse uma Ideia, abria-se-me em pernas
a virgem senhora, que, enfim, me sorria,
dizendo-me: Vem! Que, de pernas abertas,
apenas Maria, Maria, Maria...
Findou-se o regime, de dentro pra fora,
a festa era finda, e ninguém percebeu.
Desfruta, Maria, meu Corpo de agora,
que, agora, Maria, o Demônio-sou-Eu.
Enfim, num sarcasmo, dedico estes versos
aos dias que tive quando era criança,
que, agora, despido de um luto sem nexo,
minh’Alma respira, meu Cérebro dança.
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
Homem do caminho
Rosa Clement
Meus olhos cantam para o homem que passa,
seu porte macho, peito de concreto,
o qual percorro com olhar discreto
por ser a fêmea dessa sua raça.
Deve ter gosto de boa cachaça,
porém de amor indica estar repleto,
ou já tem uma dona que por certo
também muito lhe quer e não disfarça.
Ai homem do caminho, que felino,
só deixa mais bonita essa paisagem
e leva mais um sonho feminino...
Vai homem, vai seguir o teu destino –
És barco que não volta de viagem,
e esse meu canto, um porto repentino...
Meus olhos cantam para o homem que passa,
seu porte macho, peito de concreto,
o qual percorro com olhar discreto
por ser a fêmea dessa sua raça.
Deve ter gosto de boa cachaça,
porém de amor indica estar repleto,
ou já tem uma dona que por certo
também muito lhe quer e não disfarça.
Ai homem do caminho, que felino,
só deixa mais bonita essa paisagem
e leva mais um sonho feminino...
Vai homem, vai seguir o teu destino –
És barco que não volta de viagem,
e esse meu canto, um porto repentino...
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
exercício nº 14
Zemaria Pinto
A cidade anoitece os seus desígnios
sobre as hordas de selvagens andarilhos,
murmurando gritos sob o burburinho
dos inúteis, dos descrentes e dos bêbados.
A cidade, com seus círculos vorazes
de granizo e fogo e gelo e sangue e serpes:
a cidade-precipício e suas sendas,
suas sombras, seus pudores, seus pecados.
Sob a luz difusa revejo Francesca,
fazendo striptease à música do vento.
Outros tantos corpos nus por nós passeiam
lágrimas, canções, sussurros e gemidos.
Quedo-me em silêncio ao pé da Poesia,
embriagado de desejo e agonia.
A cidade anoitece os seus desígnios
sobre as hordas de selvagens andarilhos,
murmurando gritos sob o burburinho
dos inúteis, dos descrentes e dos bêbados.
A cidade, com seus círculos vorazes
de granizo e fogo e gelo e sangue e serpes:
a cidade-precipício e suas sendas,
suas sombras, seus pudores, seus pecados.
Sob a luz difusa revejo Francesca,
fazendo striptease à música do vento.
Outros tantos corpos nus por nós passeiam
lágrimas, canções, sussurros e gemidos.
Quedo-me em silêncio ao pé da Poesia,
embriagado de desejo e agonia.
terça-feira, 10 de agosto de 2010
A mulher amada
Marco Adolfs
A mulher amada se dá
aberta pra mim;
seu cálice, flor cheirosa,
são pétalas cor-de-rosa
choque, enfim;
não sinto mais as horas;
sinto o universo inteiro;
planeta – água, esfera, segredos...
a mulher amada é assim:
flor, alívio, clamor;
calor que adora o amor;
amor seguro, prático, arguto
de amazona – artífice,
de tudo...
A mulher amada é assim...
A mulher amada se dá
aberta pra mim;
seu cálice, flor cheirosa,
são pétalas cor-de-rosa
choque, enfim;
não sinto mais as horas;
sinto o universo inteiro;
planeta – água, esfera, segredos...
a mulher amada é assim:
flor, alívio, clamor;
calor que adora o amor;
amor seguro, prático, arguto
de amazona – artífice,
de tudo...
A mulher amada é assim...
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Estante do tempo
Cascata
Guimarães de Paula (1932-1996)
Raio de lua
rolando cai
na pedra negra
unido ao frio
e se esvai
como um rio
sobre
outro rio.
Guimarães de Paula (1932-1996)
Raio de lua
rolando cai
na pedra negra
unido ao frio
e se esvai
como um rio
sobre
outro rio.
domingo, 8 de agosto de 2010
Minha pátria é minha língua
Fascinação do mar
Henriqueta Lisboa (1903-1985)
Sonhei com o mar. Ele era terrível
como a cólera de Deus.
E também era belo e era grande
como a misericórdia de Deus.
Olhei o mar. E ele era triste
na solidão e profundeza de suas águas.
E também era louco e poeta
no seu mistério e em suas viagens sem caminho.
Aproximei-me do mar. E ele pérfido
com suas algas e seus milenares abismos.
E também era repousante
com suas ilhas e seus vergéis nascentes.
Fui para o mar. E ele era bárbaro
no acolhimento rumoroso de suas ondas.
E também era a graça, o espírito,
na revoada de suas espumas e gaivotas.
Amei o mar: ele era um deus humano
com seus demônios e seus anjos em liberdade.
Henriqueta Lisboa (1903-1985)
Sonhei com o mar. Ele era terrível
como a cólera de Deus.
E também era belo e era grande
como a misericórdia de Deus.
Olhei o mar. E ele era triste
na solidão e profundeza de suas águas.
E também era louco e poeta
no seu mistério e em suas viagens sem caminho.
Aproximei-me do mar. E ele pérfido
com suas algas e seus milenares abismos.
E também era repousante
com suas ilhas e seus vergéis nascentes.
Fui para o mar. E ele era bárbaro
no acolhimento rumoroso de suas ondas.
E também era a graça, o espírito,
na revoada de suas espumas e gaivotas.
Amei o mar: ele era um deus humano
com seus demônios e seus anjos em liberdade.
sábado, 7 de agosto de 2010
Poesia em tradução
O homem de neve
Wallace Stevens (1879-1955)
É preciso ter uma mente de inverno
Para contemplar a geada e os ramos
Dos pinheiros recobertos pela neve;
E ter estado frio muito tempo
Para olhar o zimbro espessado pelo gelo
E os abetos ásperos na luz distante
Do sol de janeiro; e para não pensar
Em qualquer miséria ao som do vento,
Ao som de umas poucas folhas,
Que é o som da terra
Cheio do mesmo vento
Que sopra no mesmo espaço desnudo.
Pois o ouvinte, que escuta na neve
Sendo nada ele mesmo, contempla
Nada que não está lá e nada que está.
(Trad. Jorge Wanderley)
Wallace Stevens (1879-1955)
É preciso ter uma mente de inverno
Para contemplar a geada e os ramos
Dos pinheiros recobertos pela neve;
E ter estado frio muito tempo
Para olhar o zimbro espessado pelo gelo
E os abetos ásperos na luz distante
Do sol de janeiro; e para não pensar
Em qualquer miséria ao som do vento,
Ao som de umas poucas folhas,
Que é o som da terra
Cheio do mesmo vento
Que sopra no mesmo espaço desnudo.
Pois o ouvinte, que escuta na neve
Sendo nada ele mesmo, contempla
Nada que não está lá e nada que está.
(Trad. Jorge Wanderley)
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
Negra!
Joaquim Cordeiro da Mata (1857-1894)
I
Negra! negra! como a noite
d’uma horrível tempestade,
mas, linda, mimosa e bela,
como a mais gentil beldade!
Negra! negra! como a asa
do corvo mais negro e escuro,
mas, tendo nos claros olhos,
o olhar mais límpido e puro!
Negra! negra! como o ébano,
sedutora como Fedra,
possuindo as celsas formas,
em que a boa graça medra!
Negra! negra!... mas tão linda
co’os seus dentes de marfim;
que quando os lábios entreabre,
não sei o que sinto em mim!...
II
Só, negra, como te vejo,
eu sinto nos seios d’alma
arder-me forte desejo,
desejo que nada acalma.
se te roubou este clima
do homem a cor primeva;
branca que ao mundo viesses,
serias das filhas d’Eva
em beleza, ó negra, a prima!...
gerou-te em agro torrão;
S’elevar-te ao sexo frágil
temeu o rei da criação;
é qu’és, ó negra criatura,
a deusa da formosura!...
I
Negra! negra! como a noite
d’uma horrível tempestade,
mas, linda, mimosa e bela,
como a mais gentil beldade!
Negra! negra! como a asa
do corvo mais negro e escuro,
mas, tendo nos claros olhos,
o olhar mais límpido e puro!
Negra! negra! como o ébano,
sedutora como Fedra,
possuindo as celsas formas,
em que a boa graça medra!
Negra! negra!... mas tão linda
co’os seus dentes de marfim;
que quando os lábios entreabre,
não sei o que sinto em mim!...
II
Só, negra, como te vejo,
eu sinto nos seios d’alma
arder-me forte desejo,
desejo que nada acalma.
se te roubou este clima
do homem a cor primeva;
branca que ao mundo viesses,
serias das filhas d’Eva
em beleza, ó negra, a prima!...
gerou-te em agro torrão;
S’elevar-te ao sexo frágil
temeu o rei da criação;
é qu’és, ó negra criatura,
a deusa da formosura!...
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
Chamas
Cláudio Fonseca
Ele ergueu a sua taça e fez-se o brinde
com lampejos de punhal e de alegria.
Tu quiseste aquele amor que refletia
o fulgor do castiçal dentro dos olhos.
E quiseste a fina mão, que acendia,
com seus dedos de marfim, outras centelhas.
Não notaste no vazio entre as estrelas
os meandros do amor também abismo.
Quando a aurora refulgiu, fez-se um sinistro
calafrio que sabem os potros e os videntes:
eram crostas de poeira, de repente,
todo o brilho dos talheres e do vinho.
Longos dias se passaram. À mesma hora
era aceso o castiçal. E à mesa posta
vinham ecos da longínqua melodia
que exala dos porões das casas mortas.
Certos sonhos temem ao fogo dessas velas
escorrer, em toscas lágrimas de cera.
E “escondem suas faces nas montanhas”
como Yeats escreveu, junto à lareira.
Há um vulto num solar ou num casebre,
um odor de velhas flores e mortalha,
à espera de alguém - que nunca chega
(para sermos mais diretos com a navalha).
Ou se chega, há um oco de silêncio
escutando os pés subirem ao patamar –
quando chama pelo nome, só atendem
ressonâncias de uma calma de luar.
E assim os jovens rostos se apagam
como círios que adornaram belos ritos.
Ele um dia voltará. Mas em teu quarto
restará um lancinante grito.
Ele ergueu a sua taça e fez-se o brinde
com lampejos de punhal e de alegria.
Tu quiseste aquele amor que refletia
o fulgor do castiçal dentro dos olhos.
E quiseste a fina mão, que acendia,
com seus dedos de marfim, outras centelhas.
Não notaste no vazio entre as estrelas
os meandros do amor também abismo.
Quando a aurora refulgiu, fez-se um sinistro
calafrio que sabem os potros e os videntes:
eram crostas de poeira, de repente,
todo o brilho dos talheres e do vinho.
Longos dias se passaram. À mesma hora
era aceso o castiçal. E à mesa posta
vinham ecos da longínqua melodia
que exala dos porões das casas mortas.
Certos sonhos temem ao fogo dessas velas
escorrer, em toscas lágrimas de cera.
E “escondem suas faces nas montanhas”
como Yeats escreveu, junto à lareira.
Há um vulto num solar ou num casebre,
um odor de velhas flores e mortalha,
à espera de alguém - que nunca chega
(para sermos mais diretos com a navalha).
Ou se chega, há um oco de silêncio
escutando os pés subirem ao patamar –
quando chama pelo nome, só atendem
ressonâncias de uma calma de luar.
E assim os jovens rostos se apagam
como círios que adornaram belos ritos.
Ele um dia voltará. Mas em teu quarto
restará um lancinante grito.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
Dabacuri – amazônica 19
Zemaria Pinto
mangas pelo chão –
crianças de um lado a outro,
entre moscas e porcos
pimenta, limão,
isca de pirarucu
– e o rio nos meus olhos
mangas pelo chão –
crianças de um lado a outro,
entre moscas e porcos
pimenta, limão,
isca de pirarucu
– e o rio nos meus olhos
terça-feira, 3 de agosto de 2010
Desejos de um velho cansado
Ernesto da Cruz
Eu queria ser um Castro Alves,
Um Álvares de Azevedo
(assim tão cedo.)
Eu queria ser um Jim Morrison,
Rimbaud
Ou Baudelaire.
Assim sem nenhum rancor
Ser o que ninguém quer,
O que ninguém se atreve
Eu, que não tive
Tempo de ser breve.
Eu queria ser um Castro Alves,
Um Álvares de Azevedo
(assim tão cedo.)
Eu queria ser um Jim Morrison,
Rimbaud
Ou Baudelaire.
Assim sem nenhum rancor
Ser o que ninguém quer,
O que ninguém se atreve
Eu, que não tive
Tempo de ser breve.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Estante do tempo
Nênia
Luiz Ruas (1931-2000)
mas se o pássaro não vier como será?
os trigais deixarão cair – inútil esmola –
os grãos de ouro no chão incandescido.
as flores murcharão – flores de pedra –
pontiagudas como espinhos secos.
as fontes coalharão suas águas
e teu sorriso morrerá qual fruto podre.
se o pássaro não vier
será noite sem estrelas
e o sol não bordará mais de ouro e púrpura
as régias fímbrias do manto da aurora.
tuas mãos inutilmente chamarão os pirilampos
para os bailes feéricos no seio da floresta
se o pássaro não vier
a música silenciará
na última corda partida
de paganini.
o basilisco e as víboras dominarão os caminhos
e ficará deserto e frio o último dos ninhos.
não mais
não mais terás o meu carinho
pois teu rosto de mármore será
estulto como estátua de museu.
se o pássaro não vier
inutilmente serás.
serás o quê? ser o quê se o pássaro não vem?
ser o quê se não há mais flor?
ser o quê se não há mais ninho?
Luiz Ruas (1931-2000)
mas se o pássaro não vier como será?
os trigais deixarão cair – inútil esmola –
os grãos de ouro no chão incandescido.
as flores murcharão – flores de pedra –
pontiagudas como espinhos secos.
as fontes coalharão suas águas
e teu sorriso morrerá qual fruto podre.
se o pássaro não vier
será noite sem estrelas
e o sol não bordará mais de ouro e púrpura
as régias fímbrias do manto da aurora.
tuas mãos inutilmente chamarão os pirilampos
para os bailes feéricos no seio da floresta
se o pássaro não vier
a música silenciará
na última corda partida
de paganini.
o basilisco e as víboras dominarão os caminhos
e ficará deserto e frio o último dos ninhos.
não mais
não mais terás o meu carinho
pois teu rosto de mármore será
estulto como estátua de museu.
se o pássaro não vier
inutilmente serás.
serás o quê? ser o quê se o pássaro não vem?
ser o quê se não há mais flor?
ser o quê se não há mais ninho?
domingo, 1 de agosto de 2010
Minha pátria é minha língua
Livro de horas
Miguel Torga (1907-1995)
Miguel Torga (1907-1995)
Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
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