Amigos do Fingidor

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Advertência ou Uma poética do devaneio

Zemaria Pinto
Se não me perguntam o que é a Poesia, eu a entendo; mas se me perguntam, não sei explicá-la.
(Paráfrase de Santo Agostinho)

I

O meu poema não guarda
relação com a realidade.

Quando muito, escrevo sonhos
que ando sonhando acordado.

São sonhos pré-fabricados,
tecidos de forma vária:

sonho poemas escritos
por poetas que não li

e os escrevo com a certeza
de que a mim não me pertencem.

Mas os escrevo em sonhos:
tinta de ar, papel de espuma.

Serpentes e labirintos,
anjos, panteras, centauros,

pássaros, peixes e vacas,
cães, borboletas, carneiros,

além de abismos e rios:
são recorrências de sonhos.

Sonhar voando é brinquedo,
recorrência de prazer.

II

Já sonhei com o Paraíso,
onde busquei Beatriz

num círculo espiralado
de areia e vento e desejo.

Mas já sonhei com o Demônio.
Aliás, lhe sonho sempre,

desde quando um grito negro
despertou-me do delírio,

entre a repulsa e a libido,
do meu corpo submetido.

Sonho com o céu se abrindo
em nuvens revolucionadas.

Sonho com a Terra explodindo,
ilhas de gente arrancadas,

explosões multiplicadas,
lava de fogo e poeira.

Em meio a tudo caminho
com a calma dos culpados,

e talvez até sorria
da beleza do espetáculo.

III

Para o poema transponho
não os sonhos como os vi:

passo ao papel a tristeza
que toma conta de mim

ou então a alegria
esporrada no lençol.

Pois se os escrevo sonhando,
transcrevo-os na sordidez

das lentas salas de espera,
nas filas dos hospitais,

nas toscas mesas dos bares
que constrangido freqüento

ou nas mesas apressadas
dos restaurantes de quilo.

O poema não reclama,
não requer assepsia.

Apenas pede passagem
como um quisto que supura:

a urgência do poema
não condiz com a escritura.

IV

Deve o poema ser lento
gerado célula a célula,

como um corpo que se forma,
um bicho que se transforma

ou como fosse a laranja,
que se faz de casca e gomos;

em cada gomo milhares
de pequenas bolsas-lágrimas;

e somem-se ainda os átomos
do líquido que a enforma,

até a conclusão óbvia:
toda laranja é um poema.

Toda vida é um poema?
Toda coisa é um não-poema?

Mas uma coisa se muda
em poema: se transmuda.

Poemacoisa: poesia;
poemobjeto é outra coisa.

Um poema é um poema,
apenas e tão-somente.

V

A medida do poema
nasce na palma da mão,

galopando até a língua
no ritmo desejado.

Mas a música do poema
é o ouvido do leitor.

Alguns poemas têm cheiro;
outros há que têm sabor;

outros buscam harmonizar
os sons, perfumes e as cores.

O meu poema procura
a ordem fora da ordem.

Mas não resiste o poema
que não reflete uma imagem,

ainda que distorcida
em figura de linguagem.

Pois assim é o meu poema:
lúcido, lúdico, meu.

De outra forma, valeria
transformar sonho em poesia?