Sumaumeira morta
Pereira da Silva (1890-1973)
Lá vai boiando, na Água Grande em turbilhão,
A sumaumeira morta, que tombou.
Ela era antiga e gloriosa
Como um deus que passou,
Que vai bem longe, um deus heróico, um deus pagão.
A sua fronde, outrora,
Era uma eterna festa,
Onde a alegria,
Toda vestida de verde, cantava
E bailava,
Pela garganta metálica, sonora,
Dos japiins boêmios e joviais.
Coroada de arminho, a sumaumeira, sorria
Para o sol – imperatriz orgulhosa
Da floresta!
Na orgia de luz das tardes tropicais,
Plena de seiva, os galhos formidáveis
Fremiam, como braços vigorosos
Em ansiedade,
Tentando profanar as franjas impalpáveis
Do zainfe irisal dos altos céus escampos.
Depois, dentro da noite, a sumaumeira,
Tinha a grandeza de um altar druídico,
Erguido em meio da brutalidade
Das selvas e das águas tumultuárias,
Iluminado pelos pirilampos.
Mas, um dia, o apuizeiro, fascinado
Por tanta majestade e tanta formosura,
Como um capro, investiu,
Envolveu-lhe a cintura.
E a esse abraço fatídico,
Toda a sua beleza sucumbiu!
As invernias e os vendavais
Arrancaram-lhe as folhas desbotadas.
E aqueles flocos de alva pluma,
Desfeitos, doidejando, em torvelinho,
Pousando aqui, ali, no coração da mata,
Por sobre as franças verdolengas perfumadas,
Certo, haviam de ser as lágrimas de arminho
Da árvore-imperatriz, lentamente a morrer.
Quando os tentáculos cruéis do apuizeiro
Sugaram a última gota de sua vida,
De sua seiva, e ela – a nobre e altaneira
Sumaumeira, –
Morreu de todo, afinal,
A natureza, a chorar, foi vesti-la de branco.
...E a árvore-grande ficou, como um fantasma solitário,
À beira do barranco,
Crucificada na angústia do Não-ser!
A múmia branca da potência vegetal
Da Terra Verde, erguia os braços para os céus.
E ao lampadário
Do sol-poente,
Parecia enviar uma prece eloquente
Ao Sublime-Inexplicável – que é Deus!
Agora, a Água Grande, impiedosa,
Que tudo avassala e tudo desbarata,
Carcomendo o barranco, fez tombar
A velha sumaumeira morta há tanto ano!
...E lá se vai, aos roldões, na avalanche furiosa,
O velho tronco brancacento,
Cumprindo o seu fadário, assaz tirano,
As raízes voltadas para o ar.
...E lá se vai, dobrando as curvas,
Vencendo os estirões,
No esquife abissal das águas turvas,
O cadáver da velha sumaumeira!
Ashaverus das selvas amazônicas!
Para onde te leva o mau destino,
Cheio de pragas e de maldições?
Que mal fizeste em ouvir as preces melodiosas
Do passaredo, à hora do amanhecer?
Bem cruel e violento
O teu castigo!
Dia e noite boiando, a descer, a descer...
A Água Grande – esse verdugo, esse tigrino
Carrasco, a te levar
Assim,
Insensivelmente, friamente, para o fim!
Mas – Oh! Sumaumeira morta! – vai contente
Para o teu jazigo!
Em teu desfile lúgubre, em alas,
Todas as catedrais frondejantes da flora,
O tronco gigantesco a flutuar sem vida,
Cada vez mais o teu destino se alcandora!
As tuas raízes
Estão bracejando aflita despedida,
Às árvores felizes
Que vão ficando,
Verdejando
Pelas margens dos rios, a cantar.
Mas, embora arrastada pelas águas,
Os rebojos rezando em voz soturna,
As espumas coroando as tuas mágoas,
Cada vez mais soberbo e mais glorioso,
Fulge ao sol o teu tronco de gigante!
Bendita sejas, Árvore Grande de minha devoção
Emocional!
Teu último instante
Há de ser grandioso
Como o enterro de um Deus, na vastidão
Azul do espaço sideral!
Porque, afinal, soberba sumaumeira,
Para cúmulo
De tua glória, imperatriz do mundo florestal,
Terás a apoteose derradeira
Na pompa altiloquente do teu túmulo:
– O Mar!