Ao Paulo Graça,
navegante do insondável
I
Não era ainda a hora de te escrever
por isso fui ao Averno
como fazíamos todas as sextas
e mergulhei meu sangue engordurado
em miligramas de moléculas de álcool
Mas já não havia o absinto de uso exclusivo dos românticos pálidos
II
Na passagem pelo Estige
sempre ponto obrigatório
vi que o alfanje prateado
sangrava recém-usado
Perguntei-me quem seria
o destinado a empunhá-lo
III
Ah, pântanos da memória
desabrochai em begônias
gardênias gerânios rosas
asfixiando o enxofre
que exalam vossas entranhas
palude paul pauis
IV
Ouço soluços ao lado
um espectro de mulher
a face descarnada as mãos trementes
implora-me um mísero trago
(ao fundo a music box
aspergia sobre nós
os nós de notas e sílabas
de um tango retrô-pós)
V
Em vão a busca prossegue
nos vãos dos leitos impuros
No Flagetonte ou no Aqueronte
meu corpo cambaleia relutante
sob o peso dos vícios
que me incutiu a nave de Caronte
VI
Às portas do Letes o dia se levanta
e eu sorvo o esquecimento
em lentos goles de quinino
(o líquido me queima os lábios e as entranhas
num rito de reencontro
com algo que não perdi)
VII
Por entre a turba apressada
meu corpo segue em direção contrária
na boca um gosto amargo
e um peso indefinido me oprimindo o peito
além de uma certeza
não era ainda a hora de te escrever