Amigos do Fingidor

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Canção sem esperança

Zemaria Pinto

Ao Paulo Graça,
navegante do insondável

I

Não era ainda a hora de te escrever
por isso fui ao Averno
como fazíamos todas as sextas
e mergulhei meu sangue engordurado
em miligramas de moléculas de álcool

Mas já não havia o absinto de uso exclusivo dos românticos pálidos

II

Na passagem pelo Estige
sempre ponto obrigatório
vi que o alfanje prateado
sangrava recém-usado

Perguntei-me quem seria
o destinado a empunhá-lo

III

Ah, pântanos da memória
desabrochai em begônias
gardênias gerânios rosas
asfixiando o enxofre
que exalam vossas entranhas
palude paul pauis

IV

Ouço soluços ao lado
um espectro de mulher
a face descarnada as mãos trementes
implora-me um mísero trago
(ao fundo a music box
aspergia sobre nós
os nós de notas e sílabas
de um tango retrô-pós)

V

Em vão a busca prossegue
nos vãos dos leitos impuros

No Flagetonte ou no Aqueronte
meu corpo cambaleia relutante
sob o peso dos vícios
que me incutiu a nave de Caronte

VI

Às portas do Letes o dia se levanta
e eu sorvo o esquecimento
em lentos goles de quinino
(o líquido me queima os lábios e as entranhas
num rito de reencontro
com algo que não perdi)

VII

Por entre a turba apressada
meu corpo segue em direção contrária
na boca um gosto amargo
e um peso indefinido me oprimindo o peito
além de uma certeza

não era ainda a hora de te escrever